Batata Movies – Em Chamas. Mudando A Realidade Para Se Conseguir Uma Boa História.

Cartaz do Filme

Confesso a vocês que tenho uma certa dificuldade de relação com os filmes coreanos. Sempre os achei muito morosos e de difícil digestão. Ao assistir “Em Chamas”, tive um pouco essa impressão. Mas como sempre é bom a gente lutar contra nossos preconceitos e buscar uma segunda chance contra aquilo com o que implicamos no mundo, a gente tem que ir além nas nossas análises mais reducionistas. E aqui essa análise mais profunda trouxe uma perplexidade.

Um rapaz que precisa cuidar de uma fazenda…

Antes de mais nada, vamos ao plot, com spoilers. Temos aqui a história de Lee Jong Su (interpretado por Ah-In Yoo), um rapaz que tem um pai que acaba sendo preso por agressão, deixando uma pequena fazenda próxima à fronteira da Coreia do Norte à deriva. Assim, o moço precisa alternar seu tempo entre a cidade e o campo. Mas Su irá conhecer a jovem Shin Hae-Mi (interpretada por Jong-seo Jun), pela qual se apaixona. A moça se diz uma antiga amiga de infância de Su e relembra passagens que o rapaz não consegue se lembrar de jeito nenhum. Mi vai viajar para o exterior e pede que Su passe uns dias em seu apartamento, cuidando de seu gato que nunca aparece, mas que come a comida, bebe a água e deixa cocô na caixa de areia. Quando Mi retorna, ela traz a tiracolo Ben (interpretado por Steven Yeuh), um rapaz de outro estrato social, muito bem sucedido se comparado a Su e Mi, mas que consegue ser bem afável, com um ar um tanto blasé. Su fica com certo ciúme de Mi com relação a Ben, mas não quer transparecer. Ele percebe que há pulseiras e brincos no quarto da casa de Ben quando vai para lá. Mas Mi desaparecerá misteriosamente, deixando Su muito preocupado, enquanto que Ben continua com seu ar indiferente a tudo que acontece à sua volta. Su, por sua vez, encontra evidências de que Mi foi assassinada por Ben. E aí, Su irá tomar uma atitude radical. Uma atitude que seria óbvia para alguns, mas também que causa perplexidade para outros.

Um ambiente mais sofisticado…

Por que a perplexidade? Porque Su acredita que Ben assassinou Mi por algo muito circunstancial, o que poderia levar a uma conclusão precipitada das coisas. Mas, acima de tudo, Su dá um desfecho tão inusitado a todo o contexto muito em função do fato de que ele queria engatilhar a carreira de escritor e, ao resolver o problema do desaparecimento de sua amiga, ele também acabou achando a inspiração de sua história, escrevendo-a antes de tomar as atitudes que achava que devia tomar.

Uma amizade meio fragilizada ao pôr-do-sol…

O grande problema desse filme, assim como em vários filmes coreanos, que é o que mais me incomoda, é o ritmo extremamente moroso ao longo de toda a película, para termos nos minutos finais um acontecimento muito frenético com o desfecho logo em seguida. Ou seja, poderíamos ter um desenrolar mais complexo e duradouro da trama a partir do momento em que Su conclui que Ben assassinou Mi (se é que assassinou), tirando um pouco da morosidade do filme. Poderíamos ter uma visão de Mi do assassinato em si, a forma como Su tramou a sua reação com relação a Ben, a reação em si, etc. Ou seja, tirar um pouco a morosidade narrativa do filme e dar alguns minutos a mais de um ritmo um pouco mais dinâmico.

Filme tem duração excessiva e carece de dinâmica…

Assim, “Em Chamas” ainda não consegue tirar de todo a minha impressão de morosidade nos filmes coreanos, mas pelo menos trouxe um pouco mais de perplexidade no que se refere ao desfecho. Vale a pena dar uma conferida, mas prepare-se para um ritmo mais lento.

Batata Movies (Especial Oscar 2019) – Guerra Fria. Discutindo A Relação Em Torno Da Cortina De Ferro.

Cartaz do Filme

Um filme um tanto perturbador que concorre ao Oscar. “Guerra Fria” tenta a premiação em três estatuetas (Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Direção para Pawel Pawlikowski e Melhor Fotografia) e ganhou o prêmio de Melhor Diretor em Cannes. É mais uma daquelas películas que requenta a Guerra Fria e coloca o stalinismo como o responsável por todas as mazelas da humanidade, como se não houvesse mais outras fontes de mazelas no mundo. Mas é um filme que tem seu campo de atuação na área musical, valendo por essa curiosidade. Sem falar que é uma (louca) história de amor. Vamos lançar mão de spoilers aqui.

Um casal apaixonado, mas problemático…

A trama se passa ao longo de parte considerável da segunda metade do século XX e se ambienta em vários lugares da Europa, a começar por uma Polônia do pós-Segunda Guerra Mundial, onde Wiktor (interpretado por Tomasz Kot) faz uma seleção de cantoras e dançarinas para um grupo de folclore. Quando ele vê Zula (interpretada por Joanna Kulig), logo fica interessado na moça e a seleciona. O grupo folclórico faz as suas apresentações e tem uma carreira de sucesso. Mas as pressões stalinistas em cima do trabalho de Wiktor fazem com que ele fuja para o Ocidente, onde se estabelece na França, juntamente com Zula. Entretanto, ela não se adapta às relações sociais e à realidade do país capitalista e se manda, deixando Wiktor sentido. A partir daí, teremos uma sucessão de DRs intermináveis em ambos os lados da cortina de ferro. Com o passar das décadas, fica mais claro que o relacionamento entre os dois é impossível, provocando grande sofrimento. Até que o casal decide tomar uma medida drástica para pôr fim àquele tormento todo.

Uma vida na França que não deu muito certo…

Confesso que meu santo não bateu com o do filme. A vida do casal já era complicada demais em função das condições políticas e sociais em que viviam. E aí, a gente torce para que tudo dê certo. E até chega a dar certo, mas logo depois, eles mesmos, de uma forma ou de outra, melavam a relação novamente e iam para situações piores às que estavam.

Encontros e desencontros…

Chega uma hora em que você desiste dos dois e quer mais é que eles quebrem a cara de uma vez, pois não estão sabendo aproveitar as oportunidades. É como você achar um pedaço de filé mignon no meio de uma bandeja de carnes de segunda num self service sem balança barato e não comê-lo, pois está sem sal. E, para piorar, Zula ainda cantava uma musiquinha irritante, que tinha um “oi oi oi” muito do sem vergonha. Putz, confesso que, quando me lembro que esse filme está entre os finalistas para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e o dinamarquês “Culpa” não está lá, me dá um certo desgosto. Para a desgraça ser total, só vai faltar ele vencer “Cafanaum”. Pelo menos, o preto e branco do filme faz jus à indicação para Melhor Fotografia. Vá lá, que se dê essa colher de chá, só para não me chamarem de “hater”. Mas que não tive muita paciência com essa película, ah eu não tive não. E há muitas formas de se fazer um desfecho triste.

“Oi, oi, oi”…

Dessa forma, essa “Guerra Fria” estava bem gelada. Só recomendo pelas indicações ao Oscar que recebeu. Mas que a coisa é muito lenta e sem graça, ah isso é. Mesmo que todos os bonequinhos do mundo aplaudam de pé.

Batata Movies (Especial Oscar 2019) – Cafarnaum. Uma Senhora Porrada No Estômago.

Cartaz do Filme

Uma produção libanesa que entra como uma lâmina em nossos corpos. “Cafarnaum” é, até agora e sem a menor sombra de dúvida, o melhor filme desse ano e que concorre ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. É uma película de forte denúncia social que não deixa o espectador indiferente. A miséria e crueldade presentes na película estão lá com a nítida intenção de nos agredir e de nos tirar da indiferença das desigualdades do mundo. Pontaço para a diretora Nadine Labaki, que também co-assina o roteiro. Vamos lançar mão dos spoilers aqui.

Zain, de dar pena e espanto…

O plot gira em torno da trajetória de Zain (interpretado por Zain Al Rafeea), um menino de cerca de doze anos (ele não teve sua certidão de nascimento registrada), que vive numa enorme favela em Beirute com os pais e uma grande quantidade de irmãos. A família vive numa pobreza absoluta e todos precisam trabalhar, até os filhos menorzinhos. Maltratado constantemente pelos pais, Zain tem uma índole violenta e vê sua irmã vendida para o filho do senhorio do apartamento que alugam na primeira menstruação da menina.

A irmã de Zain, com o irmãozinho no colo, será vendida na primeira menstruação…

Revoltado, o menino foge de casa e encontra uma imigrante ilegal que o acolhe. Essa imigrante acaba tem um filho pequeno, Yonas, que Zain passa a cuidar, pois ela precisa trabalhar. Mas a moça acaba presa por ter um visto vencido, deixando Zain e Yonas sozinhos no mundo. Zain então precisa se virar para cuidar de Yonas, precisando sobreviver nas ruas de Beirute. Como se não bastasse todas essas dificuldades, Zain ainda será preso por tentativa de assassinato (os menores vão para a prisão) e, então, ele vai entrar com um processo contra os pais para que eles não tenham mais filhos, já que vivem em miséria absoluta, além do fato de Zain achar que eles não tem qualquer responsabilidade para criar filhos.

Zain e Yonas. Largados no mundo…

Ao buscar agredir o espectador com a crueza da miséria e dos problemas sociais, Labaki uma fórmula que alguns dirão que é um tanto manjada, que é a de usar crianças para comover a plateia. Pode até ser, mas Labaki consegue obter esse resultado sem qualquer clichê ou pieguice. Se ficamos com pena de Zain em alguns momentos, também nos assustamos com toda a revolta do menino. A pena total fica por conta de Yonas, que é uma criança tão pequena que ainda mama no peito e não fala, estando totalmente vulnerável às agruras de um mundo tão cruel.

Os pais de Zain. Também vítimas…

Outro detalhe em que Labaki acertou em cheio é o fato de que ela faz uma história em que não há mocinhos ou bandidos. Mesmo que as atitudes dos pais de Zain sejam odiosas, nós também percebemos que seus atos ocorrem em função dos severos problemas sociais que passam (o que, em absoluto, serve de justificativa para a forma como tratavam os filhos). Houve, apenas, dois “vilões”: os senhorios da família e um camelô que vendia vistos falsos e que queria vender Yonas para uma família. Mas o filme mais relativizou um maniqueísmo do que fez uso dele.

Uma imigrante ilegal…

Um aparente problema é o seu desfecho, onde optou-se por um happy end, o que destoaria de uma película que abraça francamente o choque de realidade. Mas pode-se dizer que essa opção é até compreensível, pois o espectador é tão agredido com desesperança ao longo de toda a película que esse final feliz seria o mínimo que se poderia dar ao espectador, como uma espécie de “prêmio” para o testemunho de tantas mazelas. Mesmo assim, tal happy end se deu nos momentos finais do filme, como se diz no popular “no apagar das luzes” ou “aos 48 minutos do segundo tempo”.

Nadine Labaki em ação. Diretora fenomenal!!!

Dessa forma, “Cafarnaum” (uma palavra que pode ser traduzida como “caos”) é um programa obrigatório e um grande nome para ganhar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro esse ano. A diretora Nadine Labaki consegue agredir o espectador com toda a miséria e problemas sociais usando as crianças para isso sem pieguice. É o típico filme que cumpre sua função social de denúncia. Imperdível.

Batata Movies – O Beijo No Asfalto. Assustadoramente Atual.

Cartaz do Filme

É impressionante a recursividade de Nelson Rodrigues na cultura brasileira, um indício de que sua obra é atemporal. E ele está de volta mais uma vez, agora sob a tutela de Murilo Benício, que escreve e dirige uma nova versão para “O Beijo no Asfalto”. E o que essa nova tentativa de descortinar Rodrigues nos traz? Ela tem o grande mérito de ser uma espécie de “história comentada” pelos próprios atores que interpretam a peça.

Estudando uma peça…

O plot é perturbador e tem tudo que identificamos em Rodrigues. Um atropelamento,uma vítima masculina moribunda (ou já morta?), um homem que beija essa vítima,num ato de compaixão, nada mais. O problema é que isso é visto por seu sogro e por um repórter sensacionalista que pretende transformar essa história num grande escândalo para salvar a pele de um amigo policial que estava mal na fita e que vai conduzir as fantasiosas investigações. A partir daí, o homem que beijou o atropelado tem sua vida devassada pelos jornais em virtude do conservadorismo da época, sendo até incriminado por um possível assassinato. Isto provoca um efeito dominó que detona várias subtramas que vão do amor físico de um pai para com sua filha até a paixão entre cunhado e cunhada (mais rodriguiano impossível), levando a um desfecho trágico.

Grande participação de Fernanda Montenegro…

Como o filme é uma espécie de “história comentada”? Vemos isso logo em seu início,quando temos uma mesa com vários atores debatendo sobre a peça e lendo seus papéis. Dentre eles estão figuras muito conhecidas como Lázaro Ramos, Otávio Müller, Débora Falabella, Stênio Garcia e Fernanda Montenegro. É delicioso ver tantos atores conceituados analisando os próprios personagens, assim como o contexto histórico e social onde a peça foi forjada. Isso difere em muito da minha visão dos filmes de Nelson Rodrigues lá da década de 70 dirigidos por figuras como Neville D’Almeida, onde havia uma pegada mais direcionada ao erotismo e à sensualidade (embora uma neurose dos personagens já estivesse marcada). Mas o filme não ficava preso somente a essa análise. Logo, os personagens estariam em estúdio e locações contando a história da peça, embora isso fosse feito de uma forma sempre mesclada com o making of. Assim, poderíamos, numa cena, ver os atores atuando para, instantes depois a gente ve ra filmagem por outro ângulo de câmara, onde aparecia Walter Carvalho filmando os atores, ou uma casa abandonada se transformar num palco com uma plateia assistindo. Isso sem falar que a película é em preto e branco, que sempre favorece mais os contrastes da imagem do que o colorido e é bem mais artístico e estético. Nesses pontos, o filme foi bem interessante e original. Só não é totalmente inovador, pois a gente já viu uma produção nesse estilo em outros carnavais.

Um homem perseguido…

O filme ainda suscita mais questões. Ele é assustadoramente atual no que tange à crítica de Rodrigues ao conservadorismo da sociedade. A homofobia enorme que aparece na película, ao ponto de criminalizar uma atitude solidária, ainda se faz bem presente na nossa sociedade de hoje, sessenta anos depois. Isso é notado pelos atores que interpretam o filme. Montenegro inclusive aponta para o fato de que a sociedade que protagoniza a história é do subúrbio (e não da Zona Sul) de sessenta anos atrás e que terá esses traços mais conservadores e tradicionais. Fico eu me perguntando aqui se esse conservadorismo é uma característica mais inerente a sociedade de subúrbio ou ela também se manifestaria na sociedade de Zona Sul da época.

Filme tem curiosas locações…

Outra coisa que chama a atenção é a crítica ao jornal “Última Hora”, que publicava as reportagens que defenestravam o beijo. Fala-se por aí de que Nelson Rodrigues,mesmo sendo um crítico ácido da sociedade tradicional, era um homem de direita e que seu filho, que participava da guerrilha contra a ditadura e estava preso, só teria sobrevivido por um pedido de Rodrigues a Médici, seu amigo. Confesso que não chequei essas informações mas essa história já foi contada por aí. Assim, se ela for verídica, é sintomático perceber a crítica ao jornal “Última Hora”, do Samuel Wainer, considerado um jornal getulista e de esquerda, em oposição à “Tribuna da Imprensa”, de Carlos Lacerda, um jornal notoriamente de direita e de oposição ferrenha a Vargas.

Murilo Benício estreia na direção…

Assim,“O Beijo no Asfalto” é mais um bom filme brasileiro que merece a atenção do público, onde Murilo Benício fez um ótimo trabalho, escrevendo e dirigindo uma obra que pretende ser, simultaneamente, artística e didática, dando um grande resultado. Um programa obrigatório para os cinéfilos e amantes da obra de Nelson Rodrigues. Para ver, ter e guardar.  

Batata Movies – Colette. Anos Luz À Frente De Seu Tempo.

Cartaz do Filme

Um filme notável. “Colette” traz de volta todo o talento e a beleza de Keira Knightley e a saga de Colette, que viria a se tornar a mais renomada escritora da França, tendo atitudes demasiadamente ousadas e avançadas para seu tempo (a virada do século XIX para o século XX).  Podemos dizer que essa película é extremamente apaixonante.

Uma moça inocente e seu namorado mais velho…

O plot é o seguinte. Colette (interpretada por Knightley) é uma moça do interior que se apaixona por um homem da cidade grande mais velho que ela, Willy (interpretado por Dominic West). Willy trabalha para o mercado editorial e publica livros cuja autoria é atribuída a ele, mas, na verdade, ele tem escritores sob seu contrato para exercer o ofício de ghost writer. Como Willy tem uma vida altamente fútil, onde ele gasta seu dinheiro com noitadas, apostas e mulheres, o casal sempre está afogado numa tremenda pindaíba financeira.

Vida mais moderna na cidade grande…

Até que, um belo dia, Willy descobre que Colette gosta de escrever e põe a moça para fazê-lo, publicando o livro dela com a sua autoria. Colette cria uma personagem autobiográfica, Claudine, que se torna uma verdadeira sensação em Paris, o que faz com que Willy a obrigue a escrever continuações da vida de Claudine, sempre sob a autoria dele. Colette, então, vai dando sequência à sua obra, onde Claudine terá comportamentos ousados como a bissexualidade, assim como Colette os tinha. Essa forma ousada e transgressora de Claudine conquistará os franceses de vez, influenciando as formas de ser, a moda e outros setores, constituindo-se num verdadeiro espetáculo midiático. Entretanto, Colette não tinha autonomia sobre sua criação, sempre sob a propriedade de Willy. É claro que, pelo espírito de Colette, essa situação não poderia continuar assim.

Companhias femininas e masculinas…

A história, em si só, é altamente instigante, pois na nossa mente do século XXI, que testemunha um avanço enorme do conservadorismo, torna-se praticamente impossível conceber um espírito tão transgressor na virada do século XIX para o XX. Temas como o relacionamento aberto, o bissexualismo e o amor livre pareciam impensáveis para a época. E realmente o eram para algumas cabeças daqueles dias, como o filme nos mostra. Mesmo assim, havia pessoas com a mente mais aberta para esses pontos de vista e o estrondoso sucesso da personagem Claudine pareceu uma espécie de reação da sociedade à toda a repressão e costumes daqueles anos.

Um espírito transgressor…

O mais interessante no filme é a protagonista em si. Enquanto que Colette buscava o reconhecimento da personagem Claudine como sua, ela avançou por outras frentes. Além do já citado amor livre e bissexual, a moça também fez incursões pela carreira de atriz no teatro. Ou seja, Colette é uma personagem (real) muito fascinante, o que provocava uma empatia imediata com o espectador. O mais curioso é que ela vinha de um meio altamente conservador que era a zona rural. Mas isso não a impediu de se adaptar rapidamente ao mundo urbano e suas ideias e tendências mais modernas. Assim, Colette funciona como uma espécie de transição entre a tradição e a modernidade, sendo a última vista aqui como virtuosa.

Uma mulher muito observadora

E Keira Knightley? Caramba, como ela estava espetacular! Sua atuação foi muito firme e carismática, na medida do exigia sua personagem. E também pareceu que a moça rejuvenesceu, de tanta jovialidade que ela transpirava. Como a gente sabe que a atriz já tem um tempinho de carreira, era de se esperar que os primeiros sinais da idade já estivessem aparecendo. Ledo engano. Ela pareceu ainda mais jovem do que quando fez o primeiro “Piratas do Caribe”, sendo um deleite para os olhos.

A verdadeira Collete…

Dessa forma, “Colette” é um programa imperdível, pois aborda um caso real de empoderamento feminino do início do século passado, onde uma grande escritora enfrentou todos os tabus de seu tempo, se tornando uma espécie de celebridade midiática, mesmo que a autoria da personagem Claudine não fosse atribuída a Colette num primeiro momento. Ainda, ver Knightley em sua beleza e sua força de atuação foi um espetáculo à parte que já valia o preço do ingresso. Mais um filme que vale a pena a conferida do cinéfilo mais exigente, pois ele também primou pela reconstituição de época, seja nas locações, seja nos figurinos. Não deixe de ver.

Batata Movies – Utoya, 22 De Julho. Tragédia Como Prelúdio Para O Apocalipse.

Cartaz do Filme

Um filme extremamente perturbador. “Utoya, 22 de Julho” tenta reproduzir o horror dos ataques terroristas de 22 de julho de 2011 na Noruega, quando houve um atentado a bomba à sede do governo norueguês e um acampamento de férias de adolescentes na Ilha de Utoya foi alvejado por uma série de tiros por 72 minutos, provocando muitas mortes, ferimentos graves e sérios traumas psicológicos. Os ataques foram empreendidos por um grupo de ultradireita com conotações religiosas. E o autor dos atentados nunca se arrependeu de ter matado as pessoas que alvejou. Esse evento chocou o mundo, pois aconteceu num país que sempre teve a fama de ser muito correto e justo em virtude da política do “Welfare State”.

Kaja, sob fogo cruzado…


Como é o plot do filme? Inicialmente, vemos cenas reais de circuito de tv da explosão na sede do governo. Posteriormente, o filme foca no acampamento de Utoya em si e em torno da personagem fictícia Kaja (interpretada por Andrea Berntzen). No momento em que começam os tiros, Kaja se esconde numa casa com outros jovens e perde contato com sua irmã, que estava na barraca das duas. A partir daí, o filme é uma longa e angustiante jornada pelas barracas, pela floresta e pela beira do mar, onde sempre fica a questão: o que é mais seguro? Se esconder na floresta? Correr para o mar e fugir nadando? Ficar escondido nas escarpas à beira mar? Em qualquer dessas alternativas, o atirador pode te achar e te matar. Qual é a menos arriscada?
O filme é montado como se fosse um único plano-sequência (muito provalmente emendado aqui e ali), onde a câmara atua como uma personagem que sempre está próxima de Kaja. Como a moça se aproxima e se afasta dos grupos, estando sozinha em alguns momentos, em virtude de sua busca pela sua irmã, é como se estivéssemos junto da personagem o tempo todo, o que cria uma espécie de empatia (talvez até cumplicidade) com a personagem. Não vemos o atirador (exceto em esporádicos e rápidos vultos), apenas escutando os tiros (que ficam mais altos e mais baixos, indício de que o atirador pode estar mais perto ou mais longe) e pessoas correndo pela floresta, que é o terreno onde a película passa sua maior parte. Essa opção da câmara em plano-sequência como personagem é profundamente angustiante e deixa o espectador totalmente inserido na história.

Um acampamento arrasado…


O filme também cumpre a função social de denúncia do cinema, alertando para os perigos dos movimentos de extrema-direita e seu crescimento no mundo atual, constituindo-se numa verdadeira ameaça. Dessa forma, o filme usa a tragédia de Utoya como uma espécie de prelúdio para um futuro altamente apocalíptico. Depois não digam que não foram avisados.

Sem saber para onde ir…


Assim, “Utoya, 22 de Julho” é um filme essencial, que denuncia o perigo do radicalismo dos grupos extremistas, fazendo isso de uma forma muito perturbadora, pesada e angustiante. Um filme que deve ser mais e mais exibido por aí, não ficando apenas restrito a um único horário numa única e pequena sala. Imperdível. Para ver, ter e guardar.

Batata Movies – Rasga Coração. Uma Obra Prima.

Cartaz do Filme

O cinema brasileiro conseguiu no fim do ano passado gestar uma grande obra. Uma verdadeira obra prima. Também pudera. “Rasga Coração” é baseado em obra homônima de Oduvaldo Vianna Filho, dirigido e adaptado por Jorge Furtado. Um filme que fala de conflito entre gerações, mas também um filme que mostra como em nosso país passado e presente podem ter a mesma cara.

Um casal tradicional…

O plot se volta em torno de Manguari (interpretado na sua maturidade por Marco Ricca), um funcionário público que faz relatórios para a Secretaria de Educação sobre as escolas públicas. Ele tem um casamento tradicional com Nena (interpretada por Drica Moraes) e tem um filho adolescente, Luca (interpretado por Chay Suede). Essa é uma típica família da Zona Sul carioca, com uma vida razoavelmente estável, mas com apertos financeiros aqui e ali. Manguari tem um passado de militância no movimento estudantil nos anos mais pesados da ditadura militar (nesse momento, Manguari será interpretado por João Pedro Zappa). E até hoje tem uma mentalidade na busca por justiça social. Entretanto, as necessidades da vida acabaram mergulhando Manguari num modo de ser mais comedido e burguês. Já o filho Luca, inspirado pela educação do pai, até se engaja politicamente (a sua escola tradicional proibiu algumas peças de vestuário, levando a questão de gênero de uma forma preconceituosa como parâmetro), mas tem outras visões de mundo que causam estranheza ao pai mais liberal e à mãe mais conservadora. Esse vai ser o ponto de partida para uma relação entre pai e filho com idas e vindas, calmarias e turbulências.

Pai e filho…

O que faz esse filme ser grandioso? Em primeiro lugar, o personagem protagonista, Manguari é focado em dois momentos no tempo: em sua fase madura, onde ele é um austero pai de família, mas ainda com as convicções do passado, e nos seus tempos de adolescência e movimento estudantil, onde ele terá sérios conflitos com o pai, que tem uma cabeça muito conservadora. O filme faz um jogo com esses dois recortes cronológicos, provocando um verdadeiro diálogo entre eles e buscando rupturas e permanências, sendo que isso foi feito de forma orgânica e magistral, sinal de que tivemos uma excelente montagem. A coisa é colocada no ponto de vista bem pictórico, principalmente quando o diretor quer marcar as permanências do passado no presente, colocando coladas as imagens dos tempos pretéritos com as dos tempos atuais para atestar a continuidade do racismo ou do comportamento do pai que expulsa o filho de casa tanto no passado quanto no presente. Mas o filme busca também por rupturas. Se o pai, por exemplo, tinha outras visões de mundo na luta pela justiça social, onde ele quer que as pessoas que pensam diferente de você tenham acesso à tua voz para estabelecer um diálogo e não ficar todo mundo isolado em suas bolhas (nada mais atual), o filho, por sua vez, não concorda com essa forma mais “diplomática” e prefere a ação direta. O filme também mostra as contradições dos indivíduos: o pai quer justiça social mas está num confortável modo de vida burguês; o filho critica o conformismo do pai, mas também fica largadão em seu quarto, tendo tudo na mão, também com um modo de vida burguês. A mãe, de pensamento conservador, acha que o pai tem um comportamento demasiadamente liberal com o filho e quer que uma atitude seja tomada. E aí, quando a atitude é tomada pelo pai e o circo pega fogo, a mãe quer colocar panos quentes. Ou seja. nenhum personagem é totalmente plano, aparecendo contradições que fazem parte da vida de qualquer ser humano.

Mais uma coisa chama a atenção: esse filme poderia cair facilmente no estereótipo de uma relação totalmente conflituosa entre pai e filho. É isso que o trailer aparenta. Entretanto, o roteiro do filme escapa disso e vemos momentos de bom entendimento e até de ternura e harmonia entre pai e filho, seja no passado, seja no presente. Isso tornou o filme muito mais delicioso, produzindo meandros que tornaram a história bem mais interessante.

Amigos lutando contra a ditadura militar

Com tantas qualidades, a gente precisa falar do elenco. Essa também é aquela película que nos leva ao cinema para ver os atores. E como esse elenco estava bom! Marco Ricca estava simplesmente impecável, transitando com eficiência entre o inconformismo e o conformismo, entre o liberalismo e o conservadorismo, entre a agressividade e a ternura. Drica Moraes teve um papel um pouco mais plano, com raros momentos de complexidade e contradição, mas ela imprimia um carisma a sua personagem tão notável que conseguia roubar a ação. Chay Suede, ao interpretar um adolescente (que já é visto como “chato” pela sociedade), não deixou seu papel cair num lugar comum e marcou pela boa alternância entre a rebeldia e a ternura para com o seu pai. Agora, um ator que muito surpreendeu foi o jovem George Sauma, que interpretou Bundinha, um amigo de adolescência de Manguari, que era um porra louca total e fazia todas as suas loucuras, sendo o alívio cômico do filme. O detalhe é que Sauma não ficou apenas nisso e teve ótimos momentos dramáticos com Zappa, o que mostrou toda a versatilidade do ator que a gente está acostumado a fazer papéis mais humorísticos no “Zorra” na TV. Essa película foi uma excelente oportunidade para ele destilar mais seu talento para o público. E Sauma a agarrou com unhas e dentes.

O diretor Jorge Furtado (de barba) com o elenco

Dessa forma, “Rasga Coração” é um filme simplesmente imperdível. Uma joia de nosso cinema. Um filme que poderia cair em estereótipos e clichês, mas conseguiu driblar tudo isso com bastante maestria. Um filme que pode ser pessoal, mas que também pode dizer um pouco mais das rupturas e permanências em nossa sociedade. Ou seja, um filme fundamental. Um filme essencial. Para ver, ter e guardar.

Batata Movies – Diamantino. Uma Inusitada Colcha De Retalhos Sobre A Realidade.

Cartaz do Filme

Uma curiosa co-produção Portugal/França/Brasil. “Diamantino” é uma comédia cheia de lances inusitados e, por que não dizer, até surreais. O detalhe é que ele pega vários elementos da sociedade atual, sendo uma espécie de colcha de retalhos do que há por aí, o que deixa a história um tanto familiar para nós. O inusitado reside justamente no fato de como essas peças de realidade são coladas. Para a gente explicar melhor isso, precisamos de alguns spoilers.

Diamantino, meio bobão e perdido…

Vamos dar o plot. Temos aqui a trajetória de Diamantino (interpretado por Carloto Cotta) é um grande ídolo do futebol português, mais parecendo um Cristiano Ronaldo genérico (é impressionante como o ator foi posto parecido com o verdadeiro craque do futebol no filme). O problema é que Diamantino perdeu o pênalti na final da Copa do Mundo, o que fez com que Portugal perdesse o título e todo o país culpasse o jogador por causa disso, como sempre acontece. O resultado é que Diamantino mergulhou num estado depressivo e tomou como meta de vida adotar um refugiado. Ele acabará fazendo isso e adotará um adolescente de origem muçulmana. Mal sabe ele que o adolescente é, na verdade, uma mulher disfarçada, Aisha (interpretada por Cléo Tavares), uma agente do governo que investiga crimes de corrupção e sonegação de impostos. Aisha tem sua cabeça mergulhada no senso comum com relação aos jogadores de futebol: ela acha que todos não prestam e que a adoção é uma espécie da autopromoção para se esquecer do fiasco da Copa. Mas, com o tempo, Aisha descobre que Diamantino tem um coração puro e infantil, e que o problema está nas irmãs gêmeas que gerenciam a carreira do jogador, querendo usá-lo para fazer muito dinheiro. Elas usam o jogador num programa do governo que clonará onze Diamantinos para fazer o time de futebol perfeito e tornar a seleção de Portugal uma grande campeã. Usando o futebol como “ópio do povo”, o governo então vai alavancar uma campanha xenófoba de votação pela saída da União Europeia. O problema é que a clonagem põe a vida de Diamantino em risco.

Irmãs muito cruéis…

Ufa, que plot louco, não? Mas há elementos muito próximos de nossa realidade. O jogador de futebol megastar, o linchamento moral ao qual ele é submetido quando perde um gol decisivo, a questão dos refugiados que chegam à Europa sem eira nem beira, o sensacionalismo dos programas de TV, a onda de extrema-direita e de xenofobia na Europa. Esses são temas que não suscitam qualquer graça. A única forma de inseri-los numa comédia foi amalgamá-los com fortes doses de surreal e inusitado, sendo o personagem Diamantino o norte desse surreal. E aí, a gente precisa tirar o chapéu para Cotta, que consegue fazer um Diamantino muito caricato mas também extremamente simpático em sua ingenuidade e, por que não, jeito abobalhado. O fato do filme ser narrado por ele em primeira pessoa ajuda em muito nessa empatia entre o espectador e o personagem. Mas o roteiro também ajuda, pois o mais lúdico do filme está nos cachorrinhos gigantes que acompanham o jogador nos gramados dos estádios, sendo esse o mundo idílico particular de Diamantino. Entretanto, o inusitado não está apenas nos cachorrinhos. A tal experiência genética e os efeitos no corpo de Diamantino, dando seios femininos ao jogador, aliada ao relacionamento homoafetivo entre Aisha e sua colega de trabalho, que se disfarça de religiosa, mostra não somente algo um tanto surreal, mas até transgressor, com a intenção de agredir mentes mais conservadoras mesmo. Aqui a mensagem de romper com os padrões convencionais, moralistas e tradicionais da sociedade ficou muito nítida e clara.

Aisha dará um novo rumo à vida de Diamantino…

Dessa forma, “Diamantino” é um filme que chama muito a atenção por trazer um humor inusitado, surreal e transgressor, trabalhando com temas cotidianos altamente polêmicos e sérios. É um filme que te tira de sua zona de conforto. E, além do humor ao qual se propõe, faz também pensar, o que sempre é muito bom.