Batata Movies – Mormaço. Mirou No Que Viu, Acertou No Que Não Viu.

Cartaz do Filme

Um filme brasileiro muito perturbador. “Mormaço” é uma daquelas películas que apresenta um plot twist tão violento que você simplesmente fica sem ação. Confesso que a experiência foi um pouco decepcionante para mim e que é importante pensar um pouco mais sobre o que foi visto. Entretanto, vamos aqui tentar colocar os pensamentos no lugar e expor as impressões. Obviamente, os spoilers serão necessários.

Ana, uma advogada em busca de justiça…

O filme tem como foco principal a advogada Ana (interpretada pela bela Marina Provenzanno), que defende os direitos dos moradores da Vila Autódromo de continuarem a viver em suas casas. A comunidade é vista pela prefeitura do Rio de Janeiro como um entrave para as obras das Olimpíadas de 2016. Essa difícil missão afetará muito Ana, que passa por um problema semelhante. O seu prédio está na alça de mira de uma rede de hotéis para ser comprado e demolido. A advogada, então, passa por uma pressão igual a dos moradores da Vila Autódromo no âmbito de seu lar. E logo, as consequências disso virão: a moça começará a ter erupções de pele que progressivamente alastram por todo o seu corpo e seu médico não consegue encontrar a causa. Dentro de todo esse contexto, a história se torna um rosário de agonias e injustiças que massacram a cabeça do espectador até o seu (mau) desfecho.

Uma comunidade sob ameaça…

O filme cumpre muito bem o seu papel de tirar o público de sua zona de conforto. Tudo incomoda demais: as erupções de pele de Ana, a injustiça social com a comunidade, a constatação de que essa injustiça social também pode se fazer presente na não tão encastelada classe média alta da Zona Sul. Só que o filme não trilha o caminho esperado. Esperava-se algo mais documental, mais focado na questão social da comunidade da Vila Autódromo, mais voz para os moradores. Há até cenas reais de demolição da Vila Autódromo. Entretanto, a coisa ficcional deixa os moradores mais como uma espécie de pano de fundo das situações insólitas pelas quais a cidade do Rio de Janeiro passa. Esse é um filme mais focado na protagonista do que em qualquer outra coisa. E a forma extremamente agônica com que ela foi tratada pelo roteiro é perturbadora. Tivemos, então, ao invés de um drama social, um forte drama psicológico.

Moradores desalojados…

Agora, se tem uma coisa que incomoda, e muito, é o desfecho. Em primeiro lugar, ele é insuficiente. Os entusiastas do filme podem até dizer que esse desfecho deu liberdade para o espectador construir o seu próprio. Entretanto, o grau de pressão psicológica imposto pela película fez com que a gente merecesse um fim melhor, depois de 97 minutos de desconforto e perturbação. Agora, o que irritou mais foi o plot twist, violento demais, trocando os gêneros do filme. Entramos na sala de projeção pensando em ver um drama mais social. Durante a exibição, constatamos que se trata mais de um drama psicológico. Mas, perto do fim, o filme carrega nas tintas do… terror (???). Tal mistura de gêneros não torna a coisa mais interessante, mas sim sem sentido e até um tanto tresloucada. E o pior: esse plot twist tão violento nos minutos finais tem toda uma preparação para se chegar a um clímax apoteótico e pirotécnico. E aí, vem os créditos finais. Ou seja, nem foi mostrado o violento ponto de virada da história ao seu final. Deixa para o espectador montar a sua própria diegese. Ainda assim, não me parece algo satisfatório.

E tome pereba!!!

Dessa forma, “Mormaço” atira no que vê e acerta no que não vê. Só achei pena conhecer o trabalho de Marina Provenzanno nessas circunstâncias. Como o filme era focado demais na protagonista, que ela encarasse um pouco mais a jornada artificial do herói. Seria melhor do que ver uma moça bonita toda fragilizada por um monte de perebas alegóricas que retratavam uma degradação imposta pela política desumana de remoções. Pelo menos, ficou essa mensagem.

Batata Movies – O Silêncio Dos Outros. O Mal Da Anistia.

Cartaz do Filme

Uma excelente co-produção Espanha/Estados Unidos. “O Silêncio dos Outros” é um documentário que foi produzido por Pedro Almodóvar e fala de cicatrizes. Ou melhor, de verdadeiras feridas abertas que doem e sangram até hoje na Espanha. E por que elas não se fecham? Por causa de uma palavra que é muito conhecida de nós, brasileiros, e que também mantém muitas feriadas abertas por aqui: a anistia. Vamos precisar de spoilers para poder analisar esse documentário.

Só quer ser enterrada com a mãe…

Todos nós sabemos que o fascismo foi algo abominável e que provocou severas ditaduras na Europa. Na Itália, o fascismo durou cerca de duas décadas. Na Alemanha, o nazismo durou doze anos. Agora, imagine um regime fascista que tenha durado mais de trinta anos? Isso aconteceu na Península Ibérica. O salazarismo português durou quarenta e um anos e o franquismo espanhol trinta e oito anos, o que levou a tudo aquilo que podemos esperar de regimes muito autoritários. No caso espanhol, optou-se, após o fim do regime, em votar-se uma lei de anistia para simplesmente se colocar uma pedra sobre o assunto e se enterrar para sempre o passado. Esse tema virou um tabu na Espanha e não é nem ensinado nas escolas, completamente silenciado e apagado da memória. Mas as vítimas do regime permanecem lutando para manter vivas as memórias de seus entes queridos e, ainda, acionar a justiça contra torturadores e assassinos ainda vivos. O documentário mostra justamente a saga dessas vítimas do franquismo por justiça. Existem vários casos dentre essas pessoas: o torturado que quer que seu torturador seja julgado (eles moram na mesma rua, praticamente um em frente ao outro); a filha, já em idade avançada, que quer apenas ser enterrada com a mãe, que foi morta pelos falangistas franquistas e provavelmente se encontra sepultada numa vala coletiva sem identificação à beira da estrada que passa pelo vilarejo onde vivia; um igual caso de uma senhora em idade avançada que quer ser enterrada com o pai.

Sendo obrigado a conviver com o torturador pela vizinhança…

Neste caso em específico, temos uma constatação macabra do que foi o franquismo. Há vários cemitérios na Espanha com túmulos ricamente adornados de franquistas e, na mesma necrópole, uma área fechada ao público onde estão as valas coletivas de executados pelo franquismo sem identificação (só há lápides, colocadas provavelmente pelas famílias dos executados, com a indicação da vala coletiva). Em algumas dessas valas coletivas, marcas de tiros ainda podem ser vistas nos muros que ficavam atrás dos executados, numa testemunha gritante de um genocídio institucionalizado. Houve, também, um imoral sequestro de bebês de filhos de opositores (e, posteriormente, até de famílias mais pobres) que eram entregues para simpatizantes do regime, um fenômeno semelhante ao que aconteceu durante a ditadura militar argentina. O detalhe é que, no caso argentino, estima-se que cerca de quinhentos bebês tenham sido sequestrados de seus pais; como a ditadura franquista, por sua vez, durou bem mais tempo, essa estimativa no caso espanhol sobe para milhares ou até dezenas de milhares de bebês.

Voltando ao local das prisões e torturas…

Como os algozes franquistas estão protegidos pela lei de anistia na Espanha, as vítimas do franquismo decidiram abrir o processo em outro país, mais especificamente a Argentina, onde os militares acusados de atrocidades em sua ditadura foram julgados e punidos. Mas, por se tratar de um processo em outro país, o caminho é muito tortuoso e difícil, sem falar que a própria justiça espanhola coloca muitos empecilhos no caso, até porque muitos franquistas simplesmente permaneceram em postos do governo depois da transição democrática. Até o fechamento do documentário, a luta das vítimas ainda continuava, embora tenham acontecido pequenas vitórias como o reconhecimento do corpo do pai daquela senhora que queria ser enterrada com ele. Mas ainda há muito ódio pairando na Espanha. Um dos poucos monumentos às vítimas do franquismo, por exemplo, apareceu com marcas de bala no corpo de uma das estátuas. O escultor do monumento disse que agora sua obra estava completa.

Nem monumento às vítimas escapa do ódio…

Assim, “o Silêncio dos Outros” é um documentário fundamental, para se ver, ter e guardar, onde o cinema cumpre a sua função de denúncia de injustiças. Só é doloroso saber que em nosso país há casos semelhantes, igualmente silenciados. i

Batata Movies – Varda Por Agnès. Testamento Cinematográfico.

Uma das maiores cineastas de todos os tempos…

Esse ano houve um dia de muita tristeza, quando Agnès Varda nos deixou a 29 de março aos 90 anos. Um dos nomes da Nouvelle Vague, Varda entrou com tudo nesse “Clube do Bolinha” e foi muito inovadora. Com uma alma de artista, ela transitou por diversos campos da arte além do cinema, sempre esbanjando uma criatividade e uma porralouquice para lá de sedutora. Apesar de ela ser multimídia e “atirar para todos os lados”, sua produção artística teve um desfecho, por assim dizer, cartesiano.

Zoando consigo mesma…

A diretora fez em seu último filme um balanço de sua trajetória. Praticamente um testamento, um legado de sua prolífica vida. Dói um pouco o coração quando a gente se lembra disso vendo o filme. Mas Varda era tão vivaz que logo nos esquecemos de qualquer tristeza e mergulhamos de cabeça em seu mundo, como se ela pegasse em nossas mãos e nos levasse até lá com uma leveza delicadíssima e um poder de persuasão infinito.

Reciclando a própria arte. Fotogramas como paredes de uma casa imaginária…

É claro que o documentário tem como mote a sua produção cinematográfica. Lá, podemos ver Varda em vários períodos e filmes que produziu e de como esses filmes têm uma relação íntima com sua vida. Chama muito a atenção o seu filme que homenageava os cem anos do cinema (um retumbante fracasso de bilheteria), mas que reuniu megaestrelas como Catherine Deneuve, Robert de Niro, Alain Delon, Hanna Schygulla, Jeanne Moreau.

Varda e as batatas…

Dá para perceber como nossa homenageada aqui tinha lastro com os medalhões. Outro detalhe que chama a atenção foi a reciclagem de suas latas de filmes. Com a era digital, os filmes de 35 mm ficaram obsoletos e encostados. Varda então os usa como material para suas exposições de artes plásticas, onde o cinéfilo vai poder ter contato com os afetuosos fotogramas.

Com o fotógrafo JR

Ainda, Varda era também uma artista preocupada com o meio social em que vivia, e retratou as pessoas pobres que viviam da xepa das feiras, ou de pessoas que pegavam no campo batatas que eram descartadas por simplesmente estarem fora de padrões de mercado.

Dando visibilidade aos anônimos…

Ela, inclusive, fez obras de arte com essas batatas descartadas, o que levou a uma exposição onde ela mesma se fantasiava de batata (!!!). Ou seja, Varda sempre nos surpreende de uma forma positiva e engraçada. Por fim, seu filme com o fotógrafo JR, onde eles viajam pela França fazendo fotos gigantes de pessoas comuns, usando-as para ornamentar casas, prédios, galpões, dando visibilidade aos anônimos da sociedade.

Ela vai fazer muita falta…

Assim, “Varda por Agnès” é a chance que o cinéfilo mais devoto tem de se despedir dessa importante artista da Nouvelle Vague e um exemplo vibrante de vida. Uma artista original que atuou vividamente em vários campos da arte. Um programa imperdível. Agnès Varda vai fazer falta. E muito.

Batata Movies – Wajib, Um Convite De Casamento. Visões De Mundo Conflitantes.

Cartaz do Filme

Uma excelente produção palestina. “Wajib, Um Convite De Casamento” é mais uma dos filmes sobre o inesgotável tema da questão árabe-israelense. Só que, desta vez, o campo de batalha se passa dentro do próprio cerne palestino, tendo como pano de fundo a relação entre pai e filho. Vamos lançar mão de spoilers aqui.

Pai e filho numa importante missão…

O plot é muito simples. Abu Shadi (interpretado por Mohammed Bakri) e seu filho Shadi (interpretado por Saleh Bakri) viajam pelas ruas de Nazaré para distribuir convites de casamento da filha da família. O que parece ser uma história muito morosa e simplória, tem nas suas entrelinhas a grande força. O filho, Shadi, é um rapaz que vive na Itália, exerce o ofício de arquiteto, e já não está muito apegado às práticas e tradições do povo palestino. Já o pai, Abu, é o oposto. Nunca tendo saído de Nazaré, ele é uma espécie de guardião da tradição e se incomoda um pouco com o jeito moderno do filho. Ou seja, mais uma vez o embate tradição – modernidade se dá aqui. Mas, desta vez, há um elemento a mais, pois a questão entre judeus e palestinos introduz novos parâmetros para discussão.

Uma noiva…

E a diretora e roteirista Annemarie Jacir não economiza na discussão, com um lado mais virtuoso e outro mais problemático. Aqui, a tradição e a modernidade dialogam em pé de igualdade, cada uma com suas virtudes e defeitos. Vejamos. O jovem Shadi, é adepto de uma sociedade mais livre e menos apegada às tradições. Mas não se conforma que o pai Abu convide um amigo judeu para a festa de casamento. Shadi vê o judeu como um censor do sistema educacional palestino, proibindo a eles o estudo de sua própria história palestina. Já Abu vê o judeu como um amigo, mas também com uma pessoa que tem um poder demasiado grande para fazer o mal. Logo, é melhor para Abu ter uma coexistência pacífica com esse amigo-inimigo, algo que Shadi não aceita de jeito nenhum. Por outro lado, a mãe da família fugiu com outro homem e foi morar no exterior. Agora será a vez de Shadi pedir tolerância para o pai, pois a mãe queria descobrir mais o mundo, respirar novos ares, etc. E o pai não se conforma com a possibilidade da ex de não ir ao casamento, já que o novo marido está doente e pode morrer a qualquer momento. Na verdade, fica muito difícil a gente tomar partido de pai ou filho.

Distribuindo convites de casamento…

Os dois possuem motivos altamente justificáveis para manter suas convicções. Shadi não se conforma com o amigo judeu do pai mas ele também foi embora e não ficou para enfrentar a situação de duro domínio israelense. Por outro lado, Abu pisa em ovos para poder sobreviver num ambiente violento, mas até quando ele continuará a tomar uma postura tão submissa? Ainda, uma mágoa tão grande quanto perder a esposa para outro homem é muito difícil de ser superada. Mas, até onde ficar remoendo isso? Dá para perceber como a película é muito rica em reflexões de vida e extremamente complexa.

Momentos de desentendimento…

Outro ponto que o filme deixa bem claro é o grau de degradação que a população palestina passa com a ocupação israelense. Muito lixo espalhado pela rua, pessoas se comportando de forma agressiva umas com as outras, soldados israelenses andando armados de fuzis em plena população palestina e ainda entrando em suas lojas. O filme consegue ter um clima bem ácido nesse contexto. Mas também temos interessantes amenidades, manifestas principalmente nos convidados que recebem o convite em suas casas. Temos todo um espectro de personagens bem superficiais mas nem menos interessantes por causa disso, que é uma coisa que ajuda muito a prender a atenção do espectador.

Sob a sombra de quem oprime…

Dessa forma, pode-se dizer que Wajib é um grande filme, pois aborda novamente a questão da tradição e da modernidade, saindo do maniqueísmo e analisando virtudes e defeitos desses dois pólos. Para uns a tradição pode ser cheia de atributos e qualidades, enquanto que para outros, ela não passa de um atraso de vida. O mesmo pode acontecer com a modernidade. Tais visões de mundo também são complexificadas  pela situação de guerra e de conflito entre palestinos e judeus. Abraçar a modernidade é fugir das tradições e de seu povo? E abraçar a tradição, sobrevivendo pacificamente com seu algoz? É um ato de covardia ou de traição? Essas são as perguntas típicas de não possuírem a resposta correta, já que elas implicam numa pluralidade de reflexões. Aqui, só há uma certeza: Wajib é mais um filme imperdível.

Batata Movies – O Anjo. Mau Caratismo E Más Companhias.

Cartaz do Filme

Um filme argentino perturbador. “O Anjo” fala da história real de um bandido que sacudiu a Argentina em 1971, em plena ditadura militar. Vamos, mais uma vez, lançar mão dos spoilers aqui.

Um angelical psicopata…

Carlos (interpretado por Lorenzo Ferro) era um jovem rapaz de classe média que estava fora de todas as convenções do que seria um larápio: era bonito, com uma base familiar considerada sólida, estudava numa escola conceituada. Mas Carlos tinha outras “qualidades”. A principal delas era ser um perigoso psicopata que não tinha qualquer limite e via na ousadia do roubo seu modo de vida, onde ele amava a liberdade de transgredir tudo o que visse à sua frente. O problema é que ele exagerava, e muito, em seus delitos, justamente com o intuito de desafiar seus limites pessoais.

Com o amigo Ramón, entrará de cabeça no mundo do crime…

E não tinha qualquer pudor em matar. Carlos irá ter um companheiro de crimes, o colega de escola Ramón (interpretado por Chino Darín), cuja família não era muito chegada a atividades mais lícitas. Aqui, podemos destacar as atuações de Daniel Fanego, o pai, e Mercedes Morán, a mãe, mais oferecida e sensual do que nunca. Chamou muito a atenção essa família criminosa e amoral, onde Carlos se encaixa como uma luva, mas que também causa problemas por suas atitudes exageradas no seu novo ofício.

Aprendendo a matar com o pai de Ramón…

Outro detalhe que chama muito a atenção era o caráter andrógino de Carlos. Ele chegava a flertar com Ramón e rolava até um ciuminho, o que, para um psicopata, pode levar a uma situação fatal. Essa sexualidade aflorada aparecia nos roubos de joalherias, onde Carlos usava brincos se chamando de Marilyn Monroe e até de Evita. É claro que isso teve uma enorme repercussão da mídia da época, onde a ditadura militar estava a todo vapor, e provocou um clima enorme de curiosidade, dando a Carlos uma dimensão mítica no imaginário da época.

Levando as mocinhas para o mau caminho…

Mais uma curiosidade do filme: Carlos desafiava, como vimos acima, os estereótipos do bandido da época. Num momento do filme, até vemos sua face sendo medida, pois no pensamento da época, era possível “identificar” quem tinha propensão para o crime através das medições das dimensões do rosto, ou seja, as dimensões do rosto de uma pessoa negra seriam as mais propícias para quem tem propensão ao crime. Na verdade, essa técnica de “medição” era algo também feito no Brasil no início do século passado.

Um assassino frio…

É curioso notar como a ditadura argentina, em plena década de 70 do século XX, ainda usava uma técnica corriqueira nas primeiras décadas do século XX. Aliás, ainda fica mais uma curiosidade: de como os jovens amigos, parceiros de crime, estavam alheios ao autoritarismo da polícia na época e que só têm um contato mais aprofundado com todo o contexto político da época quando começam a ser perseguidos pelas forças do estado por seus crimes, revelando uma faceta da violência da época.

Ciúmes possessivos com o amigo…

E os atores? Lorenzo Ferro consegue convencer ao fazer um papel extremamente difícil, pois ele desperta sentimentos altamente conflitantes. Seu personagem tem um leve cinismo, é uma espécie de filho de comportamento bom sereno, mas pode ser também um assassino bem frio e repugnante. É realmente um personagem muito complexo que exige muito do ator. E, dada a juventude de Ferro, seu trabalho é muito marcante. Já Chino Darín pareceu ter um papel um pouco mais fácil, pois ele se portava muito mais de forma delinquente, com pouquíssimas nuances. É de se notar como ele estava mais parecido com seu pai, Ricardo Darín, provavelmente por seu corte de cabelo nessa película. Outra atriz que merece destaque é Cecilia Roth (sua presença aqui muito provavelmente teve a mão dos irmãos Almodóvar, que estão entre os nomes da produção dessa película), no papel da mãe de Carlos, que era extremamente complacente com o filho, convencendo bastante e sendo uma ótima aquisição ao elenco.

Chegando a situações extremas…

Dessa forma, “O Anjo” é um intrigante filme argentino que trata de uma história real que chega às beiras da repugnância pela maldade e comportamento fútil de seu protagonista. Um filme que mostra uma ótima atuação de um jovem ator como Lorenzo Ferro, que teve a difícil missão de interpretar um personagem bem complexo, onde um ar angelical e feminino anda de mãos dadas com uma psicopatia doentia. Um filme de grandes atores como Chino Darín, Mercedes Moran e Cecilia Roth. E mais um filme que mostra os assombros de uma ditadura militar. Vale a pena dar uma conferida.

Batata Movies – Amanda. Delicado, Mas Podia Ser Um Pouco Menos.

Cartaz do Filme

Um filme francês que dá pano para a manga para uma reflexão. “Amanda” lança mão de um expediente já batido quando se pretende fazer filmes fofinhos: usar crianças doces e meigas. Aqui, temos a menininha Isaure Multrier fazendo a protagonista Amanda, um poço de fofura, uma menina totalmente comportada e muito sensível.

Uma menina muito fofinha…

Infelizmente (alerta de spoiler), Amanda perderá sua mãe de uma forma bem trágica, através de um atentado terrorista muito traumático. A mocinha ficará, então, sob as responsabilidades do tio, David (interpretado por Vicent Lacoste), um jovem de 24 anos que poda árvores públicas e trabalha também alugando imóveis. Nem é preciso dizer que David tem pouca experiência em cuidar de uma criança pequena, além do fato de a perda ter sido extremamente traumática tanto para ele quanto para Amanda. Numa hora dessas, de momentos de extrema fragilidade, feridas do passado também se abrem. É que David nunca conheceu a mãe pessoalmente, uma inglesa que não mais retornou à França. Antes de morrer, a mãe de Amanda marcou uma viagem para a Inglaterra para assistir ao torneio de Wimbledon de tênis. Essa será uma boa oportunidade de David a Amanda conhecerem uma parente próxima que vive muito distante.

Um tio sensível e delicado…

Esse filme tem dois pólos que precisamos tratar aqui. Em primeiro lugar, a coisa é muito doce, muito delicada. Temos uma trama que gira basicamente em torno da relação entre Amanda e David. Sensibilizados pela dor de uma perda tão trágica, os dois praticamente têm somente um ao outro e precisam aprender a conviver com isso.

Irmãos unidos…

Dentro desse ritmo, o filme traz momentos muito singelos e prosaicos. É realmente uma película cheia de muita ternura e emoção, sendo essa uma grande virtude. Entretanto, tal coisa tão singela pode ser também um problema. E aí chegamos ao outro pólo: o filme parece soar muito artificial e superficial em alguns momentos. Numa situação real, não haveria espaço para tanta singeleza e até letargia. Perdas violentas levam a reações violentas. David não podia ter apenas acessos de choro o tempo todo. A revolta tem que aflorar aqui. Isso é algo normal numa situação tão extrema quanto essa. Por outro lado, Amanda chega até a levar uma advertência, mas isso é apenas citado no filme.

Dividindo uma perda…

Seria interessante entender por que a menina levou a punição. No mais, só o choro compenetrado de ambos os protagonistas. Infelizmente, isso parece soar muito falso. Existe um espaço para o inconformismo e a revolta que são até sadios em tais circunstâncias e que não foi aproveitado. Nem a rusga do passado entre David e sua mãe foi melhor trabalhada quando da viagem do rapaz à Inglaterra. Civilizado demais para as agruras da vida real.

Tem horas que o choro é inevitável…

De qualquer forma, a atuação de Multrier merece um destaque todo especial, principalmente ao seu final, onde a menininha começa a ter um acesso de choro em plena quadra central de Wimbledon. À medida que seu tenista perde o jogo, ela se lembra do que a mãe falava de Elvis Presley, quando ele “deixa o prédio do teatro onde fez seu show” e isso foi anunciado para as fãs. Desde então, a expressão “deixar o prédio” significa o fim de algo. A mocinha, ao ver seu tenista perdendo, vê o fim, assim como sua mãe teve um fim, e começa a chorar progressivamente. Realmente foi algo muito impressionante ver uma menininha atuar de forma tão profissional para a sua idade, sendo esse o momento do filme que vale o ingresso.

Uma nova vida a dois…

Assim, “Amanda” é um filme onde sua grande virtude – a delicadeza – pode ser também o seu maior problema. A ternura envolvente é excessiva e implausível, mas ainda assim cativante, o que faz essa película valer a pena.

Batata Movies – Sobibor. Doloroso E Catártico.

Cartaz do Filme

Uma notável co-produção Rússia/Alemanha/Lituânia/Polônia. “Sobibor” é mais uma produção do vasto rosário de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. Mais um filme que fala do genocídio nazista. Mais um filme que fala dos horrores de um campo de concentração. Aí, o leitor pode se perguntar: então é mais do mesmo? Não, não é. Pois Sobibor é visceral. Sobibor é catártico. Sobibor traz um fio de esperança. E tudo baseado numa história real, o que é ainda mais incrível. Vamos lançar mão dos spoilers aqui.

Chegando ao campo… no início, parece tudo bem…

O filme mostra basicamente a política de extermínio dos nazistas. Então, desde cedo, somos condicionados a estar lado a lado com as atrocidades. A primeira cena de impacto é o assassinato de prisioneiras na câmara de gás, para já provocar um trauma forte no espectador. Com o tempo, mais fatos odiosos vão acontecendo, como as execuções aleatórias de prisioneiros (um tiro na cabeça a cada dez prisioneiros ajoelhados em fila) depois de uma tentativa mal sucedida de fuga, os chicoteamentos gratuitos e humilhantes, o trabalho escravo e os assassinatos cruéis em festas onde os prisioneiros eram usados como mulas a puxar carroças com nazistas até a exaustão, quando eram executados sob gargalhadas de oficiais da SS bêbados.

Dois homens em pólos opostos…

Ou seja, tudo é planejado meticulosamente para o espectador ficar com sangue nos olhos e desejar até o fundo da alma que os nazistas sejam trucidados mais tarde. Há um pequeno detalhe. O campo de Sobibor, em solo polonês, está para ser encerrado, pois estamos no ano de 1943 e os alemães já são espremidos de volta à Europa pelas tropas do Exército Vermelho vindas do Oriente. Ou seja, todos os prisioneiros serão exterminados ao fim das contas. É aí que um grupo de prisioneiros soviéticos procura planejar uma fuga do campo. Entretanto, é muito difícil colocar o seu plano em curso, pois a maioria dos prisioneiros, pelo medo intenso, prefere não desobedecer aos nazistas.

Pouquíssimo tempo para o amor…

Assim, os soviéticos terão que colocar o plano em curso por conta própria. A ideia é simples: atrair os nazistas, um de cada vez, a uma parte mais erma e isolada do campo, assassiná-los e esconder o corpo, até que todos sejam mortos e os prisioneiros possam sair pela porta da frente. Mas o plano será descoberto pelos nazistas e a fuga será improvisada e sob uma saraivada de tiros. Quatrocentas pessoas fugiram do campo, sendo que cento e cinquenta foram assassinadas pelos nazistas posteriormente e mais cento e cinquenta foram denunciados pelos habitantes locais e assassinados, segundo o que foi dito na película. Dos poucos que restaram, alguns ainda lutaram na guerra ao lado dos partisans. E um ex-prisioneiro ainda veio para o Brasil e conseguiu matar dezoito nazistas escondidos por aqui (!!!).

Participação de Christopher Lambert…

O filme tem duas curiosidades. A primeira é que a morte dos nazistas, por parte dos prisioneiros, é extremamente violenta. Como dito acima, o filme é todo preparado para a gente odiar os nazistas até o fundo da alma. Mesmo assim, se questiona a matança dos nazistas. Alguns prisioneiros se chocam ao responder com igual monstruosidade a monstruosidade dos nazistas, embora logo apareça um prisioneiro para dizer que a reação é altamente justificável, em função das atrocidades cometidas pelos alemães.

Momentos de violência explícita…

Outro detalhe interessante é a participação de Christopher Lambert (isso mesmo, o highlander McLaud!!!) no filme, como o chefe do campo, que foi ferido na fuga e, mesmo assim, sobreviveu até 1996, quando estava na prisão por seus crimes de guerra (definitivamente, vaso ruim não quebra). Há um momento muito pitoresco, quando o chefe do campo, baleado e sentado no chão, assiste à fuga dos prisioneiros e os vê cumprimentando tirando o chapéu quando passam por ele, para mostrar como não há rancor entre os prisioneiros que não participaram da revolta em si, somente da fuga.

Nazista com smartphone? Não, é só o intervalo das filmagens…

Assim, “Sobibor” é um filme imperdível, daqueles para se ver, ter e guardar. Um filme que mostra mais uma vez, de forma nua e crua, os horrores da guerra e do nazismo. Mas que também fala do único caso verídico de fuga bem sucedida de um campo de concentração alemão. Vale muito a pena assistir.

Batata Movies – Amor Até As Cinzas. Sem Eira Nem Beira.

Cartaz do Filme

Uma co-produção China/França/Japão de 2018. “Amor Até As Cinzas” é um filme perturbador pelo seu choque de realidade que por vezes trespassa o inusitado. Um filme difícil e um tanto doloroso de se ver. E com a curiosidade de se também espelhar a situação da China contemporânea. Vamos usar spoilers aqui.

Uma quadrilha com um grande líder…

O plot começa em 2001, onde testemunhamos, em plena China Comunista, o dia-a-dia de quadrilhas de bandidos bem ao estilo capitalista. Dentre esses criminosos, temos o casal Bin (interpretado por Liao Fan) e Qiao (interpretada por Tao Zhao). Os dois têm uma vida intensa juntos, regada a poder e riqueza. Até o dia em que o carro do casal é cercado por uma quadrilha que começa a espancar Bin. Para salvar o amado, Qiao começa a disparar uma pistola para afugentar os algozes. Ela acaba presa por porte ilegal de arma (a moça não diz que a arma é de Bin) e acaba pegando uma pena de cinco anos.

A namorada do chefão…

Quando sai da prisão, Qiao esperava a presença de Bin com braços abertos e grato por deu sacrifício, mas nada. Qiao começa uma procura pelo amado e descobre que ele saiu da vida de crimes, além de ter começado um novo relacionamento. Largada no mundo, Qiao vaga por aí sem eira nem beira, até encontrar novamente o amado anos depois, preso a uma cadeira de rodas. Ela passa a cuidar de Bin, que volta a se relacionar com seus antigos companheiros de crime, que agora o tratam de uma forma humilhante. O relacionamento de Qiao e Bin é bem mais ácido nesse momento, cheio de ressentimentos. Até que Bin, mesmo paraplégico, sai novamente da vida de Qiao, que fica comendo mosca ao final da película.

Uma mulher forte…

Essa bem podia ser uma história real. Vemos alguns exemplos melancólicos desse naipe por aí. De qualquer forma, Bin voltar a se relacionar com Qiao depois de estar paraplégico parece uma forçada de barra aqui. Agora, o desfecho até é compreensível, pois parece que Bin tomou consciência de todo o mal que provocava em Qiao e decidiu se afastar definitivamente. O que parece um final exageradamente deprimente, acaba podendo ser uma oportunidade de um recomeço total, embora tenha ficado um forte gosto de cabo de guarda chuva na boca do espectador.

Qiao se sacrifica pelo amado…

Esse é também um filme que fala sobre a China. A relação entre a tradição e modernidade é discutida aqui, mas de forma superficial, já que o relacionamento dos personagens protagonistas tem um peso maior na trama.

Depois, vaga pelo mundo…

De qualquer forma, o pai de Qiao é um exemplo de discurso socialista baseado na tradição. Já a passagem do tempo (a película conclui no ano de 2018) mostra a modernidade no uso dos celulares ou na Usina Nuclear que integra uma paisagem lamacenta. Entretanto, não se deixe enganar. Temos um drama pesado aqui como a atração principal.

E não encontra correspondência no seu sacrifício…

Um fator que deixa o filme um tanto enfadonho é o seu ritmo lento. De qualquer forma, a personagem Qiao é envolvente e prende a atenção do espectador.

Desfecho melancólico. Qiao fica sozinha…

Assim, “Amor Até As Cinzas” não é exatamente um primor pelo seu banho de água fria provocado pelo choque de realidade. Mas ainda assim é uma película que desperta uma reflexão no sentido de o que devemos planejar ou não no campo dos relacionamentos. Por mais melancolia que o filme desperte, pensar sobre as coisas da vida nunca é demais. E essa película o faz muito bem. Vale a pena dar uma conferida.