Um bom filme histórico. “Troca de Rainhas”, uma co-produção França/Bélgica, dirigida por Marc Dugain, aborda a cultura de Antigo Regime, onde o político institucional se mesclava fortemente com as relações pessoais. É o tipo de filme que busca ser fiel com a reconstituição histórica, apesar de um ou outro percalço.
No que consiste a história? O ano é 1721 e França e Espanha acabam de sair de uma sangrenta guerra e precisam sacramentar a paz de alguma forma. O regente francês, Felipe d’Orléans (interpretado por Olivier Gourmet) tem a ideia de “trocar princesas” com o reino espanhol para selar um acordo de paz. Ou seja, o herdeiro do trono, Luís XV (interpretado por Igor van Dessel), com ainda onze anos, recebe em casamento a mão de Maria Anna Vitória (interpretada por Juliane Lepoureau), uma infanta espanhola de apenas quatro anos (!!!), ao passo que o rei Felipe V da Espanha (interpretado por Lambert Wilson), casará seu filho, o príncipe das Astúrias (interpretado por Kacey Mottet Klein) com a filha de Felipe d’Orléans, Louise Elisabeth (interpretada por Anamaria Vartolomei).
Pois bem, a troca de princesas é feita, e logo podemos presenciar duas situações bem diferentes: Louise Elisabeth, por já estar na adolescência, repudia com veemência toda aquela situação de ser obrigada a se casar com uma pessoa que mal conhece, enquanto que o Príncipe das Astúrias se apaixona por ela. Por outro lado, Maria Anna Vitória vai, na sua pureza de criança, toda animada para se casar com Luís XV, pois vai se tornar a Rainha da França, mas aqui será o futuro monarca que não dará muita confiança para a menina. Em toda essa trama de casamentos arranjados, as coisas infelizmente não sairão muito como o planejado. Mas chega de spoilers por aqui.
O que chama muito a atenção nessa película? É o fato de se tentar explicar como funcionavam as dinastias europeias na sociedade de Antigo Regime. O mais desavisado pode até ficar chocado com todos esses casamentos arranjados, inclusive entre crianças. Mas isso era prática comum para selar acordos políticos entre nações, numa mistura radical do público com o privado, que o sistema capitalista conseguiu separar tão bem. Ou seja, não havia qualquer espaço para as historinhas de contos de fadas onde o príncipe e a princesa se casaram e foram felizes para sempre. Para se ter uma ideia, quando Napoleão Bonaparte dominava a Europa.,o príncipe regente de Portugal, D. João (futuro rei D. João VI) ofereceu D. Pedro (o mesmo do grito do Ipiranga), que tinha então apenas nove anos, para se casar com a sobrinha de Napoleão para convencer o Imperador francês a não atacar Portugal. Devo dizer aqui que essa ideia não colou muito e Napoleão não aceitou. Assim, não era de se chocar na época que o futuro rei e rainha da França já estivessem prometidos um ao outro com apenas onze e quatro anos, respectivamente. Outra coisa que chama muito a atenção é a enorme quantidade de doenças que esses membros de famílias reais europeias contraíam. Isso acontecia em parte não apenas por causa da medicina menos avançada da época, mas também porque havia um certo grau de parentesco entre esses membros de famílias reais dos países, com eles se reproduzindo entre eles, o que gerava pessoas com um sistema imunológico mais fraco (a própria expressão “sangue azul” vem do fato de que as pessoas, por serem muito debilitadas, ficavam pálidas com as veias azuis todas à mostra). Havia casos até de meninas hemofílicas que morriam na primeira menstruação. O filme toma muito cuidado de se mostrar como vários membros das famílias reais eram acometidos de doenças, algo que atormentava Luís XV, onde o menino dizia que todos os que estavam à sua volta morriam.
Se o filme mostra alguns aspectos relativamente fidedignos com relação à cultura de Antigo Regime, por outro lado há alguns elementos que parecem fugir um pouco disso como, por exemplo, a atitude muito empoderada de Louise Elisabeth em pleno século XVIII, que resistia bravamente a todas as imposições do sistema. Parece que foi algo exagerado e, pela posição de submissão da mulher na época, a impressão é de que a moça aceitaria com mais resignação tal situação. O choro de Felipe V ao se despedir da filhinha parece algo, por outro lado, mais aceitável, até porque o rei espanhol era muito instável emocionalmente. Aliás, Wilson mostrou um poder de atuação como poucas vezes foi visto. Ele foi excelente como o rei atormentado pela sombra de Luís XIV, seu antepassado e modelo de rei absolutista.
Agora, somente mais um pequeno spoiler. Maria Anna Vitória acabou não vivendo com Luís XV (ela foi singelamente “devolvida” para a Espanha) e, anos mais tarde, se casaria com D. José, que seria o rei de Portugal. Assim, Maria Anna Vitória é mãe de D. Maria I (a Louca), avó de D. João VI e bisavó de D. Pedro (o mesmo do grito do Ipiranga).
Assim, “Troca de Rainhas” é uma boa dica para quem gosta de Cinema e de História, pois é um filme que busca analisar com uma certa precisão as nuances da cultura de Antigo Regime e o faz numa linguagem fácil, sem que a narrativa seja muito elaborada, não se exigindo muito da atenção do espectador. É um filme de fácil compreensão que passa bem rápido, por sua qualidade. Isso sem falar no bom figurino e reconstituição de época. Vale a pena dar uma conferida.
Uma produção libanesa, com parceira do Iraque e da França. “Yara” é mais um daqueles filmes que trabalham a questão da relação entre a tradição e a modernidade. Essa abordagem já foi usada em outras análises de filmes aqui e ela pode assumir várias formas. Existem situações em que a tradição e a modernidade interagem entre si harmoniosamente e existem momentos em que esses dois pólos se veem de forma dicotômica e excludente. Há análises em que a tradição pode ser vista de forma virtuosa e a modernidade como a vilã da história, mas o oposto também ocorre. Logo, quando usamos esse enfoque, podemos ter muitas possibilidades de análise. Lembrando sempre que vamos lançar mão de spoilers aqui .
O plot gira em torno da vida de Yara (interpretada por Michelle Wehbe), uma menina adolescente que vive com sua avó, um tanto quanto isolada nas montanhas do Líbano. A vida é muito prosaica e tradicional, se resumindo ao plantio, à criação de animais, ao recebimento de mercadorias que uma espécie de tropeiro traz periodicamente. Até que um dia chega Elias (interpretado por Elias Freifer), um jovem que é o espelho da modernidade: diz que é viajado, tem a capacidade de levar Yara para viajar, etc., ou seja, joga uma baita duma conversa mole na menina.
E suas visitas passam a ficar cada vez mais frequentes, o que desperta um óbvio envolvimento entre os dois e que leva a desconfianças da parca vizinhança. A partir daí, o filme é levado de uma forma bem idílica entre o casal, que se limita a passeios na região, onde podemos perceber que há casas, escolas e igrejas abandonadas. Ou seja, praticamente todo mundo foi embora. Logo os dois se separarão, pois o pai de Elias conseguiu uma oportunidade do rapaz estabelecer a vida na Austrália e Elias pergunta se Yara quer ir junto. Mas a moça não deixa as montanhas, o que provoca uma despedida melancólica e ressentida.
O leitor pode perguntar: por que Yara não vai embora, assim como praticamente todos da região o fizeram? Aí pode entrar uma componente emocional forte: os pais de Yara haviam morrido e viveram na casa em que ela mora com a avó. Nesse ponto, a tradição ganha uma força arrebatadora, até porque está envolvida numa componente emocional da personagem protagonista, e repele qualquer investida de modernidade naquele microcosmos. Ou seja, o amor de Elias somente cabe se ele se adaptar as condições locais tradicionais exigidas por Yara. Fora disso, nada feito. A moça sente as dores de uma quebra de paixão adolescente.
Mas a película deixa bem claro que em pouco tempo ela se recupera e retoma sua rotina de vida normal, mesmo com algumas inconveniências, como as observações dos vizinhos com o que veste. O leitor pode até afirmar que isso é comum na cultura local, mas devemos ressaltar aqui que fica bem enfatizado no filme que Yara e sua avó são cristãos e não muçulmanos. Esse, aliás, é outro ponto que merece destaque, já que cristãos e muçulmanos estiveram em guerra no Líbano há algumas décadas e esse amor entre Yara e Elias também se materializou como as duas partes do antigo conflito, se constituindo numa espécie de Romeu e Julieta onde não eram rivalidades entre famílias que davam as cartas no processo, mas sim o embate entre a tradição e a modernidade.
Dessa
forma, “Yara” é um filme que, se tem um ritmo lentíssimo e um tanto prosaico,
bem ao gosto da tradição, ainda assim merece a atenção do espectador, pois
mostra como uma moça tão nova não abre mão de suas convicções e tradições em
disputa de um amor paternal e maternal perdido no qual ela quer se agarrar.
Vale a pena como curiosidade.
Uma produção italiana. “Emma e as Cores da Vida” traz novamente uma madura Valeria Golino em um dos papéis de protagonista. Essa vai ser uma história de amor entre uma cega e um mulherengo, com todos os clichês do mundo que já conhecemos. Entretanto, a novidade aqui está no fato de que a cegueira de Emma (interpretada por Golino) é uma personagem a mais no filme. Teo (interpretado por |Adriano Giannini), o outro membro do casal, conhece Emma numa espécie de experiência sensorial numa exposição, onde pessoas cegas e não cegas se confinam num ambiente inteiramente às escuras e interagem.
Numa dessas coincidências da vida, Teo depois vai reconhecer Emma pela voz e descobre que a mulher é médica osteopata. Assim, Teo irá marcar uma consulta e irá jogar todo o seu poder de sedução na médica, que acaba sendo conquistada. Mas Teo já tem uma namorada que é bem ciumenta e, por sua natureza mulherenga, cria uma situação que, obviamente, será uma verdadeira bomba relógio. O filme até passa em brancas nuvens em boa parte de sua exibição, antes do conflito inevitável. Será nesse momento que a película mostra o que mais tem de valor, que é mostrar que o deficiente visual não tem uma vida completamente restrita e que o aguçamento dos outros sentidos consegue dar um controle parcial de sua vida e uma certa independência.
Ou seja, o deficiente visual não deve ser visto com pena e sim como uma pessoa perfeitamente funcional com necessidades de inclusão. A personagem de Emma consegue trabalhar, consegue ter uma vida e perceber o mundo à sua volta. É claro que, no momento em que Emma descobre que Teo tem uma namorada, o problema da visão estereotipada dos deficientes visuais irá se aflorar, pois Emma acha que Teo somente está com ela mais por pena do que por amor. Mas o happy end muito clichê prova justamente o contrário.
É
uma pena que o filme, apesar de abordar o mundo dos deficientes visuais, seja
tão previsível. A coisa poderia ter sido um pouco mais elaborada, com o
triângulo amoroso mais trabalhado (talvez uma união das duas amantes contra o
mulherengo, por exemplo, criando situações cômicas e explorando ainda mais a
questão da deficiência visual). De qualquer forma, a tentativa de se fazer um
filme que alerte para o problema da inclusão é algo altamente produtivo, mesmo
que seja muito clichê.
De
qualquer forma, é muito bom rever Valeria Golino. Mesmo com uma certa idade, a
atriz não perdeu seu poder de atração e sensualidade, com sua voz baixa, um
pouco rouca e provocativa, assim como seu talento, que parece ter se aprimorado
com o tempo. Ela é uma atriz que foge do estereótipo falastrão e agressivo
atribuído aos italianos. É claro que no momento da traição houve a explosão
emocional, mas mesmo assim Valeria fez com que Emma não perdesse sua ternura,
candura e até uma certa fragilidade, o que aumenta a sensualidade da
personagem. Típico filme onde a gente paga o ingresso para ver a atriz.
Assim,
“Emma e as Cores da Vida” pode até ser um filme muito clichê, mas tem duas
virtudes: a de alertar as pessoas para os problemas da inclusão dos deficientes
visuais e a presença magnética de Valeria Golino, sempre muito bem vinda.
Apesar de uma película mediana, vale a pena a conferida.
Uma
co-produção Bélgica/França. “A Nossa Espera” é um filme que, a princípio parece
ser sobre uma situação privada e familiar. Mas, com o tempo, percebemos que a
película busca mostrar como situações cotidianas no ambiente público podem
afetar a vida privada das pessoas.
O plot é o seguinte. Olivier Vallet (interpretado por Romain Duris) trabalha numa empresa onde ele é uma espécie de representante de seus colegas perante a funcionária que ocupa um cargo de chefia. Olivier é do sindicato e precisa proteger os demais trabalhadores das investidas da empresa contra eles, que desrespeita seus direitos e pratica demissões. No ambiente familiar, Olivier precisa criar duas crianças com sua esposa Laura (interpretada por Lucie Debay). Apesar da tarefa ser muito trabalhosa, tudo parecia funcionar em harmonia. Mas algo também parecia estar errado com Laura, que tinha crises de choro em vários momentos. Até que, um dia, Laura simplesmente desaparece e Olivier precisa bancar a casa e seu emprego sozinho. É claro que o pai terá algumas ajudas da mãe e da irmã, mas ele vai precisar se adaptar aos novos tempos. E torcer para que sua esposa apareça.
Bom, por que o filme parece uma interferência do público no privado? Porque o sumiço de Laura pode estar atribuído aos vários problemas de ordem social presentes no filme. Vemos um clima onde os trabalhadores são constantemente ameaçados por demissões e por situações de penúria financeira. E isso afetava muito Laura, que trabalhava numa loja e via suas clientes passarem pela vergonha do cartão de crédito simplesmente não passar na máquina, ao ponto de ela ter crises de choro, um indício de crise de pânico. O fato da moça estar em dupla jornada de trabalho, tendo que trabalhar na loja e, ao mesmo tempo cuidar das crianças, é outro fator de sobrecarga. Tanto que, quando Olivier precisa cuidar das crianças e, ao mesmo tempo tocar seu trabalho, ele tem enormes dificuldades. Assim, a pesada rotina de trabalho e os problemas sociais que circundavam a família atingiam em cheio esta última. Talvez se o sistema não fosse tão cruel, essa família poderia sofrer bem menos danos que sofreu.
Com
relação ao desfecho da película, obviamente um happy end em tal contexto
estragaria tudo. Optou-se por uma situação em aberto, dando alguma esperança para
os personagens, mas ainda imerso num contexto um tanto desesperançoso de
realidade. Pelo menos, as convicções políticas de Olivier não se esmoreceram
mesmo com necessidades iminentes que poderiam desvirtuar seu caminho. E o mais
notável: a decisão que o Olivier tomou para sua família foi feita em votação
com seus filhos. Mais democrático impossível.
Dessa
forma, “A Nossa Espera” é um filme que, se num primeiro momento parece enfocar
exclusivamente a vida privada de uma família, o roteiro bem escrito mostra
paulatinamente que as desventuras familiares são provocadas por fatores
externos imersos no meio público. Fatores externos que são problemas sociais
provocados pela insensibilidade de um sistema que visa ao lucro e não tem
qualquer preocupação com aqueles que estão na cadeia produtiva, simplesmente
descartando-os quando são considerados prejuízo para o sistema. Por tudo isso,
“A Nossa Espera” se torna um filme indispensável e altamente recomendável.
Um interessante documentário. “Chá Com As Damas” fala de quatro divas do teatro e cinema inglês: Judi Dench, Maggie Smith, Eileen Atkins e Joan Plotwright. As atrizes se reúnem anualmente na casa de Plotwright para, no popular, “jogar conversa fora” e relembrar momentos da carreira e dos longos anos de amizade. Só que, dessa vez, elas permitiram que o encontro fosse filmado para ser transformado numa espécie de documentário.
A tarefa ficou a cabo do diretor Roger Michell (de “Um Lugar Chamado Notting Hill”). E tivemos um interessante resultado. Para quem pensa que o documentário seria exclusivamente uma reunião de quatro senhoras em uma mesa tomando água e conversando informalmente, a coisa surpreendeu, pois temos um filme recheado de imagens de arquivo que ilustram a conversa das divas.
E aí, podemos ver imagens das atrizes bem joviais (mostrando que elas eram extremamente belas nos seus dias mais gloriosos), em raros e preciosos momentos de atuação no teatro e no cinema. O relacionamento das atrizes com seus maridos também é mencionado, com um especial destaque da relação entre Plotwright e Laurence Olivier, o que lhe rendeu muitos problemas, pois parecia que a atriz só tinha um papel na companhia de um dos maiores atores da História pelo fato não de seu talento, mas pelo fato dela ser esposa do Olivier. O filme também proporciona muitos momentos engraçados onde as amigas relembravam episódios em comum do passado, algo que dava um sabor especial a película que, como deve ficar bem claro, tem um ritmo bem lento, mas não deixa de ser bem simpática.
Assim, “Chá Com As Damas” não deixa de ser uma interessante curiosidade sobre atrizes que já estamos acostumados há anos em acompanhar no cinema. Ver seus dias mais jovens acaba sendo um deleite para os olhos e nos dá uma noção um pouco mais aprofundada de suas prolíficas carreiras. Foi muito bom também recordar o bom e velho Laurence Olivier, não somente nos palcos e no cinema, mas também em sua vida privada, onde pudemos ter acesso a um pouco de sua intimidade com as atrizes protagonistas. Vale a pena dar uma conferida.
A
festa do Oscar esse ano começou com duas novidades. Em primeiro lugar, nada de
mestre de cerimônias. Alguns acharam isso bom, porque se evitaram algumas piadinhas
de gosto duvidoso, infelizes até. Por outro lado, se temos um bom Mestre de Cerimônias
(me lembro muito de Whoopi Goldberg e do “hors concours” Billy Cristal) a coisa
até flui bem e foi uma pena não termos essa figura esse ano. A segunda coisa
foi a redução do tempo da premiação: cerca de três horas e meia. Confesso que
isso me chateou mais, mesmo tendo que acordar cedo no dia seguinte, até porque
o Oscar acontece somente uma vez por ano e o gasto com tempo de TV não seria
uma exorbitância. Creio que valeria o investimento até por todo o clima de expectativa
(e audiência garantida) que o Oscar proporciona.
Mas, o que podemos dizer do que aconteceu na cerimônia em si? Foi uma noite em que parece que a Academia se redimiu do “Oscar Branco” dos últimos anos. Muitos filmes de temática negra entre os indicados, assim como premiações também direcionadas nesse sentido. A começar pela atriz coadjuvante, Regina King, de “Se a Rua Beale Falasse”, desbancando Emma Stone e Rachel Weisz em “A Favorita”. Sei não, mas preferia que esse prêmio tivesse sido dado a Stone, até porque ela teve mais tempo de tela do que King e uma personagem que exigia mais de sua atuação, no qual a moça correspondeu. O trabalho de King também foi bom mas sua personagem foi menos presente no filme como um todo. Já para ator coadjuvante, Mahershala Ali teve um Oscar muito merecido em “Green Book”, sendo praticamente um dos protagonistas do filme. Essa era uma categoria muito disputada, principalmente quando a gente se lembra de Sam Rockwell fazendo Bush em “Vice” e Richard Grant em “Poderia Me Perdoar?”. Para ator, a surpresa de Rami Malek em “Bohemian Rhapsody”, desbancando Christian Bale (meu favorito) em “Vice” e Willem Dafoe em “No Portal da Eternidade”. Se for para alavancar a carreira do jovem ator (que mostrou seu talento também no remake de “Papillon”), vale a estatueta. Mas que valia um prêmio aqui para um dos medalhões, valia. Para atriz, outra surpresa; Olivia Colman, de “A Favorita”, superou Glenn Close. Confesso que aqui achei o prêmio injusto. Preferia até Melissa McCarthy se Close não ganhasse. A premiação de Alfonso Cuarón para melhor diretor em “Roma” foi merecida mais por sua cinematografia (o Oscar de Fotografia para “Roma” foi, sim, merecido) do que pela direção em si, já que o filme poderia ter explorado um pouco mais a vida de preconceito das empregadas domésticas, o que parecia ser uma de suas propostas. Achei aqui que o prêmio de diretor caberia melhor para Spike Lee, pela sua forma de contar a inusitada história de “Infiltrado na Klan” com humor e, simultaneamente, tom de denúncia. Pelo menos, Lee levou a estatueta de Melhor Roteiro Adaptado e ainda fez um discurso anti-Trump, o que foi um dos pontos altos da cerimônia. Agora, sacanagem retumbante foi a força da indústria dar o Melhor Filme Estrangeiro a “Roma” e não a “Cafarnaum”, um dos melhores filmes do ano. A premiação de Melhor Animação para “Homem Aranha no Aranhaverso” foi muito merecida, mas se o critério mais artístico fosse adotado, “Ilha dos Cachorros” também poderia ter levado a estatueta, mesmo com uma história mais esquisita e tensa do que o Blockbuster divertido que foi “Aranhaverso”. Uma surpresa muito agradável foi para “Pantera Negra”. O melhor filme da Marvel de todos os tempos (na opinião desse humilde escriba) abiscoitou três estatuetas: figurino, design de produção (direção de arte) e trilha sonora. Foi a primeira vez que um blockbuster de super-herói recebe Oscars. E, particularmente, estou muito feliz que isso tenha ocorrido com “Pantera Negra”. Já os efeitos especiais ficaram para “O Primeiro Homem”, um filme que usa os efeitos sem ser de forma pirotécnica, com tiros, porradas e bombas, mas sim para deixar o espectador o mais íntimo possível das sensações da viagem num foguete e de como é a superfície lunar.
Os números musicais também deram o ar da sua graça e esquentaram a noite mais do que o normal. Foi simplesmente o Queen com Adam Lambert que abriu a festa, que nem preciso dizer mais nada. Aliás, “Bohemian Rhapsody” foi o grande vencedor da noite, pois abiscoitou quatro de cinco estatuetas que concorria. Além de Melhor Ator para Malek, ganhou os Oscars de Montagem (os mais puristas vão reclamar da cronologia fora de ordem, mas creio que isso foi mais uma proposta de roteiro), Mixagem de Som e Edição de Som. A decepção ficou por conta de “Vice”, que recebeu somente o prêmio de Maquiagem e Cabelo, merecidíssimo. Mas a parte mais emocionante da noite disparado foi o dueto de Lady Gaga com Bradley Cooper que ganhou o Oscar de Melhor Canção por “Nasce Uma Estrela”. Foi muito legal de ver os dois cantando juntos e toda a emoção de Gaga (que já comeu o pão que o diabo amassou na sua vida, com histórico de estupro e bullying) no seu discurso de agradecimento pelo prêmio de Melhor Canção.
Por
fim, o melhor filme, para “Green Book, O Guia”. Eu particularmente achei muito
merecido e era meu candidato. O filme despertou uma certa polêmica, pois a família
do pianista (esse filme é baseado em fatos reais) não gostou do roteiro escrito
pelo pai do motorista, que teria carregado nas tintas na amizade dos dois. Mas
ainda assim, acho que valeu pela história, nem pelo fato da componente do
racismo, mas sim pelo fato de que são duas figuras humanas que aprendem um com
o outro, estabelecendo um vínculo. E a questão de se carregar nas tintas com a
amizade, bem, o cinema, desde Melliès, nunca teve compromisso com a realidade.
Talvez com a denúncia, mas nunca devemos nos esquecer que a sétima arte é a
arte do ilusório.
Muito bem, essas foram as impressões do Oscar desse ano. Alguns criticam a premiação do politicamente correto em detrimento da arte. Pode até ser, mas creio que isso não deslegitima o talento de quem ganhou. Claro que houve surpresas e até injustiças (leia-se Glenn Close e “Cafarnaum”) mas isso não pode significar um olhar mais antipático para os vencedores, que tiveram seus méritos. Devemos nos lembrar que houve uma mudança de perfil nos eleitores da Academia. Cerca de dois mil novos membros foram eleitos num Universo de oito mil eleitores em todo o mundo. Isso obviamente provoca mudanças nos pontos de vista, o que não deixa de dar um certo dinamismo revigorante para uma instituição que deve ter começado excessivamente WASP. De qualquer forma, o grande prêmio não é a estatueta careca e dourada, que vai ficar nas prateleiras dos vencedores pegando poeira, e sim os filmes e as histórias contadas, não importam se ganharam a estatueta ou não, que mexem com a imaginação e emoções de cinéfilos ao longo de todo muito. Prefiro os DVDs dessas preciosidades na minha estante. E Oscar? Posso comprar um de plástico no Saara na época do Carnaval, sem querer desmerecer o glamour da cerimônia, obviamente. Esperemos, agora, pelo próximo ano. Antes de terminar, só mais uma coisa: na seção “In Memoriam”, nosso Nelson Pereira dos Santos foi relembrado, com muita justiça, numa prova de que nosso cinema é sim reconhecido lá fora, muito ao contrário do que ocorre aqui quase sempre.
Um filme que bota você perplexo. “Um Segredo em Paris” é curtinho (tem apenas cerca de 70 minutos), é existencial toda a vida e não se explica muito. Ou seja, parece uma película insuficiente em si mesma. Infelizmente, a gente precisa lançar mão dos spoilers para entender um pouco mais esse filme.
O plot é muito simples. Uma moça de fora de Paris, Mavie (interpretada por Lolita Chammah) divide um apartamento com uma amiga que, digamos, é muito apaixonada pelo namorado. No Café que frequenta, ela vê um anúncio que propõe um emprego cujo pagamento é a moradia num apartamento. Para fugir do constrangimento na casa da amiga, Mavie procura o emprego, que é numa livraria. O dono da livraria, Georges (interpretado por Jean Sorel), é um velho rabugento e de passado obscuro. A livraria é uma bagunça só e ele nunca vende um livro sequer, colocando ainda mais mistério em sua vida pregressa, que nunca fica clara. Mavie fica fascinada pelo ancião e se apaixona por ele que, volta e meia, desaparece. O relacionamento entre os dois nunca fica muito claro, até porque Mavie gosta de escrever e a moça imagina diálogos de amor entre os dois, confundindo totalmente o espectador sobre o que é imaginação ou realidade.
Se a gente pudesse dar algum apelido à diretora Élise Girard (que também assina o roteiro, em conjunto com Anne-Louise Trividic) esse poderia ser o de “Chacrinha”, em virtude de sua épica frase “Eu vim aqui para confundir e não para explicar, meu filho”. A história faz um verdadeiro jogo de gato e rato com o espectador, usando Mavie como mote principal. A personagem é aquela existencial clássica, que povoou enormemente a Nouvelle Vague. Dores de cabeça e depressões fazem parte da ordem do dia de Mavie. E aí, para se aliviar de toda essa pressão, a moça lê e escreve. Quando Georges entra em sua vida, sendo um elemento inteiramente novo, a moça ganha um combustível inovador para a sua escrita e imaginação. E aí, não sabemos mais o que é realidade ou fantasia no filme. Georges e Mavie iniciam um relacionamento um tanto platônico. Mas isso seria apenas fruto da imaginação de Mavie? O filme deixa indicado que sim. Mas outros momentos do filme, como a vinda de criminosos à livraria que, inclusive, são mortos, fazem parte da realidade ou da ficção de Mavie? Essa coisa que fica em aberto acaba sendo uma espécie de atração principal do roteiro, que pode ser apreciável, se encaramos a película de um ponto de vista mais lúdico, mas que pode ser um tanto perturbador, se encararmos o filme dentro da perspectiva de uma narrativa mais tradicional. O filme é, acima de tudo, um diálogo entre o objetivo e o subjetivo, com uma provável voz maior para o último.
Pelo menos, ao desfecho, a coisa tende mais para o objetivo, onde sentimos um pouco o gosto triste da amargura de Georges, que se retira de cena da história de uma forma um tanto melancólica, enquanto que a vida de Mavie passa a ter um pouco mais de graça ao encontrar um novo amor. É nesse momento que a moça abandona a escrita, o que dá um pouco mais de objetividade ao filme.
Dessa forma, “Um Segredo em Paris” é um filme que, por não fazer muita questão de se explicar, e fazer muita questão de confundir, acaba dando um certo trabalho ao espectador, que precisa se amalgamar com o objetivo e o subjetivo, tendo Mavie como uma espécie de norte, uma espécie de luz (?) no fim do túnel. Vale a pena pela curiosidade e pela experiência, embora a gente nunca possa se esquecer de que os filmes que abordam temas mais existenciais têm, em sua maioria, um ritmo excessivamente lento, o que é exatamente o caso aqui.
Mais
um filme esperado. “Assunto de Família”, de Hirokazu Koreda, foi o grande
vencedor do Festival de Cannes no ano passado e traz uma história muito
tocante. Uma história que nos faz pensar onde estão os verdadeiros valores que
nos tornam humanos.
O
plot é muito simples. Temos um grupo de pessoas consideradas “à margem da lei”
que decidiram viver juntas e constituir uma espécie de família, família essa
que consegue funcionar com muito mais harmonia e ternura do que as famílias
constituídas pelas pessoas ditas “de bem”, sem folha corrida na polícia ou com
um histórico de crimes. Por piores que sejam as condições de vida dessa
insólita família, eles vivem de forma muito unida. E as dificuldades não
impedem que eles vivam de forma bem feliz. Mas, infelizmente essa família, que
funciona de forma tão perfeita e harmoniosa, não durará para sempre e será
desmantelada pelo sistema de justiça, em virtude de seu passado de malfeitos.
A
primeira pergunta que vem à nossa cabeça quando assistimos a essa película é a
seguinte: o que é ser uma pessoa de bem? O que é ser um bom ser humano? O
grande paradoxo aqui é justamente o fato de que há famílias com conforto
material que são cheias de problemas pessoais e de relacionamento e possuem
pessoas sem antecedentes criminais, ao passo de que um grupo de pessoas que são
consideradas delinquentes pela justiça simplesmente se agregaram nas piores condições
possíveis, mas viviam com extrema harmonia, compreensão e preocupação pelo bem
estar um do outro, criando um paradigma perfeito de célula familiar. O diretor
Hirokazu Koreda foi perfeito ao buscar esse paradoxo, ainda mais num país que
prima tanto pela disciplina e pela honra como o Japão.
Uma
coisa que chama muito a atenção é perceber como a película tem a coragem de
mostrar como o Japão atual, um país que, dentro de nosso senso comum, parece
ser muito rico e desenvolvido, também tem seus bolsões de miséria e pobreza,
provando que não há paraísos utópicos por aí. Essa componente de denúncia social
talvez tenha chamado a atenção daqueles que premiam os filmes em Cannes para
esse filme, fora outras virtudes, como a forma singela e delicada com que os
personagens da casa se tratavam, sendo um verdadeiro exemplo de como as
famílias, principalmente as que estão em conflito, devem se relacionar.
Assim, “Assunto de Família” é um filme que merece toda a atenção do espectador, pois foi digno da Palma de Ouro que recebeu, já que ele consegue ser simples, delicado, terno e, principalmente, enfrenta alguns estereótipos que povoam nossas mentes quando falamos de pessoas à margem da sociedade. Definitivamente, quem vê cara não vê coração, a grande lição dessa película. Não deixem de assistir.