Batata Movies – Argentina. Viagem Multicultural.

Cartaz do Filme

O genial Carlos Saura volta a atacar! Esse brilhante cineasta, que faz musicais com um estilo todo próprio, cheio de muito amor e carinho, e que mostra a cultura viva pulsando em toda a sua existência, volta a Argentina (já havia rodado o espetacular “Tango”) para, agora, falar um pouco do folclore do país vizinho. Aqui no Brasil, a película ficou com o singelo título de “Argentina”, mas o título original em espanhol é “Zonda: Folclore Argentino”, uma referência aos muitos estilos musicais e de dança presentes no país, que vão desfilando ao longo do filme como um rosário multicolorido e multicultural. Aliás, essa é a grande característica: uma mistura extremamente rica de culturas.

Folclore argentino, a grande atração…

Presenciamos a mistura de elementos altamente europeus, indígenas, africanos, gaúchos e muito mais. Canções cujas letras nos falam de temas altamente poéticos como o amor e a natureza, mas que também não se esquecem de uma forte temática de cunho social. Canções que também revelam diferentes ritmos e peculiaridades de cada região em que são produzidas. É de se lamentar, somente, que tais ritmos, danças e canções não tenham sido explicadas mais a fundo. Há pouquíssimas legendas explicativas que definitivamente não saciam a nossa sede de informações. Mas quem já conhece o cinema de Saura de longa data sabe como ele trabalha: ao invés de um enciclopedismo e uma visão mais didática, os musicais se pautam muito mais na experiência sensorial do espectador, que entra em contato direto com o meio cultural em questão, despertando a sua curiosidade para pesquisar o tema mais a fundo posteriormente, tamanha é a sedução de sons e imagens que as películas de Saura despertam em nós.

Gatinhas lúdicas e eróticas…

Os números de dança eram simplesmente sensacionais. Havia desde uma espécie de “variação” do tango, só que dançado com muito mais contato corporal, fortes trocas de olhar dos parceiros e grande sensualidade, passando por “gatinhas” que conseguiam ser simultaneamente lúdicas e eróticas sem serem vulgares, chegando a números onde a cultura gaúcha dava a sua cara.

Essas cordas com bolas davam um nervoooso!!!

Havia dois dançarinos já na meia idade que deram um show, principalmente num número onde usavam cordas com bolas em suas pontas. Os caras giravam aquelas cordas numa velocidade que gerava, ao mesmo tempo, um profundo encantamento e uma forte aflição, pois se uma daquelas bolas acertasse a cabeça de um, poderia machucar feio. No filme, nada aconteceu, obviamente. Mas, e nos ensaios? Fica essa dúvida no ar.

Fotografia sempre deslumbrante…

O uso de instrumentos musicais também foi marcante. Desde violões até pianos, sendo usados de forma convencional ou pouco ortodoxa, chegando até a instrumentos mais ligados ao folclore local, como tambores de couro animal. Os números de instrumentos musicais foram outra atração à parte, que hipnotizavam e fascinavam.

Carlos Saura, o cara!!!

Assim, “Argentina” é mais uma das pequenas joias de Saura, meticulosamente dilapidada com uma riqueza de detalhes que beira o infinito. Se suas outras produções eram um pouco mais monotemáticas, onde se aborda uma dança ou um estilo musical em particular, dessa vez temos um verdadeiro caleidoscópio cultural onde o folclore argentino foi a grande atração. Tamanha variedade de manifestações artísticas é o testemunho da forte miscigenação cultural da América que aliou de forma criativa elementos locais com influências estrangeiras, sejam da Europa, sejam até da África (!). Isso tornou o musical uma espécie de documentário mais sensorial do que explicativo, que serve como um grande motivador de interesse pela cultura de nosso país vizinho e nos deixa com sede por conhecer um pouco mais de cada flor daquele caleidoscópio. É o cinema em pura expressão de arte, do jeito que Saura sempre soube fazer. E o tipo do filme que você deve ter em sua casa, da mesma forma que você tem um quadro ou um CD de música erudita, ou seja, temos aqui um produto cultural não descartável, ao contrário daquele blockbuster que você consome e depois joga fora. Aqui não. Saura é para ver, ter e guardar.

Batata Movies – Variações De Casanova. Ópera Filmada?

Cartaz do Filme

John Malcovich ataca novamente. Ele protagoniza “Variações de Casanova”, escrito e dirigido por Michael Sturminger. Como o próprio título sugere, a ideia aqui não é contar a vida do conhecido mulherengo Giacomo Casanova de uma forma única e engessada, mas sim com variações, embora elas se tornassem pouco visíveis ou demasiado sutis ao longo da película. Tomando como locação o Teatro São Carlos em Lisboa, o filme (e, também, a peça, assinada pelo próprio Sturminger) se desenvolve como um grande teatro e ópera filmadas, embora se faça toda uma brincadeira com a situação, onde, em alguns momentos, haja um toque mais hilário, como na ocasião em que Malcovich, ao início do filme, simula um piripaque, que faz parte da peça, e uma médica do público busca prontamente atender o ator, sendo obrigada a assistir a peça dos bastidores até o intervalo, para não impedir o andamento do espetáculo. Ainda, o filme usava outros espaços do teatro além do palco, onde podíamos ver Malcovich e Veronica Ferres contracenando juntos numa saleta ou em outras dependências. Mas os grandes momentos do filme, sem a menor sombra de dúvida, são as sequências de claro teatro filmado e, principalmente, de ópera filmada, realizadas por cantores líricos profissionais. Tudo isso deu um grande toque de muita plasticidade à materialidade visual do filme, mas também foi um deleite para os que amam ópera e música erudita.

Malcovich, fazendo Casanova e ele mesmo…

Do que se falou de Casanova? O personagem protagonista já estava numa idade relativamente avançada e pensava em escrever suas memórias. Vemos aqui um conquistador ainda na ativa, mas que se ressentia de alguns atos de seu passado, embora guardasse com carinho na lembrança muitos outros, como o flerte com um castrati, os antigos cantores líricos que castravam seus órgãos sexuais para afinarem suas vozes (no caso, o castrati aqui foi interpretado por uma atriz, o que deu ao personagem um visual de grande androginia). Dos atos mais sentidos, a paixão pela filha de uma antiga amante, amante essa interpretada pela magnífica Fanny Ardant, que apareceu por pouquíssimos minutos, deixando na alma do cinéfilo de carteirinha um gostinho de “quero mais”.

Amor com um castrati…

E os atores? Nem é preciso falar muito de Malcovich. Ele esteve genial como sempre, podendo ser dramático, engraçado, sedutor, atormentado, enfurecido quando ele quisesse. Sem falar que ele fazia o próprio Malcovich no filme, seja falando com a amiga que odiava ópera no intervalo da peça (como se os atores circulassem livremente pelo público em intervalos de peças; viva a liberdade poética do cinema!), seja falando com a médica lá do início da película, que era uma fã inveterada do ator e fazia perguntas constrangedoras que Malcovich, sabiamente, respondia com falas da peça (“Como um cavalheiro, responderia à sua pergunta?”).

Elegantemente saindo da saia justa de uma fã…

Veronica Ferres, por sua vez, mostrou-se uma versátil companheira de palco de Malcovich, trabalhando com o ator diálogos que exploravam os traumas de uma relação amorosa descartável bem ao estilo do amante, embora fosse difícil acompanhar os diálogos em virtude do belíssimo vestido vermelho da atriz, com um decote para lá de voluptuoso e generoso, um verdadeiro deleite para os olhos.

Uma bela química…

Assim, se “Variações de Casanova” caíram mais no lugar comum da ópera e do teatro, ainda assim houve variações, sobretudo na mesclagem das obras que exaltavam o amante com um “suposto” mundo real, onde o próprio Malcovich era personagem. O filme conta ainda com um vistoso figurino e números musicais de muito bom gosto que, entretanto, pode entediar os não iniciados no mundo da ópera, mas é um prato cheio para os amantes dessa nobre arte. É o tipo do filme que você não vê por aí todo o dia e vale a pena a experiência.

Batata Movies – O Processo. Radiografia De Um Impeachment.

Cartaz do Filme

Estreou nos cinemas o documentário “O Processo”, de Maria Augusta Ramos. Esse é um filme muito inserido em questões contemporâneas e que trata de um tema extremamente espinhoso: o processo de impeachment de Dilma Rousseff, ocorrido há pouco menos de dois anos. Poucas vezes um filme chegou tão próximo a questões de nosso cotidiano no tempo (as últimas informações presentes no filme se remetem a abril de 2018), dando uma sensação de que vemos algo que “saiu do forno” muito recentemente.

Documentário é focado na equipe do então Governo Dilma…

E como foi que a diretora tratou esse tema muito polêmico, capaz de despertar as reações mais inflamadas? Ela simplesmente ligou a câmara e deixou as imagens falarem por si mesmas. Nenhuma interpretação delas, nenhuma leitura. Ela somente se preocupou em registrar o que se passava no Congresso Nacional naqueles meses turbulentos, deixando para o público tirar suas próprias conclusões do que assistia. Ao não descrever o que se passava nem dar uma opinião enquanto realizadora do documentário, Ramos parece ter buscado a intenção da isenção.

Entretanto, todos nós sabemos que ninguém é filho de chocadeira e uma isenção total é algo praticamente impossível. Todos têm um posicionamento, ainda mais nos dias turbulentos pelos quais nós temos passado, e a diretora optou por focar o documentário mais na defesa preparada pela então base governista, mostrando, principalmente, as ações dos senadores Gleisi Hoffmann, Lindbergh Farias e o advogado José Eduardo Cardozo. E, nesse momento, a diretora do documentário se posiciona, assim como isso já ocorreu em outros filmes que têm tratado os dias de instabilidade política do Brasil recente.  Outro indício do posicionamento da diretora pode estar na montagem, onde algumas discussões acaloradas no Congresso entre a situação e a oposição eram suprimidas antes de seu final, e ficava na gente a sensação de curiosidade de como aquilo teria acabado.

Dilma depõe no senado…

Agora, uma coisa é certa: o filme é muito esclarecedor em vários aspectos, sobretudo dos lados em que cada conhecido político está, lados esses muito bem definidos hoje em dia. As imagens do plenário da Câmara dos Deputados e do Senado não deixam mentir.

Uma coisa assusta: o tom profético do discurso de Roberto Requião no dia em que Rousseff foi definitivamente afastada. Muitas das coisas que ele falou naquele dia (e coisas muito ruins) acontecem agora e pululam em nossos noticiários.

Assim, “O Processo” é um documentário polêmico sobre um assunto muito complicado que foi o impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Um documentário que tem a coragem de se posicionar politicamente, mas ainda assim tenta mostrar um registro relativamente isento, sem interpretar ou descrever imagens. Foi ligar a câmara e captar o que acontecia, para o público tirar suas próprias conclusões. Um programa imperdível.

Batata Movies – Roda Gigante. Mais Um Woody Allen.

Cartaz do Filme

Woody Allen volta à cena com mais um filme, desta vez com o bom “Roda Gigante”. Uma película mais voltada para a tragédia do que para a comédia. Um filme, acima de tudo, inusitado.

Ginny, uma mulher infeliz…

Vemos aqui a história de Ginny (interpretada por Kate Winslet), uma dona de casa que trabalha de garçonete num bar e que vive dentro de um parque de diversões, em frente a roda gigante e ao lado de uma irritante barraca de tiro ao alvo, numa decadente Coney Island da década de 50. Um belo dia, uma moça chega ao parque, procurando o marido de Ginny, Humpty (interpretado por Jim Belushi). Trata-se de Carolina (interpretada por Juno Temple), filha de Humpty, que não falava com o pai há cinco anos mas que agora o procura, pois ela se casou com um mafioso e foi obrigada pela polícia a depor contra o marido, sob a pena de ficar na cadeia. Carolina agora é procurada pelos mafiosos e vai se esconder na casa do pai, para o desespero de Ginny, que é infeliz no casamento e ainda tem um filho piromaníaco, fruto de um relacionamento anterior. Como se não bastassem todos esses problemas, Ginny vai se envolver com um salva-vidas, Mickey (interpretado por Justin Timberlake), buscando um certo alívio em sua vida altamente estressante. Até o dia em que Mickey conhece Carolina. Paremos com os spoilers por aqui.

Dificuldades de relacionamento com o marido…

Os últimos filmes de Allen têm sido ou de comédias mornas, de um fim com acentuado anticlímax (caso de “Cafe Society”, com Jesse Eisenberg), ou então de filmes com uma pegada maior de suspense (caso de “O Homem Irracional”, com Joaquin Phoenix), sendo estes últimos de suspense mais instigantes.

Ginny tenta aliviar suas mágoas ao lado de Mickey

Parece que “Roda Gigante” atingiu um meio termo entre esses dois pólos, pois o anticlímax está lá no desfecho (que, obviamente, não direi aqui), mas há, também, uma leve pegada de suspense no caso dos mafiosos. Agora, o grande ingrediente do filme é um drama psicológico profundo, com um leve, e quase imperceptível, humor negro (o filme, definitivamente, não é bem exatamente para rir, embora tenha momentos engraçados), que conta uma tragédia sobre pessoas convencionais de um nível social baixo, cuja desilusão no relacionamento é o mote principal. Há um leve arremedo intelectual no passado de Ginny (que queria ser atriz e tinha alguma experiência em teatro) e Mickey (um cara que fazia pós-graduação e se encantava com literatura), mas isso ficou mais como um elemento para cimentar o relacionamento entre a atriz frustrada e o salva-vidas cheio de frescor (no bom sentido, é claro) e esperançoso no futuro de sua vida.

Carolina, perseguida pela máfia…

O filme é muito focado nas angústias de Ginny, uma personagem com a qual rapidamente nos identificamos, muito em virtude do sofrimento explícito de suas angústias (quem não as tem?). A interpretação de uma Kate Winslet envelhecida, mas não menos linda e sensual, com seu uniforme apertado de garçonete dos anos 50, foi simplesmente magistral e, mesmo que não fosse um filme de Woody Allen, o preço do ingresso já valia a pena pela presença da atriz. Outra grata surpresa foi a interpretação (e a volta) de Jim Belushi. Lembrado mais por suas películas de humor regadas à ação (ou vice-versa), Belushi surpreendeu como o marido vaca-brava e rude, mas, ao mesmo tempo, totalmente dependente emocionalmente, o que o fazia ir da bravata à submissão em questão de segundos. Tal complexidade fazia a gente também se afeiçoar com ele.

O diretor Woody Allen e seu elenco

Asssim, “Roda Gigante” pode ser considerado um bom filme de Woody Allen, depois de uma certa decepção com “Cafe Society”. O diretor, conhecido pelas películas de humor, investiu mais no suspense nos últimos anos, e conseguiu misturar os dois gêneros nessa película relativamente bem. Vale a pena pegar em DVD se você não viu no cinema. E, afinal de contas, é um filme do Woody Allen, que, por seu nome, acaba sendo uma espécie de programa obrigatório para o cinéfilo que se preza.

Batata Movies – O Sacrifício Do Cervo Sagrado. Crendice Superando A Razão.

Cartaz do Filme

Você conhece aquelas pessoas que costumam “rogar praga” nos outros? Volta e meia, a gente escuta um ou outro caso de um espírito de porco assim. Pois é, esse é justamente o tema do filme “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, dirigido por Yorgos Lanthimos, onde o místico atropela a vida de pessoas que sempre se pautaram pelo racional. Devo confessar que, para me fazer mais claro aqui, vou precisar lançar mão de alguns spoilers.

Steven, um médico racional

Vemos aqui a história de Steven Murphy (interpretado por Colin Farrell), um renomado cardiologista casado com uma médica também bem sucedida, Anna Murphy (interpretada por Nicole Kidman). Eles vivem num mundo rico e perfeitamente racional, o que faz com que o casal trate seus filhos de forma muito fria e onde as regras bem cumpridas são o mote principal. Mas um pequeno detalhe irá causar muita turbulência nesse mundo aparentemente perfeito. Steven volta e meia se encontra com Martin (interpretado por Barry Keoghan), um adolescente com um comportamento no mínimo estranho, meio letárgico, meio receoso com o que Steven pensa sobre ele. Aos poucos, Martin vai entrando na família de Steven. Mas o que parecia ser um adolescente inseguro vai se revelar uma verdadeira ameaça quando Martin “roga” uma espécie de praga para a família de Steven: se ele não escolher um membro de sua família para matar, toda a família morrerá, com seus membros ficando inicialmente doentes, passando por outros problemas de saúde, até chegarem à morte.

Anna, uma médica racional

Martin rogou essa praga em Steven, pois o pai do garoto foi operado pelo médico e acabou morrendo. Havia uma suspeita não confirmada na película, de que Steven havia operado o pai de Martin depois de tomar umas bebidinhas e teria feito a cirurgia um pouco bêbado, o que teria matado o paciente. Para um homem de ciência como Steven, tal ameaça de Martin poderia até parecer uma bobagem, mas a coisa começa a ficar muito esquisita depois que seu filho caçula adoece e fica sem sentir suas pernas. Daí para a frente, o filme se torna uma grande jornada ao inusitado.

Martin, o rogador de pragas…

Esse, definitivamente, é um filme que trabalha dois pólos de forma bem dicotômica e antagônica: a superstição e a razão, com a primeira subjugando totalmente a segunda. A família inteiramente racional, sem qualquer pingo de emoção, que se transforma até em um bastião de arrogância e frieza robótica, é atingida em cheio por uma praga supersticiosa rogada de forma totalmente irracional. A situação inédita à qual a família é submetida faz com que ela não tenha qualquer ideia de como vai lidar com a adversidade, levando muitas vezes a situações em que seus membros saem completamente do controle. É um filme onde o irracionalismo prevalece em grande parte da exibição, quase sendo um personagem.

Martin se envolve com a filha da família…

E os atores, como foram? Colin Farrell foi muito bem, todo artificial como seu personagem exigia. Entretanto, as explosões emocionais, de tão intensas, destoavam um pouco do resto de sua interpretação, ficando um tanto caricatas. Kidman, por sua vez, conseguiu jogar um pouco melhor com essa variação frieza/emoção, pois sua personagem parecia ter mais interesse em resolver o problema e encarava a situação de uma forma, digamos, mais prática. O jovem ator Barry Keoghan foi um tanto plano, onde as nuances de sua atuação pareciam ser mais auxiliadas pelas falas. Só foi de se lamentar a curta e fugaz participação de Alicia Silverstone no papel da mãe de Martin. Com pouquíssimo tempo de tela, a impressão que se deu é de que a moça está no ocaso de sua carreira. Triste fim para quem já foi um dia a Batgirl.

O conflito entre o racional e o irracional…

Assim, “O Sacrifício do Cervo Sagrado” é um daqueles filmes que chamam a atenção pela sua dose de inusitado e pela sua clara afronta a cultura racional, que é subjugada por uma superstição. Para dar mais essência à mensagem do filme, o elenco de medalhões ajudou muito, sendo este também um filme de atores. É uma curiosa experiência assistir a esse filme, que aborda uma temática que não se vê todo dia por aí, sendo que essa película vale a pena uma visitinha.

Batata Movies – Coragem! As Muitas Vidas De Dom Paulo Evaristo Arns. Vivendo Como Pregava.

Cartaz do Filme

Quando falamos do posicionamento da Igreja Católica no que se refere aos dias da ditadura militar, logo dois nomes nos vêm à cabeça: Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo, e Dom Eugênio Sales, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro. Sempre ficou um tanto pontuado que os dois tinham posições muito definidas. O primeiro assumiu uma postura mais combativa, lutando pelos pobres e contra a opressão, e o segundo mais antenado com o sistema vigente da época. Há alguns anos, essas duas posições foram revistas e relativizadas. Há quem diga que Dom Paulo tenha participado de algumas reuniões com os militares para conversar sobre os atos do governo golpista no que se referia aos presos políticos (como eles seriam tratados, por exemplo) e outros dizem que Dom Eugênio escondeu em casa pessoas perseguidas pela repressão politica. Polêmicas à parte, foi lançado o bom documentário “Coragem! As Muitas Vidas de Dom Paulo Evaristo Arns”, de Ricardo Carvalho, que tem o objetivo de traçar a trajetória do famoso Cardeal Arcebispo e seus inúmeros atores sociais naqueles dias tão turbulentos da ditadura militar.

Um cardeal de coragem…

O filme é uma verdadeira homenagem ao Cardeal Arcebispo e à sua luta pelos menos favorecidos, não buscando cair em qualquer tipo de polêmica. É um documentário estruturado de forma bem simples e convencional, narrado por Paulo Betti, e formado por entrevistas de pessoas da família, amigos, conhecidos, além de muitas fotografias, entrevistas e depoimentos do próprio Dom Paulo, onde podíamos sentir todo o seu espírito combativo e energia, manifestos sempre na palavra “coragem”, que ele entoava a todos que encontrava.

Sempre de bom humor, mas combativo nas horas certas…

Sem a menor sombra de dúvida, os momentos mais dramáticos do filme eram aqueles em que Dom Paulo combateu a ditadura abertamente, visitando presos que eram torturados, enfrentando cara a cara altas autoridades (o Cardeal chegou a promover um encontro entre Golbery do Couto e Silva, general estrategista do governo no mandato de Médici, e parentes de desaparecidos da ditadura militar, além de um encontro tenso com o próprio Médici, que lhe rendeu o fechamento da rádio onde Dom Paulo mantinha um programa diário) e participando dos mais variados movimentos sociais que sempre eram violentamente reprimidos pela polícia (deu-se a entender no filme que, não fosse a presença do Cardeal, a polícia poderia ter promovido verdadeiros massacres contra esses movimentos sociais).

O fatídico encontro com Médici…

Ao divulgar e distribuir uma cartilha sobre os direitos humanos analisados à luz do cristianismo, Dom Paulo foi acusado pelos mais conservadores de estar defendendo bandidos (já vi esse filme mais recentemente). Mas Dom Paulo rebatia. No programa Roda Viva, ele disse que Jesus foi acusado de estar com meretrizes, bandidos e todo o tipo de ralé da sociedade. Pelo menos, Dom Paulo foi acusado de estar apenas com bandidos. E lembrou que aqueles que querem punir bandidos são os mesmos que não dão emprego para a pessoa ter uma vida minimamente digna e não cair na bandidagem. E que isso está sendo visto.

Apoiando causas sociais…

Uma curiosidade foi a que o Cardeal tinha um relacionamento melhor com os papas do que com a Cúria Romana, tratada no documentário como realizadora de práticas que a deixam vista como um verdadeiro poder paralelo e que age de forma extremamente conservadora. Num dos depoimentos de Dom Paulo, ele deixa bem clara essa posição meio que litigiosa contra a Cúria Romana.

Um dos fatores que deixaram o documentário bem rico foi o fato de que o Cardeal era também jornalista e ele usou a mídia como ninguém para divulgar suas ideias e tocar os seus projetos, chegando ao ponto (inusitado, visto por alguns) de dar entrevista em revista masculina e até participação especial como ator numa novela da extinta TV Tupi.

Indo onde estavam os menos favorecidos…

Assim, “Coragem! As Muitas Vidas de Dom Paulo Evaristo Arns” é mais um daqueles documentários obrigatórios, pois mostra a vida de um religioso realmente de muita coragem, que enfrentou forças opressoras que voltam a nos assombrar nos dias de hoje. O documentário nos ajuda a contextualizar um pouco que forças são essas. Programa imperdível.

Batata Movies – Mulheres Divinas. Lutando Por Um Direito.

Cartaz do Filme

Uma produção suíça passou em nossas telonas. “Mulheres Divinas”, dirigido por Petra Biondina Volpe, fala da luta das mulheres daquele país pelo direito de voto feminino, algo obtido somente no ano de 1971 (!). Já é muito surpreendente que um direito tão básico tenha sido autorizado tão tardiamente num país capitalista ocidental. Mas, mais surpreendente do que isso, foi como o filme abordou a questão, pois ele se passa numa aldeia do interior da Suíça, onde o conservadorismo se manifestava em todos os pontos do vilarejo, o que fez o espectador sentir com muito mais intensidade todos aqueles dias de repressão pelos quais as mulheres passavam.

Nora, uma mulher que começa uma luta…

A história tem como protagonista Nora (interpretada por Marie Leuenberger), uma dona de casa bem casada, com dois filhos, que se dedicava às tarefas domésticas e queria trabalhar fora, mas era impedida pelo marido, que evocava a lei que dizia que o marido dava a palavra final nos assuntos particulares da família. Ela também ficou horrorizada com a prisão da filha de seu cunhado por sair com o namorado e fumar maconha. Num belo dia, enquanto ela estava numa cidade um pouco maior, recebeu panfletos que faziam campanha pelo direito de voto para as mulheres. Inconformada com o extremo machismo de sua aldeia de interior, Nora vai começar a questionar esse poder masculino, iniciando uma campanha a favor do sufrágio feminino. Mas isso traria muitos problemas para ela, sendo o seu grupo hostilizado por todos os homens da cidade. A moça também sofre dentro de casa, sendo hostilizada pelo sogro, marido e até os próprios filhos.

Tal luta vai provocar turbulências sérias com o marido…

O filme segue uma fórmula há muito batida, de luta pelos direitos, onde vemos o nascimento do movimento, as pequenas conquistas iniciais, o aumento do número de membros do grupo, o contra-ataque do oponente, geralmente feito de forma violenta, e a volta por cima no final. Mas o mais interessante aqui é que o comportamento conservador de uma aldeia provinciana da Suíça é contraposto com imagens tais como toda a liberação sexual de Woodstock, foguetes Apolo indo à Lua e manifestações feministas em cidades maiores da Suíça.

Participando de novas experiências…

A impressão que se dava é a de que a aldeia é eleita uma alegoria da própria Suíça e de como ela ficava atrasada no tempo frente aos avanços externos. Outra alegoria curiosa aconteceu quando Nora via um globo terrestre com os filhos e, ao estar com o dedo em cima do Oceano Pacífico, ela se lembrava das criaturas que viviam nas fossas abissais, a quilômetros de profundidade, onde o escuro e silêncio totais estavam presentes. Tais criaturas são completamente insensíveis ao mundo exterior, assim como os habitantes da pequena aldeia, que se recusavam a ver o mundo à sua volta e continuavam chafurdando na lama do conservadorismo.

Enfrentando toda uma cidade…

Um outro elemento que chama a atenção é o humor presente no filme, algo um tanto difícil de se ver numa produção de origem mais teutônica, principalmente porque esse humor consegue dialogar bem com a plateia daqui e ajudar a nos identificar com os personagens.

É hora de empunhar a bandeira do voto feminino!!!

Assim, “Mulheres Divinas” é um filme que fala de uma importante luta por direitos ocorrida tardiamente num país capitalista ocidental e ainda chama a atenção pelo diálogo entre tradição e modernidade, com simpáticas pitadas de humor. Vale a pena dar uma conferida.

Batata Movies – Submersão. Cada Um Afogado Em Seus Problemas.

Cartaz do Filme

Wim Wenders está de volta em grande estilo com seu filme “Submersão”. E eu digo isso, pois o renomado diretor alemão trabalha com dois atores de peso: James McAvoy e Alicia Wikander, tendo, ainda, a excelente participação de Alexander Siddig, o Doutor Bashir de “Jornada nas Estrelas, Deep Space Nine”, para delírio dos trekkers de plantão que tiveram a oportunidade de ver a película.

James e Danielle se conhecem num hotel…

A história fala de um jovem casal de namorados, James More (interpretado por McAvoy) e Danielle Flinders (interpretada por Wikander), que se conhecem num hotel em período de férias. A relação é altamente idílica e sentimental, no bom sentido da palavra. Mais do que o amor físico, está um amor mais da alma, onde duas pessoas que se conhecem rapidamente e tiveram muito pouco tempo para estarem juntas, encontraram uma alta afinidade, mesmo que elas exercessem ofícios bem diferentes: James é uma espécie de agente que investiga ações do Estado Islâmico na África, e Danielle é uma cientista que estuda vida subaquática a grandes profundidades.

Logo rola uma terna química entre os dois…

Apesar dos ofícios altamente díspares, podemos dizer que há algo em comum entre eles, pois ambos estão submetidos a um risco de vida profundo, como se a “submersão” do filme fosse justamente estar afundado até abaixo do pescoço para cumprir tais ofícios e o risco envolvido compensasse a execução de tais tarefas, dada a importância dos objetivos a serem alcançados. O problema é que os empregos de nossos protagonistas os impõem ao isolamento um do outro, o que provoca muita dor no casal. Mas o mais lindo de tudo é que tal isolamento é justamente o que estimula o casal a lutar contra o estado de submersão, pois eles batalham para estar juntos novamente. E aí está toda a poesia do filme, coalhada de momentos de flashback do casal junto, momentos muito breves e efêmeros que confortam as almas de nossos personagens nos momentos mais dolorosos da submersão.

Mas, infelizmente, a vida nos prepara algumas surpresas…

Não preciso dizer aqui que esse é mais um filme de atores bem dirigidos. Apesar de muito diferentes, as situações passadas pelos dois personagens prendiam a atenção do espectador do início ao fim. James passava por uma situação extremamente traumática, ao ser prisioneiro dos jihadistas do Estado Islâmico.

Vikander, em todo o seu talento, fez a gente sofrer junto com ela…

Torturas, prisões e a incerteza de ser ou não executado a qualquer momento mergulhavam o espectador numa torrente de angústia. Uma leve tentativa de relativização do elemento cultural ocidental e muçulmano foi brevemente realizada, mas os efeitos dos últimos atentados na Europa fez com que o estereótipo do muçulmano como fanático terrorista acabasse prevalecendo, embora tivéssemos a ótima presença de Alexander Siddig, fazendo, também pudera, um médico, o Doutor Shadid (trekkers entenderão).

Alexander Siddig, em seus momentos, arrebentou (Aêêê, Doutor Bashir!!!!)

Sua interpretação, contida e, igualmente, espontânea, dava legitimidade à sua luta, mesmo nos momentos mais radicais e nos enchia de empatia mesmo quando o personagem reconhecia que não concordava com tudo na sua luta contra o Ocidente e que já se sentia um condenado à morte. Já McAvoy convence na barbarização de seu personagem que, entretanto, não desistia de sair daquela situação de refém. Seus diálogos com o jihadista que insistia em convertê-lo foram primorosos. Vikander, por sua vez, convenceu muito com o sofrimento de sua personagem pela ausência do seu amado, o que chegou a comprometê-la profissionalmente, mas com a moça dando a volta por cima e conseguindo empreender a sua missão arriscada, apesar da dor reprimida. Mais uma atuação muito boa dessa atriz que se impõe por seu talento.

Wim Wenders dirige James McAvoy…

Assim, “Submersão” é mais um bom filme de Wim Wenders que conta com ótimos atores de um porte de James McAvoy, Alicia Wikander e Alexander Siddig. Uma história de romance, com muitos devaneios existenciais, mas que amarra muito bem duas histórias de vida que se conheceram muito rapidamente e de forma efêmera. Cada personagem estava afundado em sua própria submersão e era isso que os ligava e cimentava as suas relações. Um interessante filme que vale a pena uma conferida.