Batata Movies – A Livraria. O Inferno São Os Outros.

Cartaz do Filme

Uma co-produção Espanha/Reino Unido/Alemanha passou em nossas telonas. “A Livraria” é um filme sobre sonhos e destruições. Um filme que deixa evidente aquela máxima de Sartre de que “O Inferno são os outros”.

Florence, uma viúva superfofa que quer abrir uma livraria…

Do que se trata a nossa história? Estamos numa pequena cidade do interior da Inglaterra, no ano de 1959. Florence Green (interpretada pela fofíssima Emily Mortimer) é uma jovem viúva que tem, dentre suas virtudes, o hábito pela leitura. Ela compra um antigo imóvel da cidade e pretende transformá-lo numa livraria, mesmo que a população local não tenha o mesmo gosto que ela tem pelos livros. Só que tal empreendimento não será fácil, pois Violet Gamart (interpretada por Patricia Clarkson) é uma moradora da cidade com poder suficiente para fazer o que quiser por lá. E ela deseja usar a casa de Florence para transformá-la num centro de artes. Caberá, agora, à viúva, a enfrentar a mulher mais poderosa da cidade para manter de pé o seu sonho de continuar com sua livraria. Mas essa não será uma tarefa nada fácil.

A moça consegue realizar seu sonho…

Esse é um filme, acima de tudo, de atores. Emily Mortimer faz uma protagonista à altura, pois sua doçura e delicadeza, regada à muita determinação, provocam uma empatia imediata no espectador. O simpático tema do gosto pela leitura (tão vilipendiado por aí e até no próprio filme por alguns personagens) é um elemento adicional que muito ajuda na construção da personagem principal. A veterana Patricia Clarkson, mesmo aparecendo pouco, e funcionando mais como uma ameaça velada que tramava sub-repticiamente, tinha uma enorme presença como antagonista quando tinha as suas cenas.

Logo, logo, aparece uma inimiga…

A doçura de Mortimer, aliada a antipatia de Clarkson provocou a clássica mocinha totalmente boa vs vilã totalmente má, sendo algo um tanto simplório, mas não menos instigante nessa situação. Há um elemento extra no filme, a presença do personagem Edmund Brundish (interpretado pelo eficiente Bill Nighy), um homem que perde sua esposa e se refugia em sua casa, lendo compulsivamente.

Edmund, um leitor compulsivo…

Seu relacionamento com a livreira trará toda uma suavidade à película, responsável talvez pelos melhores momentos de todo o filme, já que Nighy foi de uma elegância atroz, e a química com Mortimer funcionou maravilhosamente bem. É bem verdade que a película não se restringiu a apenas estes poucos personagens.

Uma química sensacional entre Edmund e Florence…

Outras figuras interessantes surgiram ao longo do filme, mas todas elas tinham algo em comum, que era estarem atreladas ao conservadorismo e esquema de poder da cidade, seja de forma voluntária, seja de forma compulsória. Alguns personagens eram menos interessantes e outros mais, sendo um deles decisivo num ponto chave do filme. Mas pararei aqui com os spoilers para não estragar surpresas.

Sempre tem um &*¨%$#@ para implicar com a gente…

Assim, “A Livraria” pode até não ser um daqueles filmes que fará grande diferença em sua vida, mas vale a pena dar uma conferida, pois é uma película com boas atuações, que tem uma atmosfera um tanto prosaica, mas que pode esconder o pior do ser humano, e um filme, acima de tudo, com um quê muito fofo que estimula o amor pela leitura, algo um tanto raro de se ver hoje em dia.

Batata Movies – Baseado Em Fatos Reais. Uma Escritora Doidona e uma Fã Esquisitona.

Cartaz do Filme

Roman Polanski volta a atacar (no bom sentido, é claro) com o seu novo filme “Baseado em Fatos Reais”. Esta película é uma adaptação do romance de Delphine de Vigan e é Polanski em estado puro, com todas as neuroses e até escatologias que têm direito na obra do diretor. Tudo isso regado a um bom suspense.

Delphine, uma mulher esgotada…

Vemos aqui a história de uma escritora, Delphine Dayrieux (interpretada por Emmanuelle Seigner), altamente renomada e esgotada, com sua grande popularidade, submetida a uma dura rotina de sessões de autógrafos e palestras. Numa dessas sessões de autógrafos, Delphine conhece Elle (interpretada pela sempre estonteante Eva Green), que diz ser uma fã da escritora. Num primeiro momento, há apenas uma conversa cordial entre as duas, mas, com o tempo, a fã se torna uma presença mais constante na vida de Delphine, sempre comparecendo nos eventos em que a escritora está e, paulatinamente, aproximando a relação entre as duas. Até que Delphine e Elle se tornam amigas muito próximas. Vai ser o início de uma amizade onde a fã tem um comportamento, digamos, obsessivo com seu ídolo, o que vai trazer muita dor de cabeça a já perturbada escritora.

Mas, eis que surge Elle, em toda a sua sedutora exuberância…

Esse é um filme que incomoda o espectador, como todo bom filme de Polanski. A relação entre a escritora e sua fã é doentia, e com uma opressão da segunda sobre a primeira. Delphine fica mais afetada do que nunca, totalmente submissa nas mãos de Elle, que passa a controlar sua vida do jeito que quer. A escritora até tenta lutar contra a influência de sua fã, mas sua fragilidade emocional logo faz com que Delphine caia nas mãos da tresloucada Elle novamente. A coisa vai ficando cada vez mais barra pesada, entretanto vou acabar aqui com os spoilers, até porque haverá alguns elementos novos mais ao final.

No início, tudo foi amor e carinho…

Ficando na parte do filme apresentada aqui, esse tema da relação doentia e destrutiva entre duas pessoas não é algo propriamente inédito em cinema. A novidade reside na forma de como essa relação é tratada nos filmes. E aqui, a gente pode ver que a coisa foi feita muito bem, pois as atrizes conseguiram, em todo o seu talento, instigar a história. Seigner consegue ser muito convincente com seu semblante cansado e perturbado, com várias crises existenciais.

Mas, com o tempo, Elle mostra um comportamento, digamos, estranho…

A ideia de fragilidade que sua atuação passa também é muito contundente e ficamos estarrecidos e angustiados de como ela fica vulnerável ao seu misto de fã e algoz. Algo agônico, digno do que a gente viu com Rosemary (isso mesmo, leitor que pegou a referência, a Rosemary do bebê, do antológico filme do Polanski). Já Eva Green, como ela foi sensacional! Sua interpretação foi muito deliciosa! Eu sou até suspeito para dizer, pois aprecio demais o seu misto de grande beleza e elegância infinita. Mas aqui Green acrescentou uma psicopatia perturbadora! A mulher subiu nas tamancas! Ela começou como a fã aduladora, mas elegantemente respeitosa. Num segundo estágio, tornou-se uma confidente e uma amiga bem próxima, digna de dar conselhos pessoais. Mais tarde, um leve ciúme, que paulatinamente se torna tenso e pesado, culminando com explosões de violência perturbadoras. Podemos até dizer que Green “polanskou” geral.

Emmanuelle Seigner beija o marido Polanski em Cannes…

E me arrisco até a dizer que aqui a atuação de Green lembra (guardadas as suas devidas proporções, é óbvio!) Catherine Deneuve em “Repulsa ao Sexo”, outro filme de Polanski, onde a então jovem atriz conciliou enormemente, inocência, paranoia e venalidade, com direito a muita escatologia. Green, assim como Deneuve, conseguem ir além de seus status de musas e reúnem, com muita maestria, e em uma só personagem cada uma, características muito díspares. No caso de “Baseado em Fatos Reais”, só faltou a bateria sixty muito nervosa de “Repulsa ao Sexo”, que aumentava em muito a dramaticidade das ações tresloucadas de Deneuve. Enfim, foi uma atuação antológica de Green.

A beijoqueira Emmanuelle Seigner continua a atacar em Cannes. Agora, a vítima é Eva Green…

Dessa forma, “Baseado em Fatos Reais” é mais um bom filme de Polanski, com todas as características e intensidades do diretor. Um suspense perturbador, que ataca o psicológico dos personagens e do espectador, levando à paranoia e até à escatologia. Um filme do qual você não sai indiferente e que tem um bom plot twist ao seu final. Um programa imperdível não somente para os fãs de Polanski como para os fãs do bom cinema em si.

Batata News – Homenagem a Roberto Farias

E depois de perdermos Nelson Pereira dos Santos, nosso cinema sofre outro grande baque. Faleceu Roberto Farias, mais um importante nome de nossa cinematografia, aos 86 anos, depois de uma luta contra um câncer. Ele fez várias chanchadas da Atlântida, assim como o filme “Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-Rosa” e “O Fabuloso Fittipaldi”. Mas vai ser lembrado por “Pra Frente Brasil”, um filme que denunciava a tortura da ditadura militar e o seu conhecido “O Assalto ao Trem Pagador”, talvez o seu melhor filme. A Batata Espacial se solidariza com os que sofrem com mais essa grande perda e faz aqui uma pequena homenagem, exibindo “O Assalto ao Trem Pagador”. A Roberto Farias, nossa gratidão eterna pelo tanto que fez pelo cinema do Brasil. E a nós, restam os bons filmes e a saudade…

https://www.youtube.com/watch?v=zOtjf16kANA

Batata Movies (Revival) – O Estranho Caso de Angélica. Tradição, Modernidade e Ectoplasma

Cartaz do Filme

O filme “O Estranho Caso de Angélica”, do consagrado cineasta português Manoel de Oliveira foi um filme cercado de grande expectativa à época que foi exibido, lá para os idos de 2013, 2014. O filme conta a história de um fotógrafo judeu de nome Isaac, que é chamado às pressas para fotografar uma jovem chamada Angélica que morreu precocemente e jaz sorridente em seu leito de morte. A partir daí, a vida do pobre fotógrafo se transforma radicalmente, pois ao tirar fotos da menina morta, ela “acorda” e dá sorrisos a ele. Seu susto inicial vai sendo substituído por um fascínio que leva a uma paixão, chegando às raias da obsessão doentia e do desespero, pois o fotógrafo Isaac somente pode confortar sua paixão nas grades fechadas do portão do cemitério onde Angélica está enterrada.

Isaac, um rapaz atormentado

Durante o dia, Isaac anda como um zumbi sem rumo, à procura de sua amante morta, o que desperta fofocas entre as pessoas do povoado onde ele está. Devemos nos lembrar que ele é um judeu se comportando de forma estranha num povoado português onde todos são católicos praticantes, gancho que Oliveira usa para falar do estranhamento e preconceito para com o outro. Durante a noite, Isaac já está mais próximo de sua amada, pois seu pequeno quartinho de pensão está repleto de fotos de Angélica que se movimentam. E a própria figura fantasmagórica de Angélica surge na sacada buscando a alma de Isaac para dar umas voltinhas aéreas por aí. É literalmente um amor à primeira vista e uma paixão muito bem correspondida do outro mundo! Com esse êxtase ectoplásmico, a vida material de Isaac fica cada vez mais sem sentido e ele caminha a passos largos para a morte e para os braços de sua amada Angélica.

Isaac e Angélica dando uns voos por aí…

Mas, além de uma inusitada história de amor, Oliveira também aborda outros curiosos temas. O motivo pelo qual Isaac está na pequena aldeia é para retratar o trabalho artesanal dos agricultores em vinhas, algo que está em vias de extinção em virtude da modernização e mecanização da agricultura. Aliás, o embate tradição X modernidade é um tema desenvolvido com muita maestria no filme. Isaac, um jovem rapaz, se interessa em registrar elementos culturais antigos, como o trabalho nas vinhas de agricultores que usam enxadas e cantarolam para manter o ritmo de trabalho. Há um trabalhador que só canta as canções, que são retrucadas por um uníssono “Pumba!” ecoado pelos trabalhadores que golpeiam o chão com as enxadas, algo visto com desdém pelos próprios moradores da aldeia que não se preocupam com suas tradições, como faz a dona da pensão onde Isaac está hospedado e que estranha o interesse do jovem fotógrafo naqueles agricultores altamente rústicos. Elementos de tradição também podem ser vistos nos preconceitos já citados que os católicos nutrem contra nosso pobre e atormentado Isaac, que é judeu. Em contrapartida, há o núcleo de modernidade do filme, este composto por homens idosos que são cientistas, engenheiros, fazem pesquisa de ponta e têm altas discussões filosóficas sobre temas que vão da política à astrofísica. É curioso notar a presença de uma engenheira brasileira neste núcleo de personagens. Será que essa personagem está dentro daquela concepção de que, para ser moderno, deve-se aceitar incondicionalmente o estrangeiro? Outro dado curioso está no diálogo entre esses renomados cientistas sobre a situação econômica de Portugal, como se toda a modernidade presente nem sempre fosse benéfica de todo.

O grande diretor português Manoel de Oliveira

Ao analisarmos todos os elementos que permeiam esse filme, devemos aplaudir, e muito, esse diretor que é Manoel de Oliveira, pois mesmo do alto de seus 103 anos àquela época de realização do filme, ele continuava atual, reflexivo, crítico e, acima de tudo, muito criativo. Definitivamente, ele será lembrado sempre como um dos grandes diretores do cinema português.

Batata Movies – Zama. Um Homem De Seu Tempo.

Cartaz do Filme

Uma co-produção Argentina/Brasil/Espanha passou em nossas telonas. “Zama”, de Lucrecia Martel, é uma história fictícia sobre uma realidade bem antiga: a da América Latina em dias coloniais. Um filme que é permeado de uma certa fidedignidade histórica, embora ele incomode um pouco em alguns momentos.

Um elegante funcionário público…

Vemos aqui a trajetória de Don Diego de Zama (interpretado por Daniel Giménez Cacho), um oficial da Coroa Espanhola dotado de certo prestígio, mas lotado num rincão de fim de mundo, ali para os lados da Argentina e Uruguai. O homem busca uma transferência para um grande centro, mas esbarra em alguns obstáculos, como um filho ilegítimo com uma índia e o fato de ter, entre seus protegidos, um escritor de um livro considerado proibido. Desesperado, Zama busca uma atitude drástica: ele sai em caça a um bandido local, Vicuña Porto (interpretado pelo nosso Matheus Nachtergaele), com o objetivo de buscar um prestígio derradeiro. Mas nem sempre o que se planeja é o que acontece por fim.

Um cruel bandido…

Esse filme tem dois elementos que chamam a atenção. Em primeiro lugar, é uma película que aponta para o cotidiano colonial, onde costumes europeus se mesclam com a cultura local. Vemos toda a coisa de se ser um funcionário público colonial dentro de uma retórica de Antigo Regime, onde havia uma concentração excessiva de poder na figura da autoridade pública. A prática do clientelismo (troca de favores) também era muito presente, onde Zama, na esperança de obter o tão almejado cargo num grande centro, fazia tudo o que o governador exigia. Mas Zama também estava inserido numa realidade colonial local que o tornava vulnerável, sobretudo no já citado relacionamento com uma índia, cujo filho ilegítimo era um estorvo para ele. Sua atitude voyeur de espreitar mulheres nuas no banho de rio era também uma espécie de fraqueza que a realidade local o submetia, embora sua reação fosse exemplar numa retórica de Antigo Regime. Ao fugir do flagrante de sua espreita ao banho feminino, Zama é perseguido por uma das mulheres nuas que quer lhe tirar satisfações. Nesse momento, o funcionário público afirma a sua autoridade e dá um tapa no rosto da mulher, lembrando muito bem quem é que manda ali.

Um encontro cheio de surpresas…

O segundo elemento da película que salta aos olhos é a impressão de alguns estereótipos que temos sobre aqueles tempos pretéritos. Se o filme traz uma certa fidedignidade histórica ao analisar a figura de Zama como um funcionário público inserido na lógica de Antigo Regime de seu tempo, o filme também parece carregar nas tintas com relação à rótulos. No nosso senso comum, os dias coloniais parecem ser “piores” que os nossos. E o filme reza um pouco por essa cartilha. Tudo parece decadente, miserável. Há, por exemplo, um prostíbulo com negros e animais usados para práticas sexuais, como se tudo fosse altamente normal e corriqueiro. Confesso que nunca tive em mãos um estudo histórico sobre tal tema, mas o filme (que é baseado numa história de ficção, devemos nos lembrar) parece forçar excessivamente essa visão decadente e depravada. Outra coisa que incomoda um pouco é a forte decadência de Zama naquela sociedade, cuja mobilidade social era algo mais raro de ocorrer do que hoje. Sua queda foi muito acentuada e violenta, sendo esse mais um caso onde parece se carregar nas tintas.

Belíssima fotografia…

E os atores? Daniel Giménez Cacho deu muita elegância ao personagem de Zama. Se o filme pode ter exagerado em alguns momentos, a atuação de Cacho foi bem contida e calculada, o que deu elegância e, por que não usando um trocadilho, “nobreza” ao personagem. Já Nachtergaele arrasou como sempre. Aparecendo mais na parte final da película, a caçada a Vicuña Porto, parte essa a mais interessante, nosso ator conseguiu transpirar uma crueldade atroz, confirmando a tese de que, dentro de uma visão maniqueísta, se havia algum “vilão” naquela região, esses eram os portugueses e brasileiros, que queriam de alguma forma se intrometer no fluxo de prata peruana para a Europa. Sim, meus amigos, os argentinos estão cobertos de razão à nosso respeito nesse ponto.

Lucrecia Martel na direção…

Assim, “Zama” é um filme que consegue ser contraditório. Se por um lado traz uma certa fidedignidade histórica, por outro parece também carregar nas tintas sobre o passado colonial latino-americano. Somente essa curiosidade já merece a atenção do espectador. No mais, temos a oportunidade de presenciarmos dois talentos na atuação: Daniel Giménez Cacho e Matheus Nachtergaele. Vale a pena dar uma conferida.

Batata Movies – 1945. Mea Culpa.

Cartaz do Filme

Um curioso filme passa em nossas telonas. “1945” é uma produção húngara que aborda indiretamente a já batida temática da Segunda Guerra Mundial (confesso que já perdi a conta da quantidade de filmes que trabalham esse assunto). E por que indiretamente? Porque vemos aqui as consequências do conflito no imediato pós-guerra, onde algumas tensões ainda davam as cartas.

Do que trata a história do filme? Estamos no já citado ano de 1945, numa pequena vila do interior da Hungria. A vida de seus habitantes transcorre normalmente. A impressão que se tem é a de que os horrores da guerra passaram bem distantes de lá. Até que, um dia, dois judeus chegam ao povoado. Importunados rapidamente por soldados soviéticos ainda na estação de trem, os judeus começam a andar pela região. Essa simples presença causa alvoroço em toda a população local, pois os habitantes aproveitaram a frágil situação dos judeus na guerra para lhes usurparem todos os seus bens. Agora, a presença desses “forasteiros” parece uma espécie de acerto de contas. O que vemos daí em diante é a população de uma vilazinha inteira batendo as cabeças numa espécie de mea culpa para alguns e um show de mesquinharia para outros.

Dois judeus voltando ao lar…

A primeira coisa que grita aos olhos nesse filme é a questão do colaboracionismo, onde alguns países europeus, com sua carga de antissemitismo, colaboraram com os ocupantes nazistas na perseguição aos judeus. Esse é um tema muito controverso e uma coleção de feridas abertas que se tornam um assunto tabu na Europa provavelmente até hoje, o que já torna essa película muito digna e corajosa de tocar uma temática tão delicada.

Um líder local ganancioso…

O filme também chama a atenção para outro ponto: o questionamento à noção de psicologia de massas, onde todo um grupo de pessoas, seja de um povoado, seja de uma cidade, ou até de um país, agiria de uma jeito praticamente uniforme sob determinada situação. Essa teoria foi usada por alguns pensadores do passado (no caso do cinema, o primeiro nome que me vem à mente é o de Siegfried Kracauer, da Escola de Frankfurt, com o seu conhecido livro “De Caligari a Hitler, Uma História Psicológica do Cinema Alemão”). Mas hoje em dia, a psicologia de massas parece um termo um tanto ultrapassado. Isso porque a mente humana é um fenômeno extremamente complexo e parece não ser muito responsável englobar algo tão dinâmico num comportamento tão padronizado. O próprio caso da vila mostra uma diversidade de reações sob a igual pressão da presença dos judeus. Havia os moradores mesquinhos, que queriam garantir a posse dos seus bens a todo custo; havia o caso do morador que se atormentava com o sentimento de culpa e buscava refúgio na bebida; havia o caso do jovem que simplesmente queria se desvencilhar daquilo tudo e deixar a vila, em busca de um recomeço num centro mais cosmopolita, seja na própria Hungria ou até em outro país. Ou seja, diferentes reações para uma mesma pressão psicológica, fazendo cair por terra a retórica da psicologia de massas.

Uma cidade desconfiada…

O filme, apesar de suscitar boas discussões, tem, entretanto, um problema. Não pareceu haver uma boa apresentação dos personagens. Era necessária uma atenção do espectador acima do usual para compreender as funções de cada uma das pessoas que apareciam na película. Talvez isso tenha acontecido em virtude do grande distanciamento cultural entre nós e os húngaros, tornando o filme de mais difícil compreensão. Ou, simplesmente, não era a intenção do diretor trabalhar mais profundamente os personagens, embora ele tivesse o cuidado de realçar suas pequenas matizes.

Todos de olho…

Assim, se “1945” nem sempre seja um filme de fácil digestão, ele ainda é um programa recomendável, pois sempre podemos ver como quem “tem culpa no cartório” reage aos infernos que surgem dentro de suas próprias cabeças. Isso faz o filme se transformar num pequeno estudo da condição humana, tornando a película num programa obrigatório, o que vale a pena o preço do ingresso.

Batata News – Homenagem a Nelson Pereira dos Santos

Nós, brasileiros, perdemos este fim de semana um de nossos grandes cineastas. Nelson Pereira dos Santos, um dos fundadores do Cinema Novo, levou o Brasil que ninguém conhecia ao exterior. Um Brasil assolado pela injustiça e pela desigualdade social. Um Brasil contado pelos grandes clássicos de nossa literatura. Toda vez que se fala de Nelson Pereira dos Santos, a primeira coisa que me vem à cabeça é a cachorrinha Baleia, de “Vidas Secas”, que precisa ser sacrificada por seus donos, uma família de retirantes que mal tem o que comer para si próprios. A morte de Baleia dói no fundo da alma até hoje. O filme impressionou tanto que os brasileiros que o realizaram foram acusados no estrangeiro de maus tratos ao bichinho, ao que eles precisaram levar a cachorrinha no ano seguinte para provar que ela estava viva e bem de saúde. É por isso mesmo que não há melhor forma de homenagear Nelson Pereira dos Santos recordando de Vidas Secas. Conheçam e emocionem-se não somente com Baleia, mas também com os problemas sociais profundos de nosso povo. E a Nelson Pereira dos Santos, nossa gratidão eterna…

Batata Movies – Uma Temporada Na França. Humanos De Segunda Categoria.

Cartaz do Filme

Mais um filme que é um convite à reflexão em nossas telonas. “Uma Temporada na França” é, acima de tudo, um filme de denúncia. Um filme onde o Cinema grita com todos os seus pulmões contra as injustiças que vemos por aí. Um filme que nos envergonha como humanos.

Um casal sofrendo as perseguições contra os imigrantes…

Vemos aqui a trajetória de uma família originária da África Central, que foge de uma guerra em seu país. No meio da fuga, a mãe é assassinada. O pai e o casal de filhos consegue chegar a Paris e enfrenta todas as dificuldades de estrangeiros em solo europeu que pedem asilo político. O pai, Abbas Mahadjir (interpretado por Eriq Ebouaney), era professor em seu país natal. Agora, em Paris, ocupa o cargo de feirante. Ele vai precisar criar os dois filhos com muito jogo de cintura, pois o passado burguês da família lhe impõe certas exigências cobradas pelos filhos, como uma casa própria com um quarto para cada um. Mas tudo é muito difícil em solo estrangeiro. Abbas tem uma namorada, Carole Blaszak (interpretada por Sandrine Bonnaire) que o ajuda nas dificuldades do dia-a-dia, e também imigrante. Um terceiro amigo, o conterrâneo Etienne (interpretado por Bibi Tanga) fecha o círculo de pessoas próximas à família. Vivendo num país hostil em sua maioria das vezes, esses personagens precisarão matar um leão por dia para sobreviverem, pois a terra natal já se encontra arrasada e retornar não é uma opção.

Amigos compatriotas compartilhando a mesma dor…

Esse é um filme que transpira melancolia em grande parte de sua execução. A película denuncia o pouco caso das autoridades francesas com os imigrantes que querem o acolhimento do país europeu mas lhe têm as portas fechadas na maioria das vezes. O que mais dói nesse filme é um misto de indiferença e de repúdio por parte dos franceses que conseguem negar um visto de permanência a uma família que foge de uma situação de guerra e que já perdeu sua mãe. O ódio contra os imigrantes é um tempero explosivo a mais nessa química perigosa. Fica bem claro que africanos negros e muçulmanos são os que mais sofrem preconceito nessa relação entre os franceses e os imigrantes, já que a imigrante branca do leste europeu conseguiu regularizar sua situação. Tal filme tem uma importância marcante, pois se a França sofreu uma série de ataques terroristas nos últimos anos, fica a questão: até que ponto esse tratamento ríspido contra os imigrantes não produz inimigos contra a própria França? Será que uma politica mais flexível para com os imigrantes não deteria um pouco tamanha escalada de ódio? Todos nós sabemos que cada país tem seus problemas, mas não podemos nos esquecer de que todo esse contexto caótico vem da exploração imperialista sobre a África e a Ásia feita no século XIXm justamente pelas potências europeias estrangeiras. Tal cataclisma não ficaria sem consequências.

Um pai, no desafio de dar um conforto burguês aos filhos…

No mais, a gente precisa bater (e muito) palmas para Mahamat-Saleh Haroun, o diretor e roteirista desse filme que dá voz a um segmento excluído e marginalizado no continente europeu, que é o imigrante que foge de sua terra natal, de misérias e de guerras provocadas direta ou indiretamente pelas potências imperialistas estrangeiras e seu processo colonizatório altamente predatório.

O grande diretor Mahamat-Saleh Haroun

E palmas também a um elenco que mostrou que tal situação escabrosa pode acontecer com qualquer um: eu, você, seu pai, mãe, vizinho, amigo… ou seja, qualquer pessoa que tem sua vida estável numa zona de conforto que subitamente lhe  é arrancada. Um filme que choca e alerta, um filme que cumpre sua função social de denúncia. Um programa imperdível.