Batata Movies – Gauguin, Viagem Ao Taiti. Lançando-se De Cabeça A Um Novo Mundo.

Cartaz do Filme

Um filmaço francês. “Gauguin, Viagem ao Taiti”, não podia ter um título mais explicativo e sucinto. Quem tem um conhecimento mínimo em História da Arte sabe da saga do pintor Paul Gauguin em desbravar um Novo Mundo para encontrar inspiração para suas telas, que se tornaram ícones da Arte Universal e do Impressionismo. Pela força e pelo colorido de suas pinturas, sempre me pareceu que o pintor levava uma vida idílica e paradisíaca, cercado de belas mulheres, que alternavam com ele as telas de dia e a cama de noite. Só que o filme nos mostra que não foi bem assim.

Um pintor em desespero no paraíso

Em primeiro lugar, Vincent Cassel foi escolhido para o papel principal. Não podia ter essa sido escolha mais feliz. O ator conseguiu imprimir toda uma intensidade e desespero ao personagem, que fugia da França, pois não conseguia encontrar mais nada que fosse digno de se retratar e rumou em direção à Polinésia Francesa. A despedida não foi sem dor. Em dificuldades financeiras, o artista deixou para trás mulher e filhos completamente desguarnecidos. As telas que ele enviava não eram vendidas e logo a separação veio. O pintor também passava por dificuldades financeiras no Taiti, mas mesmo assim se casou com uma moça local, Tehura (interpretada pela bela Tuheï Adams), que serviu em toda a sua beleza para inspiração de seus quadros. O problema é que a “cabeça de artista” de Gauguin não se adequava às necessidades materiais e à estrutura do capitalismo, fazend0 com que nosso protagonista passasse junto com sua amada muitas dificuldades. Problemas graves de saúde com o coração e a diabetes, mais algumas aventuras extraconjugais de Tehura somente pioraram o quadro do artista.

Tehura, uma tentação em forma de mulher…

Na verdade, esse é um filme que desperta um duplo sentimento na gente. Em primeiro lugar, ficamos maravilhados com a força criativa do artista, que conseguia produzir lindas telas e esculturas. Mas, ao mesmo tempo, nos compadecemos muito das dificuldades pelas quais nosso protagonista passava, que vivia praticamente na mendicância, andando sempre mal vestido, sempre lutando com seus problemas de saúde, sempre se revirando contra a dor do adultério.

Uma relação conflituosa…

Tanta dor e sofrimento o levaram a tomar atitudes que podemos dizer que não eram muito éticas. Mas ficou a impressão que seus dias no Taiti foram mais de provação do que de alegria, onde essa última também aparece na película, mas em pouquíssimos momentos. Digamos, é um pouco trágico demais tudo aquilo que vemos. E Cassel consegue fazer com que a gente se identifique muito com o personagem, pois compartilhamos toda a dor e angústia de Gauguin, como se ela chicoteasse nossa própria pele.

O verdadeiro Gauguin

De qualquer forma, mesmo que esse filme nos desperte alguma dor e compadecimento, ainda assim é uma excelente película, pois dá a nós uma noção de como essas obras da Arte Universal foram forjadas e à qual cota de sacrifício do artista, o que nos deixa ainda mais admirado delas e que ainda nos faz lamentar mais que o reconhecimento dessas obras só venha depois da morte daqueles que a produziram. Como se a vida de provações fosse pré-requisito para que hoje elas tenham seu valor reconhecido em tão altas cifras. E, somente para concluir, sempre é bom ver Vincent Cassel em ação, um artista que melhora mais e mais a cada dia. Vale muito a pena dar uma conferida.

https://www.youtube.com/watch?v=fCBsE2G5Kcc

Batata Movies – Você Nunca Esteve Realmente Aqui. A Violenta Trajetória De Um Homem Atormentado.

Cartaz do Filme

Um filme perturbador premiado em Cannes pelo roteiro e pela atuação de Joaquin Phoenix. “Você Nunca Esteve Aqui” traz uma mescla confusa de flash-backs e alucinações, regadas a muito sangue e violência. Um filme que faz de tudo para que o espectador sempre saia de sua zona de conforto, se é que há alguma.

Um homem perturbado…

Vemos aqui a trajetória de Joe (magistralmente interpretado por Phoenix), um veterano da Guerra do Golfo de mente totalmente perturbada. Seus traumas vêm em lembranças que não são somente inspirados nas situações que ele passou na guerra, mas também com uma infância traumática onde supostamente seu pai é o resultado de seus terrores. Tudo isso faz com que Joe seja instável emocionalmente, com explosões de violência repentinas. E como o nosso tresloucado protagonista ganha a vida? Ele é um assassino de aluguel especialista em caçar pedófilos e criminosos que exploram sexualmente as crianças, sempre agindo com um… martelo (!!!), golpeando violentamente a cabeça de quem ele precisa matar por contrato. Somente esses pequenos detalhes já são suficientes para tornar o filme altamente perturbador. Mas, como dizia aquele lendário anúncio de TV, “e não é só isso!”. Joe é contratado por um senador que tem a sua filha sendo explorada sexualmente. Ele faz o serviço, mata todo mundo e resgata a menina. O problema é que o senador se suicida e Joe fica sem saber o que fazer, ao mesmo tempo em que todos aqueles que ele conhece ou ama são assassinados. Dois homens conseguem sequestrar a menina novamente. E Joe precisa entender o que aconteceu para resgatar a garota novamente e se vingar.

Alucinações…

Como essa é uma película onde o protagonista tem uma mente altamente perturbada, a gente não sabe o que é real, o que é alucinação, o que é onírico. Volta e meia, a narrativa fica altamente fragmentada e a gente precisa se dar ao trabalho de juntar as peças, pois o filme não se preocupa muito em explicar as coisas, sobretudo da vida pregressa de Joe, e a gente precisa deduzir muita coisa a partir dos cacos de sequência que aparecem soltos ao longo da exibição. Do jeito que é exposto aqui, parece ser essa uma tarefa muito difícil, mas até que não é tanto; dá para percebermos muitas coisas.

Vivendo com uma mãe doente…

Outra coisa que chama muito a atenção e que está intimamente ligada a esse clima ilusório do filme é que ele foge um pouco do desfecho tradicional dos filmes violentos de vingança. E aí não sabemos realmente como o antagonista teve o seu destino selado ou até se não tivemos mais uma alucinação de Joe em curso. Mais uma vez o espectador tem que colocar sua cabeça para funcionar e ele mesmo criar seu próprio desfecho, fazendo a sua leitura do filme. Por ter a narrativa muito fragmentada e cheia de alucinações e ambientes oníricos, podemos dizer que a película tem a capacidade de assumir múltiplas interpretações, sendo diferente na cabeça de cada espectador.

Seu trabalho é um pouco difícil…

E o que podemos falar de Joaquin Phoenix? Sua atuação foi simplesmente fantástica, mesmo que o personagem tenha a característica um tanto quanto plana de ser constantemente atormentado. O detalhe aqui é que Phoenix conseguiu dar nuances para isso, indo desde momentos de uma letárgica lucidez, chegando a paroxismos de tormento. Ou seja, ele conseguiu expressar com perfeição todas as matizes de seu personagem.

O que é real? O que é alucinação? O que é onírico???

Assim, “Você Nunca Realmente Esteve Aqui” (cujo título é a tradução literal do original, algo meio raro por aqui) já canta a pedra em seu título. Será que o que vemos é realidade ou uma leitura da realidade de uma mente perturbada? Fica a dúvida e a leitura de cada espectador. De sólido mesmo, somente a atuação de Joaquin Phoenix, que arrasa quarteirões. Vale a pena você se angustiar com essa película.

Batata Movies – Infiltrado Na Klan. Uma Louca História Real.

Cartaz do Filme

Spike Lee está de volta num filme que chama muito a atenção. “Infiltrado na Klan” é o típico caso de vida imitando a arte, pois é baseado numa história real no mínimo inusitada. Coisas impressionantes que aconteceram e que tinham uma chance enorme de dar errado e que, no fim das contas deram certo.

Um policial em busca de afirmação

O plot é o seguinte. Ron Stallworth (interpretado por John David Washington) é um afro americano que quer entrar para a polícia do Colorado, sendo o primeiro policial negro da instituição, em plena década de 70, quando as lutas pelos direitos civis estão acirradíssimas. Depois de passar pelo crivo pesado do chefe de polícia e de um policial negro mais experiente, ele acaba conquistando a vaga, sendo enviado para o arquivo, onde é tripudiado pelos policiais brancos com bastante racismo. Cansado daquela situação, ele pede um posto para ir às ruas.

Uma equipe vai embarcar numa investigação insólita…

É designado, então, para a inteligência, tendo como primeira missão espionar um encontro de ativistas negros. Lá, ele descobre duas coisas: a presidente do grêmio estudantil negro, Patrice (interpretada por Laura Harrier), pela qual se apaixona, e se inteira mais da luta pelos direitos civis ao assistir uma palestra de uma liderança. De volta à polícia, ele lê um jornal e vê uma propaganda da Ku Klux Klan, assim como um telefone para contato. É aí que ele terá a genial ideia de ligar para a Klan e se passar por um branco racista. Feito o contato, ele consegue marcar um encontro pessoal com a “organização”. Só que, por motivos óbvios, ele não pode ir. Assim, um de seus colegas da polícia, Flip Zimmerman (interpretado pelo “Kylo Ren” Adam Driver), de origem judia, fará o papel do Stallworth “branco”, enquanto que o verdadeiro Stallworth continua a manter o contato por telefone com os membros da organização. Nem é preciso dizer que, à medida que os policiais mais e mais penetram nas entranhas do grupo, essa relação ficará mais e mais perigosa.

Entrando para uma causa…

O filme tem a mensagem óbvia de denunciar o racismo nos Estados Unidos. Mesmo a gente já estando careca de saber disso antes mesmo de entrar na sala de projeção, a gente ainda se surpreende com algumas coisas, como o casal racista que troca juras de amor na cama, regado a muitos termos e ideias altamente racistas.

Descobrindo uma paixão…

O filme, entretanto, tem seus momentos engraçados, principalmente quando vemos Stallworth (alerta de spoiler) conversando por telefone com um dos membros da Klan rodeado por policiais que riem demais da conversa, ao melhor estilo de um trote telefônico.

Contando um antigo caso de racismo e homicídio…

Mas Lee consegue também ser esteticamente muito eficiente, com destaque em dois momentos: no discurso do líder negro que um Stallworth infiltrado presencia, muitas faces negras com um fundo escuro escutavam atentamente o palestrante, onde ficava claro em seus semblantes que uma espécie de consciência de classe se desenvolvia ali; e no momento onde um antigo líder negro falava de um enforcamento para uma plateia comovida enquanto que, simultaneamente, os membros da klan faziam todos os seus rituais com uma espécie de fundo religioso macabro. Lee conseguiu alternar esses dois momentos de forma magistral, não dando destaque maior nem para um nem para outro.

Rituais religiosos macabros…

Agora, o que mais choca em todo o filme é o seu desfecho. Lee nos acorda, pois ele traz para o presente algo que em nossas cabeças estaria adormecido lá no passado, nos tempos de Stallworth. Com um choque de realidade de imagens absolutamente contemporâneas (2017), Lee mostra que o ódio da Klan está mais vivo que nunca, e se sentindo encorajado com os desmandos do atual presidente Donald Trump. Dessa forma, o filme, que teve seus atrativos de inusitado e de humor, termina com um militante grito de denúncia, que nos faz sair da sala de projeção muito preocupados com a onda reacionária que assola o mundo hoje.

Spike Lee dirigindo Adam Driver

Assim, “Infiltrado na Klan” é um programa imperdível para quem gosta do bom cinema, magistralmente dirigido por Lee, e para quem se orgulha da arte cinematográfica como aquela que cumpre sua função social de denúncia. É mais um daqueles filmes para ver, ter e guardar.

Batata Movies (Especial Festival Do Rio 2018) – Carvana. A Trajetória De Um Grande Talento Brasileiro.

Cartaz do Filme

Dando continuidade às nossas análises de filmes do Festival do Rio 2018, falemos hoje do bom documentário brasileiro “Carvana”, sobre o ícone Hugo Carvana. Embora eu não tenha assistido esse filme durante o Festival, ele lá esteve e considerei a pré-estreia que assisti uma espécie de “Última Chance” do Festival. Exibida no Odeon, a pré-estreia de “Carvana” contou com muitas personalidades, dentre elas Othon Bastos, Betty Faria e Antônio Pedro. Os familiares de Carvana e a diretora Lulu Corrêa também se faziam presentes. Todos receberam bigodes postiços (uma marca registrada do ator homenageado) e os usaram durante a exibição. A sala de espera tinha cerveja e sacanagem (um salgadinho com presunto, queijo, tomate, azeitona, etc., espetados em palitos de dente). A equipe de produção esteve à frente da plateia antes da exibição do filme e Lulu Corrêa fez um pequeno discurso comemorando a ocasião. Uma homenagem para lá de justa.

Hugo Carvana. Uma homenagem muito justa.

E o documentário em si? Ele trouxe a fala de Carvana em várias etapas de sua vida, onde a gente podia ver o ator dialogando com ele mesmo ao longo do tempo. Pudemos ver Carvana no começo, fazendo pontas em chanchadas, depois sua participação no Cinema Novo (e suas ligações marcantes com Glauber Rocha), as participações na TV (lembram de Valdomiro Pena e “Plantão de Polícia”?) e, principalmente, sua prolífica produção cinematográfica, onde ele criou todo um estilo próprio de se contar histórias, sem querer inovar mas com muito humor, com falas totalmente descoladas e situações non sense que assaltavam o fio narrativo da história que era contada. É claro que seu grande sucesso (na opinião deste humilde articulista), “Bar Esperança”, também estava lá (esse merece uma resenha por aqui).

“Bar Esperança”, um de seus maiores filmes…

São preciosas as cenas de making of de suas produções cinematográficas mais recentes, onde Carvana se pronuncia para a equipe de filmagem, trazendo suas impressões sobre a vida, a arte a que se propõe fazer, a importância dos amigos (para Carvana, todo o trabalho era uma oportunidade para rever as pessoas e estreitar os laços de amizade). Mas Carvana também atenta para momentos difíceis, como os calotes que toma ao produzir filmes.

O non sense era presença marcante em suas películas…

Uma vez, ele ficou num beco sem saída, com 67 credores batendo à sua porta ao mesmo tempo! Ou então, nos períodos mais complicados da Ditadura Militar, onde o exílio o obrigava a viver longe de seu país, algo de que ele sentia muita falta, sem qualquer previsão de quando (e se) poderia retornar.

Com os amigos Othon Bastos e Andréa Beltrão…

É um documentário feito com extremo carinho e se mostra de forma muito otimista. Principalmente porque há uma preocupação de se dar voz ao próprio Carvana, o melhor narrador de si mesmo e de sua vida. E como o homem era um otimista e amante da vida, fica muito fácil o documentário enveredar por esse quê mais otimista.

Um amante do cinema, acima de tudo…

Dessa forma, “Carvana” é um documentário fundamental para quem gosta de cinema e quer ter uma boa noção da História Cultural recente do país, onde essa figura ímpar que foi Hugo Carvana teve uma participação bem prolífica. Um programa imperdível.

Batata Movies (Especial Festival Do Rio 2018) – Terra Firme. Uma Criança No Meio De Uma Relação.

Cartaz do Filme

Mais um filme que passou no Festival do Rio 2018 a ser analisado aqui. “Terra Firme” é dirigido por Carlos-Marques Marcét e tem a nobre presença de duas atrizes da linhagem de Charlie Chaplin: sua neta Oona e filha, Geraldine Chaplin (que é mãe de Oona). O simples fato de ver as duas contracenando juntas já é motivo de sobra para meter a mão no bolso e pagar o ingresso para ver esse filme. Mas existem mais outros atrativos nessa película: a história que é contada aqui.

Três amigos, uma família…

Temos um casal, Eva (interpretada por Oona Chaplin) e Kat (interpretada por Natalia Tena). As duas moram num barco que fica circulando pelos canais de Londres. Um belo dia, elas recebem a visita de Roger (interpretado por David Verdaguer), um espanhol descoladaço e muito louco, que vai chegar numa hora, digamos, inusitada: é que Eva quer ter um bebê, e Kat torce o nariz para essa ideia. Entretanto, as duas acabam concordando na vinda de um pimpolho e será Roger que doará o “peixe”.

A vida num barco…

Na primeira tentativa (onde Kat insemina Eva), o bebê não aparece. Mas aparece na segunda tentativa de inseminação. O problema é que Kat não faz muita questão de acompanhar todo o processo, ao contrário de Roger, que está animado com a ideia de ser “pai”, já que a família será Kat, Eva e a futura criança, com Roger tendo direito a visitas. Mesmo assim, Roger está muito animado com a gravidez e acaba ficando mais presente que Kat, que se afasta desse estranho triângulo amoroso, com direito a uma afeição filial.

Uma mãe que não entende os novos tempos…

Esse é o tipo de filme que mostra como os relacionamentos humanos estão sofrendo transformações e novas questões e situações de ordem afetiva têm surgido. Um casal homoafetivo que tem um filho, cujo doador de esperma não é um anônimo e sim um amigo da família. Isso trará algumas neuras, embora uma questão ancestral (o fato de um dos parceiros da relação não querer o filho) é o que mais dita as regras aqui. É claro que o desfecho para isso não vai ser fácil, embora ele tenha sido concebido em aberto e trazendo alguma esperança, depois de pesadas turbulências.

Eva. Frágil, mas sabe muito bem o que quer…

E os atores? Eles tiveram um certo trabalho, já que os personagens que interpretavam tinham um comportamento um tanto paradoxal. Oona Chaplin foi muito bem e impressiona com sua Eva altamente sensível mas que sabe muito bem o que quer, enquanto que Tena faz o lado mais “masculino” da relação e fica, entretanto, altamente vulnerável quando sente que pode perder sua amada, chegando a se humilhar perante Eva. Duas figuras humanas com as fragilidades expostas à flor da pele e comportamentos um tanto ambíguos. Essa ambiguidade também é vista em Verdaguer, que convence como o porra-louca inconsequente e, também numa virada paradoxal, assume uma profunda responsabilidade referente à paternidade. De qualquer forma, os três protagonistas mostram perfis da fragilidade humana e é impossível o espectador não nutrir uma empatia por eles. Já Geraldine Chaplin aparece pouco com sua personagem Germaine, mas mergulha também nesse comportamento mais paradoxal. Ao mesmo tempo que é uma budista e tinha uma mentalidade progressista no passado, ela não consegue se adaptar muito bem às vertentes frenéticas em que sua filha se envolve, achando que um relacionamento à dois já é muito complicado, imagine um relacionamento a três? E, por mais que ela tenha sido chamada de conservadora por Kat, ao fim das contas, tudo que Germaine temia acaba acontecendo.

O elenco com o diretor Carlos-Marques Marcét

Assim, “Terra Firme” é um filme de relacionamentos humanos, personagens paradoxais, duas atrizes da linhagem de Chaplin e, principalmente uma história em que como pode ser difícil um relacionamento, quando os pares (ou trios) não querem exatamente a mesma coisa. Vale a pena procurar, pois é mais um convite à reflexão.

Batata Movies (Especial Festival Do Rio 2018) – Três Faces. A Luta Pela Arte.

Cartaz do Filme

Ainda dentro das análises dos filmes do Festival do Rio 2018, falemos hoje de uma grande joia. Tanto que ela ganhou o prêmio de melhor roteiro em Cannes este ano. “Três Faces” é do meu diretor de cinema predileto, Jafar Panahi. Peço ao leitor mais um pouco de paciência com meus relatos pessoais. Sempre fui um amante do cinema iraniano, desde que vi “O Balão Branco”, do mesmo Panahi. As semelhanças com o neorrealismo italiano, onde gente do povo era utilizada como elenco numa Itália arrasada pelo pós-Segunda Guerra Mundial sempre chamaram muito a minha atenção.

Uma atriz e um diretor numa busca…

E ai, teve uma época em que muitos filmes iranianos passavam por aqui. Entretanto, algumas pessoas começaram a cornetar contra esse tipo de cinema, dizendo que era chato, sem graça, etc. E aí, os filmes iranianos saíram de nossas telonas. Mas continuaram ganhando muitos prêmios por aí, inclusive o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Mesmo assim, os filmes continuaram a não ser exibidos por aqui. E agora, que mais um filme iraniano volta aos holofotes por ganhar um prêmio na Europa, temos a oportunidade de assistir a uma película persa novamente.

Uma atriz em busca da liberdade…

O plot do filme é simples, tornando-se complexo gradativamente. Panahi e uma conceituada atriz iraniana, Behnaz Jafari (eles interpretam a si mesmos) fazem uma viagem para a região das montanhas, pois uma moça, Marziyeh (interpretando ela mesma) mandou um vídeo para o celular da atriz onde ela está desesperada, pois a família não quer que ela vá para Teerã estudar no Conservatório de Arte Dramática para se tornar atriz. A menina termina o vídeo colocando uma corda no pescoço e a imagem tremendo, como se ela tivesse se suicidado. Behnaz ficou desesperada e foi com Panahi para as montanhas, largando as gravações de seu programa na TV. A partir daí, o diretor e a atriz irão fazer uma busca pelo paradeiro de Marziyeh, interagindo com os habitantes das montanhas e com a cultura local, altamente tradicional e com toda uma peculiaridade própria, altamente conservadora.

A atriz é o ícone aceito da modernidade

Como a legendagem do filme estava na própria película, existe uma chance do filme entrar em circuito por aqui (até pelo seu prêmio de roteiro em Cannes) e não darei maiores spoilers. Mas dá para falar de algumas coisas. Esse é mais um filme de diálogo ora maniqueísta, ora culturalista, entre tradição e modernidade, onde a primeira faz as vezes de vilã. Se bem que a película consegue, volta e meia, relativizar um pouco as coisas de forma muito sutil. Os povos das montanhas, vilas e vales são de outra etnia, a ponto de falar turco ao invés de persa. Marziyeh é mal vista pela população local, assim como uma antiga atriz que foi banida daquela sociedade e vive isolada. Embora numa primeira impressão fique parecendo algo bem retrógrado e machista (não dá para pensar diferente) perseguir a moça por querer seguir a carreira artística, o diretor também tenta analisar a cosmogonia local ao dar fala a um habitante idoso da região onde ele diz que Marziyeh não se enquadra à realidade local, pois não cumpre uma função específica em seu povoado. Todos têm uma função específica (plantar, cuidar de animais, etc.), o que é de importância vital para a própria sobrevivência do povoado, mas Marziyeh não quer se enquadrar nisso. Ela quer atuar e estudar, algo que não tem objetivo prático naquela sociedade mais tradicional. Mesmo com essa relativização sutil, ficou bem clara a leitura de Panahi: as pessoas da cidade grande, dentro do arcabouço da modernidade, teriam uma mente mais “aberta” com relação à questão da liberdade para a mulher atuar no campo artístico, onde, por outro lado, no campo isso seria impossível, com outra etnia mais conservadora e até um tanto estrangeira. Mesmo assim, a modernidade invade a tradição, pois o programa de tv de Behnaz é apreciado pelos moradores locais e eles até a perguntam o que acontecerá nos próximos capítulos da novela.

Interagindo com a comunidade local…

No mais, é tudo aquilo que vemos no bom filme iraniano. Um ritmo lento, lindas paisagens, diálogos entre grupos culturais diferentes que levam a interessantes reflexões e, como sempre, uma espécie de grito velado por mais liberdade para o país, que ainda tem muitas restrições típicas daquelas de países com regimes teocráticos.

Fortes diferenças culturais…

Assim, “Três Faces” é mais um bom filme do Festival do Rio 2018. Três faces. Três atrizes. A banida do passado, a consagrada do presente, a que busca um espaço no futuro. Todas elas dialogando (ou não) com uma comunidade tradicional. E, dessa peculiar interação, podemos tirar muitas reflexões. Essa película vale a pena estar em circuito por aqui futuramente. Vamos torcer.

Batata Movies (Especial Festival Do Rio 2018) – O Termômetro De Galileu. Microhistória(s).

Cartaz do Filme

Dando sequência às nossas análises de filmes do Festival do Rio 2018, falemos hoje de “O Termômetro de Galileu”, uma produção portuguesa de Teresa Villaverde. A cineasta fez uma espécie de rosário de depoimentos pessoais, recuperando a memória e as relações entre os membros da família do cineasta italiano Tonino De Bernardi, que vive na região do Piemonte. Esse é um documentário extremamente família, onde vários membros do clã contam suas histórias de vida, indo desde os mais jovens até os mais idosos, com relatos muito comoventes. Um dos momentos mais marcantes do documentário foi quando uma das parentes de De Bernardi falou sobre a história de vida de uma parente já falecida, não em forma de depoimento espontâneo, mas lendo um texto escrito, onde houve a preocupação de se organizar previamente todas as informações daquela pessoa.

Tonino de Bernardi e sua esposa Mariela

Pudemos testemunhar sua juventude, seus sonhos, seus amores, suas perdas e seu definhamento, o que algo que muito nos faz pensar, pois geralmente conhecemos ou estamos com uma pessoa amiga em uma fase de sua e poucas vezes temos um convívio integral com a pessoa, mesmo nas famílias mais tradicionais (você não consegue testemunhar a infância e a adolescência de seus pais, por exemplo, mesmo que fique com eles o resto de suas vidas). Ao se resgatar essa história e memória individuais, a afinidade cresce muito mais e, ao fim do relato, parece que a gente conhece todo o íntimo daquela pessoa como se fosse alguém muito próximo. É aí que está a força desse filme.

De Bernardi em contato com pessoas de seu passado…

Outro detalhe que chama muito a atenção é a harmonia total entre os pares da família de De Bernardi. É claro que toda família tem seus problemas de relacionamento, mas quando eles se reúnem para falar deles mesmos, não há qualquer espaço para conflito, e sim uma afetividade mútua que beira o idílio. Essa também é uma família muito ligada à arte. Temos um trecho onde o próprio Tonino De Bernardi lê uma poesia que sempre o cativou muito.

Dando voz aos que não mais estão aqui. Relatos comoventes…

Já o desfecho, se me permitirem o spoiler, chega a ser engraçado. Vemos a família sentada à mesa com a diretora Teresa Villaverde e De Bernardi reclamando que quer falar para ela algumas coisas que ele não quer que a câmara registre. A diretora, já tão mergulhada no íntimo do clã, pede para De Bernardi desligar a câmara. Ele diz que não sabe fazer isso. Uma das mulheres da família, então, vai tentar desliga-la e, depois de várias instruções da diretora (e de vários supercloses da mão da mulher na nossa cara), a câmara desliga e vêm os créditos finais. Essa forma divertida de desfecho é a cereja do bolo que coroa todo o clima intimista produzido no filme com a família de De Bernardi.

A diretora Teresa Villaverde

Assim, “O Termômetro de Galileu” é mais um filme que chamou a atenção no Festival do Rio 2018 pela recuperação de memória através dos relatos da família de um cineasta italiano, e pelo clima altamente intimista que a diretora Teresa Villaverde consegue passar para o espectador. O ritmo do documentário é extremamente lento, mas vale a pena dar uma conferida, pois o filme transpira amor, carinho, afeto e ternura.

https://www.youtube.com/watch?v=ufK93ezpPnY

Batata Movies (Especial Festival Do Rio 2018) – A Rainha Do Medo. Pimenta Nos Olhos Dos Outros…

Cartaz do Filme

Dando sequência a análise de alguns filmes do Festival do Rio 2018, falemos hoje do argentino “A Rainha do Medo” (“La Reina del Miedo”), de Valeria Bertuccelli, uma co-produção Argentina/Dinamarca. Esse é um filme um tanto angustiante, pois a protagonista é acometida de uma ansiedade que parece chegar muito próximo aos limites do pânico. E aí, ou a gente acha ela uma histérica ou a gente embarca em todo seu sofrimento e suplício. Fica ao gosto do freguês. Só é impossível ser totalmente indiferente à personagem.

Robertina e sua rotina de ensaios…

Mas qual é o plot do filme? Temos aqui Robertina, a grande dama da classe artística argentina, que se prepara para encenar mais uma peça que será um sucesso garantido. Só que a atriz faz aquilo que chamamos no popular de “abraçar o mundo com as pernas”, ou seja, ela assume uma infinidade de responsabilidades ao mesmo tempo e, obviamente, não consegue segurar o rojão.

Assumindo muitas responsabilidades…

Ela se preocupa efusivamente com as constantes faltas de luz de sua casa, com uma obra em seu jardim, com a empregada chorosa que toda hora tem sentimento de culpa, com o amigo doente terminal de câncer na Europa e, é claro, lá na 87ª posição, com o ensaio da peça. Inevitavelmente, o comportamento de Robertina será alagado por uma ansiedade extrema, o que a deixa insegura e constantemente infeliz. E aí o espectador, que assiste a aquilo tudo dentro de um ponto de vista mais racional, vai pensar: é impossível para um ser humano assumir tantas responsabilidades ao mesmo tempo. Há de ser mais seletivo e focado nas coisas.

Robertina não consegue segurar o rojão…

O mais lógico aí seria se concentrar integralmente nos ensaios da peça, pois é sua atividade principal e seu ganha-pão. Mas Robertina tem um quê solidário que a obriga a resolver todos os problemas do mundo ao mesmo tempo. Os mais pragmáticos se revoltariam e achariam a mulher histérica. Os mais emocionais, contudo, entendem a situação da mulher e se solidarizam com ela. Não parece haver um meio termo nessa situação. E o espectador fica angustiado com a situação da atriz.

Dando atenção ao amigo doente…

A atuação de Valeria Bertuccelli foi muito boa. Ela conseguiu passar a ansiedade de sua personagem para o público sem recorrer à explosões de paroxismo. Era algo que tinha sua intensidade, mas era contido. Volta e meia, uma lágrima descia pela sua fronte meio que petrificada, o que acabou sendo mais eficiente do que uma crise de choro. Explosão emocional apenas na estreia da peça, quando ela atuou com muita garra, depois de tomar uma bronca de seu agente, pois pensava em desistir de tudo. Apesar desse detalhe, o desfecho foi um tanto dúbio. Derrota ou libertação? Não entrarei mais em detalhes, para que o leitor, se um dia conseguir ter acesso a esse filme (já que alguma coisa do Festival não voltará a ser exibida aqui), tire as suas próprias conclusões.

Muita garra na apresentação…

Assim, “A Rainha do Medo” é mais um interessante filme do Festival do Rio 2018, pois nos dá uma importante lição: carregue a cruz que você pode aguentar. Não adianta sair abraçando o mundo com as pernas, pois todos nós temos nossos limites. Sem falar que pudemos ter contato com Valeria Bertuccelli, realmente uma grande atriz argentina.