Batata Movies – Missão 115. Como O Estado Ameaça A Democracia Pelo Terrorismo.

Cartaz do Filme

Um excelente documentário brasileiro. “Missão 115” fala de um dos períodos negros da ditadura militar do Brasil: os atentados terroristas a grupos que pediam a volta da democracia depois das promessas de distensão lenta e gradual de Geisel e da volta a democracia de Figueiredo. Dirigido por Silvio Da-Rin, o documentário tem uma postura altamente corajosa de questionar com volúpia as ações dos militares naquela época de atentados à bomba que matavam ou desfiguravam pessoas como o que aconteceu na sede da OAB. Toda uma atenção especial é dada ao caso do Riocentro de 1981 (a tal “Missão 115” é a do Riocentro), onde tudo já estava bem arquitetado desde o início, não fosse por um pequeno detalhe na hora de se armar os explosivos que acabou provocando a detonação dos mesmos dentro do famoso Puma prateado evitando uma tragédia que, provavelmente, seria de consequências terríveis. O documentário deixa muito claro que o atentado mal sucedido ao Riocentro desmoraliza o regime militar de vez, e a tão sonhada distensão lenta e gradual acaba se abreviando. Figueiredo, segundo o documentário, não poderia ter sido uma escolha pior para suceder Geisel, pois o último presidente militar pertencia ao SNI e à linha dura de extrema direita dos militares, justamente o grupo que praticava os atentados, deixando o presidente numa baita de uma saia justa.

O famoso Puma prateado…

Mas o documentário não para por aí. Ele faz um excelente esforço de reflexão ao questionar a lei de anistia, que ficou mais como uma impunidade generalizada do que uma reparação dos crimes da ditadura. E, ainda, analisa de forma magistral como o ranço autoritário gerado nos anos de repressão pode ter influenciado o processo de impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Ou seja, o documentário até elenca um tema principal – o caso Riocentro – mas não fica somente num recorte de tempo muito estrito. Ao se alongar mais no decorrer dos anos, o filme opta por analisar a situação mais como um processo que se perpetua no tempo (ou seja, o autoritarismo latente que sobrevive em práticas de impunidade), mais ou menos num contexto de média duração. A maior prova da perpetuação desse ranço autoritário foi a forma como a Comissão Nacional da Verdade é tratada no filme, tal com se fosse um fantoche altamente manipulável somente para inglês ver e para se dar alguma satisfação para as dores que os humilhados pelas torturas passaram. Uma colaboração pífia das Forças Armadas, uma Comissão que mal tinha tempo hábil para investigações e resultados que já eram do conhecimento da maioria geral. E isso porque o Brasil havia tomado um puxão de orelha da OEA para investigar e punir os crimes da ditadura.

Depoimentos reveladores…

A estrutura do documentário é daquelas bem tradicionais, com uma narração mais pautada em falas de atores sociais daquele momento, testemunhas e pesquisadores especializados. Dentre os pesquisadores, podemos citar a presença dos historiadores Daniel Aarão Reis (UFF), Carlos Fico e Francisco Carlos Teixeira (ambos da UFRJ). Mas também podemos citar o importante depoimento de Cláudio Guerra, ex-militar envolvido nas operações de eliminação dos grupos guerrilheiros da época da ditadura. Alem dos depoimentos, temos, também, uma quantidade muito boa de imagens de arquivo que ilustram bem todo o contexto abordado. Ou seja, e trocando em miúdos: é o tipo de documentário que prende a nossa atenção do início ao fim

O diretor Silvio Da-Rin

Assim, “Missão 115” é um daqueles filmes fundamentais que não podemos deixar escapar de nossa carreira de cinéfilo. É um filme que busca explicar, de forma muito didática, como foram esses períodos negros do passado e qual é a conexão dessa época com o futuro nebuloso que paira sobre nossas cabeças; o cheiro de autoritarismo infelizmente tem andado muito forte por aí e dias sombrios parecem pairar no ar. “Missão 115” nos ajuda a refletir sobre todo esse contexto. Imperdível.

Batata Movies – Onde Está Você, João Gilberto? Só Se Leva Dessa Vida A Vida Que Se Leva.

Cartaz do Filme

Um documentário em co-produção Suíça/Alemanha/França abordou um tema 100% brasileiro: a Bossa Nova e João Gilberto. Há algum tempo, foi noticiado no jornal a situação calamitosa em que o músico se encontrava. Recluso em seu apartamento há décadas, cheio de dívidas por não cumprir seus contratos, o cantor chegou a ser interditado na justiça pela própria filha, para resolver as questões de ordem financeira. Até a porta da casa do artista chegou a ser arrombada, algo extremamente lamentável, mesmo que tenha alguma justificativa. Pois bem, eis que, num belo dia, eu me deparo com o trailer de “Onde Está Você, João Gilberto?” no cinema, realizado pelo alemão Georges Gachot, que aborda a reclusão do artista.

O alvo…

E aí, logo pensei: “esse documentário tem tudo a ver com o que se tem sido noticiado outro dia sobre João Gilberto, e com a vantagem de se ter um olhar estrangeiro sobre a questão”, sendo esse argumento o que fez com que eu me interessasse por esse filme. Eu acreditava que o documentário ajudaria a compreender melhor a alta situação caótica pela qual o artista passa hoje. E qual é a impressão dessa película? Inicialmente, o filme, em parte, nos ajuda a entender um pouco o que aconteceu com o cantor, mas não muito. Há a proposta de se seguir os passos do pesquisador alemão Marc Fisher, que escreveu um livro sobre João Gilberto e tentou, sem sucesso, entrar em contato com o cantor aqui no Brasil.

Uma busca infrutífera…

Quatro meses depois dessa tentativa, Fischer se suicida. Gachot, então, com o espólio intelectual de Fischer, tenta uma nova investida para encontrar o cantor, também sem sucesso. E aí, a figura enigmática do cantor é substituída por entrevistas com nomes consagrados da Bossa Nova, tais como João Donato, Miúcha, Marcos Valle e Roberto Menescal. Obviamente que o assunto das entrevistas era Gilberto, mas esse rosário de artistas da Bossa Nova se tornou bem mais interessante, pois eles tinham vontade de falar com o documentarista. A coisa se processa de uma forma que o cantor acaba até meio que virando um pano de fundo, um suporte para se falar da Bossa Nova, com outros artistas aparecendo de forma muito mais vívida. É claro que João Gilberto sempre é o assunto principal. Só que seu autoisolamento faz com que as pessoas que falam sobre ele se tornem personagens bem mais interessantes.

Marcos Valle…

O desfecho do documentário, por sua vez, é melancólico. Ridículo, até. Numa última cartada para chegar perto do artista com pecha de mito, Gachot tenta se aproximar do empresário de Gilberto, que se revela uma pessoa com uma lábia um tanto enrolada, que inicialmente acorda uma coisa, mas depois reluta em cumprir. E aí, combina-se que Gilberto ficará num quarto do Copacabana Palace e cantará, enquanto que Gachot ficará do lado de fora para escutar a música. Mas aí fica a grande dúvida: Gilberto estaria lá mesmo? Ou o empresário colocou um baita de um CD e tocou um playback? Gilberto sairia mesmo de seu apartamento onde ficou confinado por praticamente trinta anos ininterruptos para tocar atrás da porta de um quarto do Copacabana Palace? Difícil de acreditar.

… e Miúcha, muito mais interessantes…

Sendo Gilberto ou não atrás da porta, uma frase me vem a cabeça e está aí em cima, no título do artigo: “Só se leva dessa vida a vida que se leva”, ou seja, a gente colhe aquilo que planta. E me parece que Gilberto não semeou as sementes certas, dada a situação melancólica em que ele se encontra. Pelo menos, se seus atos tivessem consequência somente sobre si, a gente ainda poderia apenas lamentar.

Uma conversa com o empresário e seus vistosos óculos vermelhos…

O problema é que ele arrasta fãs seus para essa mesma torrente de melancolia. E aí a coisa não fica muito legal, pois ele frustra outras pessoas com seu comportamento, o que é ainda mais lamentável. Confesso que dá uma certa pena de Gachot e Fisher de ficar correndo atrás de um cara que é tratado como um mito, mas se comporta como um fantasma. E, como brasileiro, rola até um certo constrangimento. Enfim…

Georges Gachot. Esse tem um lugar garantido no Céu…

Assim, “Onde Está Você, João Gilberto” vale mais pelos entrevistados e pelos “causos” sobre o cantor do que sobre o próprio artista em si. De se louvar é a posição de investigador de Gachot e Fisher que fizeram uma meticulosa busca para poderem chegar ao seu ídolo. Infelizmente, eles não obtiveram êxito em sua busca. Vale a pena assistir, apesar de um certo sentimento de constrangimento.

Batata Movies – Minha Obra Prima. As Ironias Da Arte Como Estratégia De Sobrevivência.

Cartaz do Filme

Um bom filme argentino em co-produção com a Espanha. “Minha Obra Prima” traz um bom dueto de atores: Guillermo Francella e Luis Brandoni. Pode-se dizer que o filme tem uma comédia um tanto ácida, embora ele possa se aproximar também de momentos de drama mais profundo. Vamos lançar mão de spoilers aqui.

Um galerista com um problema…

A trama se passa em Buenos Aires, onde o galerista Arturo Silva (interpretado por Francella) tem uma relação muito conturbada com o artista plástico Renzo Nervi (interpretado por Brandoni). Na década de 80, a sociedade entre os dois era muito próspera, com Nervi vendendo como nunca. Mas nos dias atuais ninguém mais compra suas obras e Nervi, com sua natureza excêntrica, acaba melando todas as tentativas de Silva de reerguer a carreira do artista, o que leva a muitos momentos engraçados do filme.

Ele tem um amigo artista…

Só que chega uma hora em que Silva não aguenta mais as sucessões de bolas fora do amigo e finalmente o abandona. Nervi será atropelado na rua e perderá a memória, o que fará com que Silva se reaproxime para tentar restaurar as lembranças do amigo. Apesar dos dois se aproximarem novamente, os problemas financeiros continuam e é aí que Silva tem uma ideia. Ele vai tirar Nervi do hospital, dá-lo como morto, o que vai alavancar o valor das obras deste no mercado e seu acervo de duzentas obras, mais o que Nervi produzirá escondido começará finalmente a ser vendido por um grande valor. Só que a mutreta dos dois estará ameaçada. Paremos com os spoilers por aqui.

… que não bate muito bem…

É um filme de atores, sobretudo. Francella sempre foi muito talentoso e mais uma vez prova isso aqui. Foi muito engraçado ver seu personagem pisando em ovos, indo desde uma educação e refinamento com seus clientes passando ao outro extremo de uma relação mais rude e mal-educada com seu amigo pintor de longa data. Mas esse é, definitivamente, um filme de Luis Brondoni. A forma como ele trabalhou seu personagem Renzo Nervi foi simplesmente estupenda, sendo o artista excêntrico, egocêntrico e altamente mal-humorado cujas atitudes extremas conseguiam despertar boas risadas.

Eles têm um plano…

E, depois do acidente, temos um Nervi bem mais calmo (me perdoem o trocadilho infame) e doce, tornando-se a amizade ideal de Silva, tal como se o acidente fosse um prêmio para o galerista que recebe um amigo mais afetuoso depois de anos aturando um mala sem alça. Agora, cá para nós, Silva e Nervi atuaram como dois bons trambiqueiros  e isso os colocaram numa tremenda saia justa que poderia melar de vez a simpatia dos dois por parte do público. Só que o par de amigos foi salvo pelo gongo da Lei de Murphy, onde tudo tem tendência de dar errado ao quadrado. A verdade é uma só: por mais falta de caratismo do par de protagonistas, é impossível não torcer por eles dada a natureza cativante da dupla, que teve uma química perfeita.

… para levar a vida numa boa. Mas…

Assim, “Minha Obra Prima” é um filme que traz de volta o melhor do cinema argentino (confesso que tenho visto as produções portenhas como mais medianas ultimamente), usando sempre o talento de atores para lá de consagrados como Francella e Brandoni (isso mesmo, o cinema argentino não é só sua figura máxima Ricardo Darín). É o típico filme que vale pagar o ingresso para se deleitar com o talento dos atores. Vale muito a pena dar uma conferida.

Batata Movies – Moacir, O Santista Que Conquistou Os Argentinos. Uma História Surpreendente.

Cartaz do Filme

Um excelente “meio” documentário em co-produção Argentina/Brasil. “Moacir, O Santista Que Conquistou Os Argentinos” parece até um título sobre um jogador de futebol brasileiro que vai fazer carreira na Argentina, não? Foi essa a impressão que eu tive ao ler o título e não procurar a sinopse. Entretanto, a história de nosso santista é muito diferente.

Uma figura surpreendente…

Moacir dos Santos vivia na sua cidade, Santos, e chegou a lavar o carro de, ninguém mais, ninguém menos que Pelé. Depois que sua mãe faleceu, nos anos 80, Moacir pega um ônibus e vai tentar a vida em Buenos Aires. Lá, se sustenta como lavador de carros, mas acaba internado num hospital psiquiátrico. Ele será descoberto pelo cineasta Tomás Lipgot, que faz dois filmes sobre sua vida. Por ser uma figura muito peculiar, que gosta de cantar antigos sambas, e de ter um carisma que vai às alturas, Moacir se torna uma espécie de celebridade na Argentina (embora nunca tenha sido ouvido falar por aqui) e Lipgot faz dois filmes sobre ele.

Moacir quer fazer um filme…

A presente película já é uma terceira produção sobre Moacir, que mostra a vida dele depois que consegue ter alta do manicômio e embarca na aventura de se fazer um filme onde ele é o ator principal. O resultado da película é uma espécie de making of desse suposto filme, onde podemos conhecer mais de perto a natureza singular de Moacir.

Criando o personagem…

Ele fala de suas músicas prediletas, sejam brasileiras, sejam argentinas, canta muitas delas, expõe toda a sua sexualidade, vontade de atuar, enquanto que o filme vai sendo gravado, numa mistura de documentário e ficção. O resultado de toda essa salada é surpreendente e o filme tem uma espécie de desfecho apoteótico bi-nacional, se é que vocês podem me entender. Só vendo o filme mesmo.

O homem é um show man!!!

Esse é um filme, acima de tudo, humano. A figura de Moacir é uma prova de que, dentre aqueles que a sociedade descarta, e relega ao ostracismo ou à loucura, há preciosas joias que precisam ser resgatadas. Aliás, Moacir é a prova cabal de que todo ser humano é uma joia e não se pode ficar confinado à segundo plano.

Momentos tristes, mas alguns não conseguem esconder o riso…

Numa sociedade mais humana e solidária, todos devem ter igual atenção, respeito e consideração. E, quando Moacir é resgatado e ele se mostra em toda a sua virtude e autenticidade, ele consegue transformar a vida das pessoas que o cercam, além de irradiar seu espírito, otimismo e amor pela vida para as pessoas que assistem ao filme.

O desfecho é uma verdadeira apoteose…

Só é de se lamentar que eu tenha sido a única pessoa na sala de cinema a testemunhar a força criativa de Moacir e do filme. Isso mesmo, caro leitor, se eu não tivesse ido prestigiar o filme, o público teria sido zero. É realmente uma pena mais pessoas não terem tido a oportunidade de ter conhecido essa figura ímpar. É por essas e por outras que a gente escreve aqui para ajudar um pouco o leitor de ter um pouco mais de atenção com tais filmes.

Conversando com o diretor Tomás Lipgot

Assim, não deixe de conhecer Moacir, pois você não vai se arrepender. E se você quer conhecer os outros dois filmes de Moacir, “Moacir” e “Fortalezas”, vá ao site da produtora Duermevela, clique em films e role a página para baixo até em Sala de Proyécíon. Para acessar o site, é só clicar aqui.

Batata Movies – O Caravaggio Roubado. O Que É A Vida, O Que É A Arte?

Cartaz do Filme

Um filme italiano intrigante. “O Caravaggio Roubado” parece fazer um jogo de gato e rato com o espectador com a intenção de dar um nó na cabeça de quem assiste. Até onde o que vemos está no campo da realidade ou da ficção? A gente se pergunta muito sobre isso, principalmente quando vemos os créditos finais. Vamos usar spoilers aqui.

Uma secretária e um policial numa trama bem complexa…

Vemos aqui a história de Valeria (interpretada por Micaela Ramazzotti), uma secretária que desempenha a função de ghost writer para um roteirista, Alessandro Pes (interpretado por Alessandro Gassman) numa produtora de cinema. Ela busca histórias interessantes por aí e acaba encontrando um misterioso policial que lhe fornece a história de um Caravaggio roubado pela máfia italiana em 1969. A moça, então, escreve um roteiro que fica sob a autoria de Pes. É claro que os mafiosos não gostaram disso e acabaram sequestrando Pes, o torturaram e o espancaram. Valeria, então, irá se envolver numa trama onde o seu contato policial está envolvido, assim como os mafiosos e até pessoas do alto escalão do governo italiano.

Um Caravaggio roubado…

É um filme um pouco complicado de assistir. Existem muitas tramas intrincadas e confesso que me perdi um pouco nelas. Entretanto, o filme acaba entregando um desfecho meio que em aberto, mas compreensível. E o mais intrigante está nesse desfecho. Fica parecendo que a história é real. Ou baseada em fatos reais. E aí, fica a pergunta: até onde o roteiro dessa película causou ou não indignação na máfia de verdade? Será que houve algum tipo de agressão ou pelo menos ameaça aos roteiristas do filme? Ou foi tudo uma grande brincadeira que o diretor Roberto Andó faz com o espectador? Essa já é uma película que fala da produção de um filme.

Momento de suspense…

Já vemos aqui a exibição do filme dentro do filme, enganando o espectador ao estilo da peça de teatro de “O Último Metrô” de Truffaut.  E aí fica a pergunta: se vimos o filme dentro do filme, até aonde o filme também mascara ou imita situações da vida real? De fato, o Caravaggio foi roubado. Qual foi o fim dele? Como estão as investigações e as buscas hoje? Até onde a máfia tem poder para obstruir as investigações e qual foi a real reação dela à execução dessa película? Foi algo semelhante ao que vimos no filme? E as ligações na vida real entre a máfia e os altos escalões dos governos italianos? Realmente é um filme que levanta muitas questões.

Um filme dentro do filme…

Assim, “O Caravaggio Roubado” é uma película intrigante que mostra um filme dentro do filme, mas também leva a vida real para dentro desse loop. Um filme que tem uma história um pouco enrolada dificultando a compreensão do suspense. Vale muito como curiosidade e para a gente entender um pouco o poder da máfia na Itália há algumas décadas

Batata Movies – A Costureira De Sonhos. Bollywood Desbancando Roma.

Cartaz do Filme

Uma co-produção Índia/França. “A Costureira de Sonhos” é mais um daqueles filmes de empregada doméstica, um tema que sempre chama a atenção quando passa por aqui, até porque a figura dessa profissional é um dos resquícios bem claros do escravismo em nossa sociedade brasileira contemporânea. Para analisarmos essa película, vamos lançar mão de spoilers.

Uma empregada cheia de sonhos…

Vemos aqui a trajetória de Ratna (interpretada por Tillotama Shome), uma moça condenada pelo destino, pois enviuvou muito cedo em sua vila no interior da Índia. Segundo a tradição, quando isso acontece, a moça fica marcada e meio que amaldiçoada, não podendo mais casar. Ratna decide, então, tentar a sorte na cidade grande como empregada doméstica para juntar dinheiro. A moça, também, tem um sonho: ela quer aprender costura para se tornar uma estilista profissional. Mas ela vai ter que suar a camisa demais para atingir seus objetivos. Ela trabalha na casa de um rapaz muito rico e ocidentalizado, Ashwin (interpretado por Vivek Gomber). Ele ia se casar, mas o relacionamento terminou de forma, digamos, desagradável, às vésperas da cerimônia. Desde então, ele mete as caras no trabalho e tem uma postura muito reservada. E aí, os dois, patrão e empregada, vivem juntos num apartamento enorme. Impossível não rolar algo.

Ela quer ser estilista…

Há algum tempo, “Roma” de Alfonso Cuarón, ganhou as manchetes e Oscars. Um filme um tanto autobiográfico onde o diretor quis celebrar as lembranças afetivas de sua infância e da empregada da família, não sem mencionar um contexto mais social, onde o relacionamento entre patrão e empregada podia ser eivado de preconceitos. Me pareceu na ocasião que essa questão social poderia ter sido um pouco mais abordada na película. E aí, filmes brasileiros como “Que Horas Ela Volta”, com a Regina Casé, e até “Romance da Empregada”, com Betty Faria teriam abordado essa questão social de uma forma mais aprofundada que “Roma”. Agora, “A Costureira de Sonhos” faz o mesmo, ainda abordando um tema extremamente complexo, o sistema de castas indiano, onde a estratificação social atinge níveis extremos aos nossos olhos ocidentais.

Surge um clima com o patrão…

Ashwin e Ratna se apaixonam. Há uma correspondência entre os dois, mas o preconceito na sociedade indiana de um casal formado por estratos sociais tão diferentes impede com veemência essa união. E, leia-se, não é apenas uma imposição de uma classe mais alta sobre uma classe mais baixa. Os colegas de Ratna, também de seu estrato social, zombavam dela quando percebiam o interesse de Ashwin nela. Isso bloqueava totalmente um possível relacionamento entre os dois e o filme deixou bem claro como essa tradição (vista inteiramente como a vilã da história aqui) aniquila os desejos dos indivíduos.

Zombada pelo próprio estrato social…

O desfecho foi curioso. Tudo indica um chute no happy end. Mas optou-se por uma relativização da coisa, ou seja, como se trata de um amor impossível, Ashwin deu uma última cartada para dar uma esperança de dias melhores para Ratna. Assim, o gosto amargo de um amor não concretizado vem com um recheio de um futuro de esperança para a nossa protagonista, o que deixa o filme simpático aos olhos do espectador que não tem apenas que enfrentar a acidez dos problemas sociais provocados pelo sistema de castas da Índia.

Uma pausa para o descanso…

Assim, “A Costureira de Sonhos” é um filme que vale a pena ser visto, mostrando que a questão social das empregadas domésticas sempre pode ser abordado de uma forma inédita e criativa. Desde “Roma”, que tinha um escopo mais afetivo que social, passando pelos filmes brasileiros de empregada que nos mostram a coisa de uma forma bem mais familiar, chegando até essa película que aborda a questão numa sociedade diferente da nossa como a indiana. Parece que os filmes de empregada estão virando uma espécie de gênero próprio.

Batata Movies – Tá Rindo De Que? Fazendo Graça Numa Época Sem Graça.

Cartaz do Filme

Um bom documentário brasileiro. “Tá Rindo de Que?”, que tem o ex-casseta Cláudio Manoel entre seus realizadores (os outros são Álvaro Campos e Alê Braga) tem como escopo analisar a produção cultural humorística no período 1964-1985, ou seja, durante o período da Ditadura Militar onde havia a obrigação de um relacionamento com a censura nos anos mais difíceis da repressão.

Carlos Alberto de Nóbrega. “Praça é Nossa” não é humor ultrapassado…

Dessa forma, o primeiro tema a ser abordado no filme será justamente “O Pasquim”, jornal que combatia abertamente a ditadura, cuja redação foi toda presa após o fatídico balão “Eu quero mocotó!” (frase de uma música famosa da época) sobre a cabeça de D. Pedro I, numa reprodução de “O Grito do Ipiranga” de Pedro Américo. Para falar de “O Pasquim”, temos depoimentos de Jaguar, Chico Caruso, Sérgio Cabral (o pai, pelo amor de Deus) e até um trechinho antigo de Paulo Francis. O mais curioso foi ver os humoristas “reclamando” da abertura política, quando a censura arrefeceu um pouco e eles se viram na obrigação de produzir mais conteúdo, ou seja, trabalhar mais e com mais eficiência, pois não haveria mais a censura para “cortar” as coisas, quando se produzia qualquer besteira para a censura cortar.

Jaguar é um dos entrevistados…

Mas o documentário não ficou somente aí. Carlos Alberto de Nóbrega também deu depoimentos sobre o seu programa “A Praça é Nossa”, antigo “A Praça da Alegria”, inventado por seu pai, Manuel de Nóbrega, e falou sobre o estigma de “humor ultrapassado” do programa. Ainda na TV, falou-se de figuras como Jô Soares, Ronald Golias, Zeloni (“A Família Trapo”), Agildo Ribeiro, Paulo Silvino, Renato Corte Real (“Faça Humor, Não Faça Guerra”, “Satiricon”), Chico Anysio (“Chico City”), “Os Trapalhões” e o grupo musical “Asdrúbal Trouxe O Trombone”, com figuras como Evandro Mesquita, Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Patrícia Travassos e Nina de Pádua. Ou seja, é um documentário que consegue fazer um mapeamento muito eficiente de todas as matizes de humor nesse período de 21 anos.

Agildo Ribeiro…

O formato do documentário foi um daqueles bem convencionais, sem uma narração em terceira pessoa, mas com muitas e muitas entrevistas dos personagens principais de todo aquele processo, cujas falas são ilustradas por um farto material de imagens de arquivo que, obviamente, despertavam risos da plateia. Foi também uma oportunidade ímpar da gente matar saudades de muitas figuras que já se foram, tais como: Paulo Silvino, Dercy Gonçalves, Agildo Ribeiro, Golias, Mussum, Zacarias…

… e Chico Anysio, exemplos de humor politizado na TV

Quando a gente se lembra que fazer humor é algo muito difícil, pois uma piada só tem graça quando contada da primeira vez e o humorista precisa constantemente se renovar, percebemos como esse documentário é importante, pois ele mostra a nós o alto grau de inventividade de nossos humoristas, já que há vários sub-gêneros do humor e da comédia apresentados durante a exibição da película.

Evandro Mesquita, do “Asdrúbal Trouxe O Trombone”…

Ou seja, não havia somente uma crítica política e social no humor da época da ditadura (embora essa crítica fosse mais predominante) , mas também um humor como o da “Praça É Nossa”, “A Família Trapo” ou até uma coisa mais circense como “Os Trapalhões” que tinham espaço naqueles dias. A transição do rádio para a TV é mencionada, onde um dos maiores paradigmas foi o programa “Balança Mas Não Cai” e um de seus principais quadros, “O Primo Pobre e o Primo Rico”, interpretados, respectivamente, por Brandão Filho e Paulo Gracindo, primeiro no rádio e depois na TV.

Claudio Manoel é um dos realizadores…

Assim, “Tá Rindo de Que?” é um excelente documentário que mapeia com muita eficiência a produção cultural humorística dos anos da Ditadura Militar. Produção cultural humorística essa que se revela altamente prolífica, com direito a críticas político-sociais, mas também com conteúdos populares e também circenses. Para dinossauros como eu, foi também uma viagem no tempo, onde deu para matar as saudades de humoristas queridos que já não estão entre nós. E o final do documentário já deixou anunciado que haverá uma continuação, falando do humor dos tempos da democracia. Confesso que aguardo ansiosamente. Mas, por hora, vale muito a pena prestigiar essa primeira parte.

Batata Movies – Mademoiselle Paradis. Aparências E Pensões.

Cartaz do Filme

Uma perturbadora co-produção Áustria/Alemanha. “Mademoiselle Paradis” conta a história real da pianista Maria Theresia Paradis (interpretada pela bela Maria Dragus), que vivia na Áustria do século 18 e era cega. Esse é um filme que mostra a venalidade humana em fortes cores e como uma mocinha, a princípio indefesa perante tudo isso, cresce e se fortalece para viver nesse mundo. Mais uma vez os spoilers serão necessários.

Uma pianista cega…

Paradis, apesar de seu mal, era uma exímia pianista e servia como uma espécie de suporte para seu pai e sua mãe, que ganhavam uma pensão em função das apresentações da filha. O semblante cego da moça causava muita estranheza e ela era fortemente controlada por sua mãe, que dizia como ela devia se portar, falando até como usar suas expressões faciais. Os pais, incomodados muito mais com a má impressão dos olhos cegos de Paradis, buscam a ajuda de um médico, o doutor Franz Anton Mesmer (interpretado por Devid Striesow). Sua terapia, revolucionária para a época, consistia em usar magnetismo para curar diversas doenças.

Pais ambiciosos…

Inicialmente, Paradis estranhou muito o ambiente, que tinha até pacientes com esgotamento nervoso agudo. Mas, com o tempo, a moça foi se adaptando, fez amizade com uma criada e passou até a enxergar cores e vultos, além de estabelecer um forte vínculo com Franz. O grande problema é que o médico, para ser aceito pela sociedade, precisava submeter Paradis, assim como seus pais faziam, a testes públicos para provar o êxito de sua medicina.

Um controle feroz…

Só que, com uma visão mínima, Paradis não mais conseguia se concentrar em suas apresentações de piano, pois as teclas lhe pareciam embaralhadas, o que tornava seus recitais um fracasso retumbante. E aí, a pobre moça era engolida de forma impiedosa pelos membros da alta sociedade que a ridicularizavam publicamente. Isso provocava a ira dos pais que, ao invés de ficarem do lado da filha e do médico, tinham um comportamento igualmente agressivo, que acabou resultando na saída de Paradis da casa do doutor.

Paradis irá começar um tratamento com o Doutor Mesmer…

O filme parece ter um desfecho infeliz. Em parte isso realmente aconteceu, pois se Paradis tivesse continuado o tratamento (ainda considerado um tanto revolucionário para os dias de hoje), provavelmente ela teria tido alguma visão, mesmo que limitada. Entretanto, a moça muito cresceu e amadureceu com essa experiência, peitando frontalmente os pais e, mais tarde, se tornando uma pianista e até professora de música, como é dito nos créditos finais. Só é de se lamentar que poucas de suas composições tenham sobrevivido e chegado até nós. Coisas de uma sociedade de Antigo Regime para lá de machista.

O tratamento podia ser muito difícil…

A produção do filme é muito bem cuidada. Temos lindas locações e um figurino esplendoroso, o que colocava a gente no ambiente do século 18, tanto aquele dos livros de História e de Arte, quanto aqueles que estão mais escondidos, onde nada havia de glamouroso como, por exemplo, os tratamentos de médicos anteriores a que Paradis era submetida, que mais prejudicavam a saúde e enchiam seu couro cabeludo de pus. Ecos da medicina menos desenvolvida da Europa no período. Mas, preciosa mesmo, foi a captura da empáfia da cultura de Antigo Regime, onde as aparências contavam muito mais do que qualquer coisa, até a vida e a felicidade de uma filha. Nesse ponto, a diretora Barbara Albert e a roteirista Kathrin Resetarits foram perfeitas. Lembrando sempre que a história é baseada no romance de Alissa Walser.

A moça era submetida a testes constantes…

Assim, “Madeimoselle Paradis” é um programa imperdível, pois é um drama histórico bem construído, com personagens bem elaborados e que mostra de forma contundente aspectos da cultura de Antigo Regime. Vale muito a pena dar uma conferida.