Batata Movies (Especial Festival Do Rio 2018) – A Névoa Verde. Uma Colcha De Retalhos Em Busca De Significados.

Cartaz do Filme

Dando sequência às análises de alguns filmes do Festival do Rio 2018, falemos hoje de “A Névoa Verde”, de Guy Maddin, Evan Johnson e Galen Johnson. Taí um filme que podemos chamar de angustiante, pela força de sua montagem. A ideia é criar uma película com fragmentos de muitos filmes, devidamente montados para se buscar algum significado. O pano de fundo é a cidade de São Francisco e uma estranha névoa que paira sobre ela. Alguns acham que o filme foi concebido de forma a homenagear “Vertigo” (“Um Corpo Que Cai”), de Hitchcock.

Uma névoa verde tomando tudo…

Mas, a meu ver, “Vertigo” é somente um dos muitos filmes homenageados aqui. O clima de suspense realmente paira no ar. Muitos trechos de filmes policiais ajudam a montar o conjunto inspirado em thriller. Mas a montagem também pode adquirir contornos altamente surreais, como os diálogos altamente truncados entre atores, que mais parecem uma mordaça na atuação, tornando a coisa muito tensa. Pouquíssimas falas são inseridas no filme, volta e meia com um quê de ironia.

Um clima de suspense…

Às vezes, faz-se um agregado de imagens que trabalham o mesmo tema (carros andando na rua, o mar de São Francisco e sua famosa ponte, pessoas caindo a la “Vertigo”, etc.). Realmente é complicado para o espectador encontrar uma estrutura narrativa coesa que se espelhe no filme. O que mais parece é uma sucessão de temas e ideias que mais parecem uma coleção de easter eggs. Ou referências. A coisa deixa de ser narrativa e parece mais poética, sensorial até.

Lindas estéticas, do preto e branco…

Uma coisa interessante está mais ao final, quando vemos de uma forma bem rápida, praticamente subliminar, os títulos de todos os filmes envolvidos na produção. Tem muita coisa de várias épocas diferentes. Os trechos de alguns títulos são perfeitamente identificáveis no transcorrer da exibição, mas outros títulos realmente se mostram como uma grande surpresa ao final.

… ao colorido…

O que podemos mais dizer? Para o cinéfilo, é uma experiência boa ver o filme, já que podemos testemunhar trechos de muitas obras cinematográficas espalhadas ao longo do tempo, o que nos faz passear por muitas estéticas, do preto e branco ao colorido. Mas o filme também foge do convencional da estrutura narrativa clássica, onde a nossa relação com as imagens é mais livre e direta, e podemos nos relacionar com o materialismo das imagens de uma forma bem mais criativa. Ou seja, essa estrutura “sem estrutura” nos permite fazer uma leitura muito mais subjetiva, criando diferentes afetividades com o que é visto.

A queda. Relação temática e livre com as imagens…

Dessa forma, “A Névoa Verde” é mais uma curiosidade com a qual nos deparamos no Festival do Rio 2018. Uma experiência sensorial pouco convencional que nos torna mais íntimos das imagens, pois elas estão mais vinculadas à referências do que a uma estrutura narrativa coesa e tradicional. Vale a pena dar uma garimpada nesse também.

Batata Movies (Especial Festival do Rio 2018) – Os Olhos De Orson Welles. O Desenhista Por Trás Do Cineasta.

Cartaz do Filme

O Festival do Rio 2018 foi de 1 a 11 de novembro, com cerca de 200 títulos. Ou seja, mais uma encolhida no Festival, que tem se mostrado cada vez mais combalido nos últimos anos. E, infelizmente para mim, não tive a oportunidade de ver filmes que realmente me interessavam pela questão do tempo e do trabalho. Pelo menos consegui assistir a “Os Olhos de Orson Welles”, esse sim um assunto que me chama a atenção, e é com ele que vou abrir a pequena série de análises dos filmes do Festival. Eu me considero até vitorioso por ter assistido a película, já que sua exibição teve uma série de problemas técnicos (filme que travava, legenda eletrônica que sumia e voltava, etc.).

Um homem multimídia para seu tempo…

Mas, do que se trata esse valioso documentário? O diretor Mark Cousins, narrando em primeira pessoa, procurou esboçar um pouco da trajetória de Orson Welles a partir de um grande achado: centenas de pinturas e desenhos pessoais do cineasta. Dialogando com a contribuição de Welles às artes plásticas, Cousins estabelece meio que um diálogo com essa incrível personalidade do século XX, onde muitas cenas de seus filmes ou imagens de arquivo também foram utilizadas. Pudemos ver ali detalhes da juventude de Welles, um pouco da história de sua mãe, uma ativista avançada para o seu tempo e que morreu quando o cineasta tinha apenas nove anos, seus amores, as mágoas que passou quando entrava em conflito com o sistema, etc.

O diretor Mark Cousins

O documentário também dialoga com suas produções cinematográficas, mostrando para o público toda a importância delas. E claro, conhecemos muitos detalhes do que Welles pensava sobre as coisas do mundo e de sua vida pessoal, onde alguns desenhos têm um tom intimista altíssimo, sobretudo na sua relação com as mulheres que amava. Há, inclusive, um trecho do documentário onde Cousins imagina uma suposta resposta de Welles ao próprio Cousins sobre as questões que são levantadas ao longo do documentário.

Beatrice Welles, a filha…

Um elemento que legitima demais tudo o que é apresentado no filme é a presença de Beatrice Welles, filha do cineasta, que é entrevistada e atua como uma espécie de consultora, dando acesso à sua coleção particular sobre o pai, onde podemos ver ainda mais pinturas e desenhos. Outro detalhe interessante é que Cousins tem a preocupação de retornar a locais que tiveram uma importância para Welles, com o intuito de mostrá-los como estão hoje. Em alguns casos, tudo continua como estava, mas em outros, tudo que lá existia já foi apagado.

Alguns de seus desenhos eram pequenas obras de arte…

O que mais chama a atenção nesse filme? É uma coisa que todo fã de cinema já está careca de saber, mas nunca é demais lembrar: Welles era uma força criativa em estado bruto, no sentido de que ele era muito producente e, simultaneamente revolucionário, seja quando produz um Macbeth somente com atores negros para o teatro, seja na sua estética expressionista em “Cidadão Kane”, seja no plano sequência memorável de “A Marca da Maldade”, seja nos ângulos de câmara de baixo para cima que tornavam gigante o protagonista. Podemos dizer que Welles era um homem multimídia de seu tempo, sempre se arriscando e experimentando, falando o que pensava e se engajando socialmente, o que despertava o ódio de pessoas muito importantes, onde William Randolph Hearst foi o maior paradigma.

… mas havia, também, espaço para Caco, o Sapo…

Assim, “Os Olhos de Orson Welles” é um grande documentário que foi exibido no Festival do Rio 2018, pois ajudou a gente a revisitar esse personagem e grande figura multimídia do século XX que foi Orson Welles, através de seus desenhos e pinturas, desconhecidos da maioria das pessoas. Vale a pena dar uma garimpada atrás desse.

Batata Movies – A Outra História Do Mundo. Ressignificações.

Cartaz do Filme

Um curioso filme, que é uma co-produção Uruguai/Argentina/Brasil passou em pouquíssimas telonas por aqui. “A Outra História do Mundo”, de Guillermo Casanova, é um filme que fala de resistência na ressignificação. Um filme onde a imaginação e a criatividade são usadas como armas contra o autoritarismo e a truculência.

Esnal. Sentimento de culpa pela prisão do amigo

O cenário é uma cidadezinha do interior do Uruguai sob a ditadura militar. Um coronel de nome Valerio (interpretado por Néstor Guzzini) faz as vezes da presença opressora do Estado sobre seus habitantes e ordena que os bares sejam fechados às dez da noite. Dois amigos, Esnal (interpretado pelo bom ator César Troncoso) e Striga (interpretado por Roberto Suárez) decidem fazer uma troça com o coronel e roubam os anões de jardim de sua casa. O problema é que Striga é capturado e desaparece nos porões da ditadura, o que deixa Esnal com uma pesada crise de consciência e ele fica recluso no seu quarto por muito tempo. As filhas de Striga decidem tentar trazer Esnal de volta a vida quando a mãe delas põe a casa à venda e vai embora. Esnal, depois do chamado da bela Beatriz Striga (interpretada por Natalia Mikeliunas) sai de sua auto reclusão e decide levar à frente uma nova estratégia de luta: ele propõe ao coronel dar aulas de História Antiga para a comunidade local. Só que as aulas serão uma alegoria da ditadura em que vivem, com Striga sendo o grande personagem histórico que luta contra o autoritarismo.

Boas lembranças do amigo Striga…

O filme é muito divertido, principalmente pela forma inteligente com que Esnal, nas barbas de todo mundo, distorce os fatos de um passado distante, usando muita lábia e uma forma inovadora de trabalhar com o retroprojetor, onde ele faz uma espécie de “animação” com fotografias impressas em transparências, no intuito de “reconstituir” as heroicas batalhas do passado, onde seu amigo Striga está lá como o grande personagem. O filme também lança o artifício do teatro de sombras enquanto o “professor” Esnal entretém seus alunos (aqui, devo confessar que me lembrei muito das sombras usadas no cinema expressionista alemão, o que deu um tom muito solene para a película). Toda essa forma criativa de se combater a ignorância da ditadura dá um tom deliciosamente lúdico para o filme e é sua grande atração.

Um coronel que controla a cidade com mão de ferro…

Quanto ao elenco, devemos dar todo um destaque especial a César Troncoso, que já trabalhou por aqui em “O Vendedor de Sonhos”. Sua presença é muito carismática, sobretudo como o grande contador de histórias que seu professor de História foi. Mas ele também impressiona nos momentos de reclusão de seu personagem Esnal, onde ele mostrou um desespero latente e uma insanidade grotesca, ao brigar com os anões de jardim do coronel que lhe faziam companhia no quarto. Néstor Guzzini também chama atenção por seu coronel Valerio, espelhando bem o lado ridículo e truculento do autoritarismo. Aliás, Guzzini já havia feito uma boa atuação em “Sr. Kaplan”. Só é uma pena que Roberto Suárez tenha aparecido pouco como Striga, mas foi bem quando esteve na tela. Ainda tivemos a participação de nosso ator Claudio Jaborandy fazendo um papel mais secundário de dono de bar.

O filme tem um alto tom lúdico…

Assim, “A Outra História do Mundo” é uma joia do cinema do Uruguai (lembrando sempre que Argentina e Brasil estão em co-produção) que merece toda a atenção dos cinéfilos. Só é uma pena que nossa rede de cinemas não seja suficientemente grande para exibir esse filme em mais salas; De qualquer forma, existem hoje outros meios para se ver tal película. Vale muito a pena dar uma conferida.

 

Batata Movies – O Doutrinador. Um Herói Brasileiro

Cartaz do Filme

Um bom filme brasileiro. “O Doutrinador” alia duas virtudes: a de se fazer uma história dentro de nossa realidade, mas com uma pegada típica de filme de super-herói da Marvel ou da DC um tanto hard core, já que há muito sangue em toda a película. Essa história, baseada no HQ de Luciano Cunha e dirigida por Gustavo Bonafé, parece também ser um grito coletivo de uma sociedade que já está exausta com a própria corrupção que produz. E aí, temos a catarse de expurgar, de forma muito violenta, todos os demônios que acometem essa mesma sociedade, para lá de combalida. O Doutrinador é uma espécie de produto de uma cultura de ódio que há muito tempo está em gestação.

Miguel, um policial que perde a filha…

Vemos aqui a história do policial Miguel (interpretado pot Kiko Pissolato), que pertence a um grupo de elite da polícia que faz busca e apreensão de políticos corruptos, mas também cumpre ações de despejo contra sem tetos. Enquanto que Miguel vê com bons olhos as ações contra políticos corruptos, ao mesmo tempo ele se inconforma com as ações policiais contra os menos favorecidos. Qual é o papel da polícia, afinal? Mas a vida de Miguel irá desmoronar quando sua filha é atingida por uma bala perdida à caminho do estádio para assistir a um jogo da Seleção Brasileira. Ela acaba morrendo por falta de atendimento no hospital, fruto da… corrupção. É nessa hora que o homem se revolta e participa de uma manifestação contra o governador do Estado, envolvido em vários ilícitos e saindo livre, leve e solto por determinação da justiça (você já viu essa história antes?). Surgirá então o Doutrinador, que esconde seu rosto atrás de uma máscara de oxigênio, depois que ele fica sob uma nuvem de gás lacrimogênio. E aí, com seu treinamento policial, ele mete a porrada em todo mundo com golpes coreográficos de artes marciais, sem falar que ele é muito certeiro com as armas de fogo, ao status de um bom sniper. Com todos esses ingredientes, nosso protagonista caça seus algozes de uma forma regada à extrema violência e com cara de Darth Vader de olhos vermelhos. Brincadeiras à parte, o visual ficou sinistraço e convence muito. É claro que Miguel não conseguirá fazer tudo sozinho nessa empreitada de combater o mal e a corrupção. Ele terá a ajuda de Nina (interpretada por Tainá Medina), uma hacker que abrirá ao nosso herói todas as portas para caçar os políticos do mal, que são verdadeiras alusões a todas as bandalheiras que estão por aí em vários setores.

… se transforma num caçador implacável de corruptos!!!

É um filme que ajuda a gente a aliviar nossa raiva e sentimento de impotência de como o país está indo ladeira abaixo para um estado de convulsão total. A gente sente um certo prazer sádico ao ver todos aqueles políticos corruptos tendo a cabeça estourada (sim, a violência chega a esse nível). Mas fica o espaço para um questionamento: o grande herói do filme é um… policial. Cá para nós, as forças policiais também não têm sido bem vistas em virtude de toda a guerra urbana que passamos e os chamados “autos de resistência”.

Colarinho branco na alça de mira…

Por isso mesmo, a construção do personagem teve que ser muito cuidadosa e detalhada. Miguel é um policial que caça corruptos, mas ao mesmo tempo se comove com os problemas sociais e ele mesmo foi vítima desses problemas ao ter a filha morta por uma bala perdida e por falta de atendimento no hospital. Essa foi uma boa saída para dar “superpoderes” ao nosso herói, pois ele usa o treinamento de sua força policial especial para atacar os políticos do mal, algo que seria impossível se ele fosse uma pessoa normal do povo.

Contando com a ajuda de uma hacker…

O desfecho do filme também foi bem apoteótico (embora eu não vá me alargar aqui sobre isso), hollywoodiano até. E parece que não há a intenção do projeto ficar somente nesse filme. Fique de olho numa cena pós-crédito que irá aparecer.

Capa da HQ

Assim, “O Doutrinador” é uma curiosa experiência de nosso cinema, onde temos a temática dos filmes de super-herói, ao bom estilo da Marvel ou da DC, com uma violência mais turbinada e muito bem encaixada com nossa realidade nacional, que tem parecido muito mais distópica do que qualquer produção de franquia de HQs. Que esse projeto possa ainda render mais bons frutos, pois ele parece ter muito fôlego e disposição para isso. Um programa imperdível para quem gosta de ação, suspense e muita violência, numa temática 100% nacional.

Batata Movies – Meu Anjo. Abandono De Incapaz.

Cartaz do Filme

Um bom filme francês. “Meu Anjo” (“Gueule D’Ange”), de Vanessa Filho, traz a diva Marion Cotillard toda loura oxigenada, com a jovem Ayline Aksoy-Etaix, que surpreende na película. Essa é uma história de uma turbulenta relação entre mãe e filha, com direito a abandono de incapaz e tudo. Temos um drama com levíssimas pitadas de humor e fortes doses de comoção.

Uma mãe doidona…

Vemos a trajetória de vida de Marlene (interpretada por Cotillard), uma mulher extremamente irresponsável que leva a sua vida em meio a muitas noitadas, bebedeiras e farras com homens. No meio disso tudo está Elli (interpretada por Etaix), uma menininha de apenas oito anos que precisa lidar com todas as instabilidades da mãe, pagando muito caro por isso. Elas convivem com a falta de grana, mas também com a night, onde Elli começa a trilhar os passos da mãe e mergulha muito cedo no álcool (não sem uma severa repreensão de Marlene, nos leves lampejos de lucidez). Até que, um dia, Marlene faz a porralouquice extrema: numa das noitadas, ela conhece um homem, coloca a filha num táxi pago para casa e simplesmente some por vários dias, deixando Elli abandonada à própria sorte. Esse será um momento em que a menina se sentirá profundamente sozinha e rejeitada por todos, até pelos amiguinhos de sua escola que a condenam pela maquiagem exagerada ou pelo fato dela consumir bebidas alcoólicas.

Uma menininha que quer afeto…

É um filme pesado. Mas absolutamente necessário. Apesar da situação parecer extremamente surreal, (a mãe que abandona uma filha por vários dias), ela não deixa de ocorrer normalmente no dia-a-dia. Eu, na posição de educador, volta e meia vejo situação semelhante: a de crianças que estão totalmente largadas no mundo, praticamente desprezadas pelos pais. A carência afetiva é muito grande, o que deixa o comportamento dessas crianças altamente problemático. E aí, é necessária muita, mas muita paciência para lidar com a situação. A gente acaba vendo tudo isso no comportamento de Elli, que ora se comporta como uma criança, ora se comporta de forma extremamente ressentida e até agressiva. Também pudera. Quando não é ignorada, é rechaçada pelas pessoas, o que acaba sendo demais para sua cabeça tão carente de afeto. Aqui, a gente tem que bater muitas palmas para Ayline Aksoy-Etaix que, mesmo com sua pouca idade, segurou com muita firmeza o rojão da complexidade de seu papel.

Uma relação instável…

A menininha transpirou infantilidade e inocência, mas também mágoa e ressentimento, sempre na mesma intensidade, sempre na mesma medida, e impressionou muito, engolindo até Cottilard. Essa também conseguiu ir muito bem, mostrando o verdadeiro caos emocional que era a sua personagem. Seu comportamento era tão errático que ela poderia ser extremamente amorosa e preocupada com sua filha mas, num piscar de olhos, largar a menina para lá como se fosse um objeto velho qualquer. Isso faz o espectador ter uma verdadeira relação de amor e ódio com a personagem de Cotillard e, ao mesmo tempo, abraçar cada vez mais Elli, a personagem de Etaix.

A solidão pode ser insuportável…

E o desfecho? Que pena que não posso contá-lo aqui, pois vai envolver um terceiro personagem que não entrarei em maiores detalhes para não estragar a surpresa (veja as pistas nas fotos e no trailer). Só dá para dizer umas poucas palavras sobre o fim do filme: ele foi um bálsamo para tantos momentos de dor ao longo da película, que nele se entrelaçaram. Talvez o desenrolar da narrativa tenha tornado esse final até previsível, mas ele foi tão intenso e tão poético que esquecemos de qualquer previsibilidade. E saímos da sala convictos de que valeu a pena gastar o dinheiro do ingresso.

Uma amizade…

Assim, “Meu Anjo” é mais um daqueles filmes franceses que valem a nossa atenção, pois tem Marion Cotillard, algo sempre muito bom de se ver. Mas também porque esse é um filme que denuncia a grave situação do abandono de incapaz, que não é uma exclusividade brasileira afinal. E, principalmente, por a gente encontrar mais uma joia promissora do cinema francês, que é Ayline Aksoy-Etaix. Vamos esperar que essa florzinha desabroche em sua plenitude. Tudo isso coroado com um lindo e poético desfecho. Um programa imperdível.

Batata Movies – O Nome Da Morte. Balada Do Pistoleiro.

Cartaz do Filme

Um ótimo filme brasileiro. “O Nome da Morte”, de Henrique Goldman, é baseado numa história real e fala da trajetória do pistoleiro Júlio Santana (interpretado por Marco Pigossi), que teria matado 492 pessoas e ficado preso apenas um dia de sua vida, estando ainda vivo e morando escondido com sua esposa e filho num sítio no interior do pais. Um filme que consegue ser, simultaneamente repugnante, em virtude das mortes das vítimas do pistoleiro, e um drama, dada a forma como Santana meteu os pés pelas mãos em sua vida. Vamos falar brevemente dessa película aqui sempre lembrando que alguns spoilers serão necessários.

Aprendendo um ofício com o tio…

O filme se preocupa em contar toda a trajetória de Santana, desde o início, quando ainda vivia com sua família e não tinha qualquer perspectiva profissional. Até que seu pai pede ao tio e padrinho de Santana, Cícero (interpretado por um irreconhecível André Mattos) que o levasse para a cidade para ser policial. O tio percebe que o menino é bom de mira e. assim, o inicia na vida de pistoleiro. As primeiras mortes serão, podemos dizer, muito dolorosas para Santana. Mas, com o tempo, ele consegue banalizar toda a violência em seu íntimo e passa a cometer seus crimes com muita frieza e naturalidade. O mais interessante é que, à medida que o filme passa, volta e meia um número aparece na tela, que é uma espécie de “placar” que vai contabilizando suas mortes. Mas nem tudo na vida de Santana são flores e ele tem problemas de relacionamento com sua esposa Maria (interpretada por uma deslumbrante Fabíula Nascimento, que rouba a cena por sua beleza e atuação) em virtude de todas as mortes que tem nas costas. Assim, nosso pistoleiro vai pisando em ovos para ganhar a vida e driblar seus problemas pessoais e emocionais.

Com o tempo, torna-se frio e calculista…

É claro que o filme incomoda. Nosso protagonista mata as pessoas pelos motivos mais vis, indo de uma briga num jogo de futebol, passando por uma índia que deve estar ocupando as terras desejadas por um grande fazendeiro, chegando até um líder sem terra. Realmente chega uma hora em que a gente quer mais é que o protagonista morra crivado de balas. O problema é que, por ser o protagonista, toda a carga dramática da película é construída em torno dele, o que acaba humanizando um personagem que não merece nada de humano (no bom sentido da palavra). Assim, a gente, como espectador, acaba ficando com os sentimentos meio que embaralhados com relação ao pistoleiro, algo que realmente nos tira de uma zona de conforto. Some-se a esse impasse uma trilha sonora tensa, curiosamente composta por ninguém mais, ninguém menos que Brian Eno, vejam só.

Fabíula Nascimento estava divina…

Esse é também um filme de caras conhecidas. Marco Pigossi foi relativamente bem, mostrando desespero e agonia quando estava em conflito nas primeiras mortes de Santana e uma frieza retumbante quando já carregava meio cemitério nas costas. O problema é que um elenco estelar ajudou a ofuscá-lo. Fabíula Nascimento enchia os olhos com a sua atuação e foi até um problema para Pigossi, pois ela contracenou muito com ele, sendo meiga, amorosa, e muito sofredora nos momentos mais obscuros do filme. André Mattos também ofuscou Pigossi e teve, talvez, uma das maiores interpretações de sua carreira, fazendo um tio paternalista e carinhoso com seu sobrinho, sabendo morder e assoprar nas horas certas. Sem dúvida, o grande ator desse filme. Como se não bastasse, Pigossi ainda teve que contracenar com Matheus Nachtergaele que, nos poucos momentos em que apareceu na película, foi soberbo como sempre e aproveitou cada segundo para destilar todo o seu talento como um marido psicopata. O filme ainda contou com uma rápida e bem vinda aparição de Tony Tornado, que deveria estar mais na mídia, pois além de bom ator sempre teve muito carisma. Pois é, mesmo atuando muito bem, a vida de Pigossi não foi fácil nesta película, já que seus colegas tinham muito e muito talento.

Na coletiva de imprensa…

Assim, “O Nome da Morte” é mais um grande filme brasileiro. Um filme que nos choca e nos incomoda, por provocar sentimentos tão díspares. Um filme que também acaba nos dando um choque de realidade, pois termina com um certo anticlímax, quando a gente quer um desfecho um pouco mais dramático, que nos ajude a acabar com os sentimentos conflituosos quando vemos essa película. Mas, mesmo que uma decepção paire no ar com o desfecho, se analisarmos mais friamente, não poderia haver desfecho melhor. Vale a pena dar uma conferida para prestigiar essa boa película de nosso cinema.

Batata Movies – Vinte Anos. Transformações Muito Rápidas Num País Parado No Tempo.

Cartaz do Filme

Um bom documentário brasileiro. “Vinte Anos”, de Alice de Andrade, é uma espécie de continuação do documentário “Lua de Mel”, onde a diretora, cerca de vinte anos atrás, foi a Cuba para documentar a vida de casais cubanos no dia-a-a-dia do embargo americano nos tempos do pós-ajuda soviética. A intenção era ver como a ilha se saía ao enfrentar a crise econômica provocada pelo embargo. Agora, anos depois, Cuba passa por um processo de abertura, e Andrade decide retornar à ilha para poder atestar como três daqueles casais vivem atualmente.

Um casal ontem…

E a documentarista encontra certas permanências mas também rupturas com o que viu vinte anos antes. Dentre as permanências, a situação de dificuldade financeira continua. Mas a ilha já mergulha numa ética capitalista, onde preços de imóveis alcançam níveis absurdos, ou já vemos carros um pouco mais modernos circulando pelas ruas, assim como várias reformas de prédios antigos em curso.

… e hoje, vendo suas imagens do passado…

Os três casais revisitados espelham diferentes situações: há um casal cuja família vive toda em Cuba, onde a esposa já é praticante de uma religião evangélica; a segunda família tem duas irmãs gêmeas, onde uma toca clarinete e permanece em Cuba, ao passo que a segunda é violinista e estuda na Orquestra Sinfônica da Costa Rica; já a terceira família emigrou para Miami com a autorização do governo cubano, pois como havia migrantes dessa família já estabelecidos em Miami, essa família era considerada separada. Mas uma das filhas não pôde viajar para os Estados Unidos, pois o avô dela não deixou (a menina era fruto de outro casamento), com a família permanecendo partida.

Ilha ainda parada no tempo, começa a chegar ao presente, não sem percalços…

Uma coisa o documentário atesta de forma bem marcante: a realidade dos cubanos agora é bem diferente, com uma maior liberdade religiosa ou acesso a recursos tecnológicos como a internet e o celular, o que possibilita a comunicação por vídeo com até outros países, algo impensável na Cuba de outrora. Mas, da mesma forma que o capitalismo traz benesses, ele traz também um nível de vida mais puxado, onde o preço dos imóveis dispara, indo além da realidade econômica do povo da ilha, que agora tem sua economia indexada pelo dólar, ao invés do baratíssimo peso cubano. Ou seja, nem sempre o capitalismo trouxe apenas benefícios para os cubanos.

Resquícios da Guerra Fria…

Uma coisa incomoda: o documentário não se aprofundou muito na explicação das mudanças pelas quais Cuba passa e optou por exibir tais mudanças apenas analisando o cotidiano das famílias. Tal situação presente do país poderia muito bem ter sido explicada de uma forma um pouco mais didática, ao invés de deixar nas costas do espectador o fardo de intuir as mudanças nas entrelinhas da materialidade das imagens. Isso daria um pouco mais de clareza para o cotidiano daquelas famílias e para compreendermos melhor a situação atual da ilha.

A diretora Alice de Andrade

Assim, “Vinte Anos” é um bom documentário brasileiro que busca esclarecer a quanta anda o cotidiano da ilha. Se ele não o faz de forma didática, ainda assim podemos intuir e deduzir tudo pelo que é apresentado nas imagens. A forma como as famílias foram tratadas e exibidas no documentário traz a gente um nível de intimidade com esses personagens reais como se nós os conhecêssemos há bastante tempo, dando uma empatia muito alta entre espectador e os personagens. O cotidiano dos personagens é outro detalhe que chama a atenção, já que sabemos que eles terão que se adaptar à ética capitalista, por bem ou por mal. Quem sabe Alice de Andrade não faz uma terceira parte do documentário daqui a alguns anos? Fica aqui a sugestão. Por ora, não deixem de assistir a esse documentário pelo seu primor de qualidade.

Batata Movies – A Última Abolição. Mais Uma Vez A Desmistificação.

Cartaz do Filme

Um bom documentário brasileiro dirigido por Alice Gomes. “A Última Abolição” revisita o tema da Abolição da Escravatura e a questão do afrodescendente no Brasil. Para quem tem um conhecimento mínimo no assunto, o tema parece ser recorrente. Mas sempre é bom revisitá-lo, pois as pesquisas têm avançado e descoberto novos pontos de vista sobre o contexto. Ainda, voltar a falar da escravidão e do negro no Brasil tem tido uma grande importância, principalmente nos tempos turbulentos que temos vivido e onde a ignorância de muitas pessoas sobre temas históricos tem levado a uma série de equívocos e erros de interpretação sobre as mais variadas questões sociais. Assim, um filme que nos relembra algumas coisas e apresenta outras novas sempre é bem vindo.

João José Reis é um dos entrevistados…

Vários estudiosos e pesquisadores sobre o tema são entrevistados e constroem o panorama que o documentário pretende apresentar. No meio acadêmico, temos figuras, por exemplo, do porte de uma Hebe Mattos e João José Reis. O recorte pretendido no filme se detém pouco na escravidão colonial e dá mais atenção para a Abolição em si e, principalmente, para uma questão que muito poucas pessoas se perguntam: como ficou a situação do negro no Brasil depois da escravidão? Além de serem simplesmente jogados à própria sorte, o Código Penal da época criminalizava todas as situações em que os negros viviam. Por exemplo, foi configurado o crime de vadiagem, numa época em que muitos negros que, mal acabaram de ser libertados, ainda estavam desempregados. Assim, se a Lei Áurea liberta os escravos, o Código Penal os coloca novamente nos grilhões. Há, também, o questionamento (já meio batido) de se a Princesa Isabel é a “grande Redentora e libertadora dos escravos” ou se o processo da Abolição deve ser visto como uma luta dos negros em si. Outro mito já desfeito e que é relembrado no filme é a questão da “democracia racial” de Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala”. Mas o filme traz alguns elementos interessantes não conhecidos do grande público, como o ato de Rui Barbosa ter queimado as notas de vendas dos escravos (ele ficou conhecido como um destruidor de fontes sobre a escravidão e criticado por isso), pois os senhores, após a Abolição, queriam uma indenização do Estado por terem perdido seus escravos, suas “propriedades”. Embora Barbosa tenha dito na época que eram os escravos que mereciam a indenização, parece que o ato do famoso jurista foi mais o de livrar o governo de pagar pesadas indenizações do que de compaixão com os escravos em si. Enfim… Outro elemento muito interessante que é citado no filme é o surgimento de movimentos que lutam pelos direitos dos negros no Brasil nas décadas de 30 e 40, que teriam influenciado movimentos negros nos Estados Unidos posteriormente, muito antes dos movimentos de Martin Luther King e Malcolm X pelos direitos civis na década de 60, desmistificando a visão corrente de que os movimentos negros brasileiros seriam um mero decalque influenciado pelos movimentos negros americanos, quando temos justamente uma situação contrária.

Hebe Mattos é uma das entrevistadas…

O documentário ainda faz um alerta da estratégia de genocídio sistemático das populações negras de comunidades mais pobres, fazendo de forma eficiente um link direto com a cultura de escravidão que ainda perdura de forma muito forte em nosso país.

A diretora Alice Gomes e Luciana Barreto, que fez as entrevistas…

Dessa forma, “A Última Abolição”, apesar de ser um documentário um pouco repetitivo em alguns momentos, ainda assim se faz absolutamente necessário, pois ele traz alguns elementos novos e nunca é demais lembrar a situação altamente espinhosa que a comunidade negra brasileira passa em nosso país, onde racismos e genocídios fazem parte da ordem do dia, tudo isso uma herança dos mais de três séculos de escravidão que assolaram o Brasil e que não se apagam tão facilmente, mesmo depois de cento e trinta anos de Abolição da Escravatura. Tal documentário é fundamental em dias de tanto ódio e de intolerância como os que temos vivido. Programa imperdível.