Mais um bom documentário brasileiro. “Cora Coralina, Todas as Vidas”, busca descrever com riqueza de detalhes a trajetória dessa grande figura brasileira e, sobretudo, goiana. Uma mulher nascida no fim do século retrasado, que teve uma vida relativamente simples, mas não menos emocionante. Uma mulher de letras, que se informava lendo tudo o que podia, algo que a transformou numa escritora simplesmente magistral. Classificada como poetisa, seus escritos eram altamente descritivos, o que fazem os especialistas da área tomá-la como uma transição entre a prosa e a poesia, entre o épico e o lírico.
O diretor Renato Barbieri conseguiu conduzir o filme de uma forma maravilhosa, onde ele, assim como a escritora, mescla gêneros. Se a gente tem a parte documentário do filme, com entrevistas de especialistas e até de filhos da poetisa, por outro lado, temos uma cara de filme de enredo, pois a personagem Cora é interpretada por várias atrizes como Tereza Seiblitz e Walderez de Barros, sendo essa parte tomada por grandes momentos de sensibilidade e beleza. O documentário e o filme de ficção dão as mãos na película para justamente traçar com muita eficiência a trajetória de Cora. Mas o documentário não fica apenas nesses dois pólos. Podemos testemunhar, também, figuras como Camila Màrdila, Beth Goulart e Zezé Motta declamando os textos da poetisa, com certeza a grande atração do filme, pois suas palavras conseguem descrever com precisão altamente racional tudo o que ela via e vivia, mas essa precisão é ornamentada por uma beleza toda singular do texto.
A descrição não é fria, ela sempre vem seguida de uma reflexão que toca emocionalmente a alma. Ainda, o filme traz como uma espécie de bônus imagens de arquivo com depoimentos da própria Cora Coralina sobre vários assuntos, indo desde coisas de sua vida pessoal (uma artista também em fazer doces de frutas que chegaram até ao Papa, no Vaticano), até reflexões mais básicas sobre a vida, como a importância de se fazer tudo (até arear uma panela) da melhor forma possível e com muito amor. Todos esses elementos interagem entre si e dão uma química poderosa a todo o filme, que se torna uma espécie de documento e testemunho dessa importante escritora brasileira muito celebrada, principalmente depois que Carlos Drummond de Andrade a descobre e escreve um artigo sobre ela em sua coluna de jornal e que não pode cair no esquecimento.
Assim, “Cora Coralina, Todas as Vidas” é um daqueles documentários fundamentais, sendo uma preciosa joia que deve ser preservada e guardada, pois fala da vida de uma pessoa com depoimentos e belas encenações. Um documentário que fala de uma figura ímpar da literatura, considerada por alguns a maior personalidade da História do Estado de Goiás. Um filme de cinema com “F” maiúsculo, que consegue transpirar afeto e emoção. Um programa imperdível.
O cineasta belga radicado no Brasil Jean Claude Bernardet, conhecido também por ser um estudioso do cinema brasileiro, com livros de sua autoria publicados sobre o assunto, chega em mais um filme para nós. “Antes do Fim”, dirigido por Cristiano Burlan é, acima de tudo, um filme que pensa a vida, ou a morte. Do alto de seus 81 anos, chega a hora em que o ser humano precisa fazer aquela pausa, aquele “fechado para balanço”, onde se olha para trás e para frente, buscando colocar as ideias em ordem e ver quais rumos o pouco tempo que resta deve tomar.
E aí, nosso intrépido protagonista (interpretado por Bernardet) toma a decisão com muita serenidade: é melhor pôr logo um fim a tudo, saindo de cena bem, antes que as mazelas provocadas pelas doenças o coloquem numa existência lastimável pouco antes do inevitável. Para colocar seu plano em prática, ele contará com a ajuda de sua companheira de praticamente toda a vida (interpretada por Helena Ignez). Entretanto, a longevidade pode ser mesmo uma prisão? Não seria melhor aproveitar intensamente o tempo que resta para curtir toda a vida em sua plenitude? Essas são as questões que o filme coloca, da forma mais velada possível.
E por que isso ocorre de forma tão velada? Porque a película de Burlan é arte pura, onde o narrativo tradicional ocupa um pequeno lugar em detrimento ao estético. Para começar, o filme é rodado em preto e branco, algo que já lhe ajuda a render uma linda fotografia. Em segundo lugar, há um quê bem performático, com sequências onde movimentos corporais altamente sensuais e sinuosos enchem a tela com toda uma delicadeza. O que mais impressiona é que a beleza dessa dança não fica em nada abalada pelos corpos já idosos dos atores. Em nossa mente preconceituosa com “os mais velhos”, um número de dança, a princípio, não pareceria “bonito” se feito por corpos mais idosos. A plasticidade do novo seria mais adequada à essa estética da dança. Bernardet e Ignez provam, de forma contundente, que tudo isso é uma tremenda falácia e conseguem trazer toda uma beleza às sequências onde o corpo se expressa.
O filme também tem um toque de humor, ao brincar com a própria morte, na sequência onde o casal vai comprar um caixão na funerária para o suicídio. Aqui há uma homenagem ao cinema mudo e às comédias pastelão, com uma simulação de uma briga entre o personagem de Bernardet com o dono da funerária, num verdadeiro tom de deboche com o inevitável.
Esses dois pequenos exemplos são só uma amostra de como o filme, com sua narrativa fragmentada e com a arte bem coesa e a mil, consegue trabalhar a questão da vida, da morte e da passagem do tempo. Definitivamente, um tema para se refletir, já que, cedo ou tarde, todos nós estaremos em tal encruzilhada. Tal filme é um bom exemplo e referência para lançarmos mão quando chegarmos ao ponto de nossas vidas em que faremos tal avaliação. Mais uma vez, o cinema mostra que o melhor filme é aquele que te faz pensar. Apesar de se algo pouco convencional, o que pode causar um certo estranhamento quando se começa a ver, “Antes do Fim” merece uma conferida, não somente por tratar de temas tão universais quanto a vida e a morte quanto pela simpatia do casal que dá uma careta para a velhice e ainda brinca com a vida.
Pois é. Tivemos mais uma cerimônia do Oscar. E o que podemos dizer do que vimos esse ano? Houve uma espécie de repetição de algumas atitudes dos anos passados. Ainda no clima de dar uma resposta às severas críticas que a Academia sofreu por não ter colocado negros entre os indicados por dois anos consecutivos, a Cerimônia abraçou mais uma vez a bandeira da diversidade. No ano passado, a indicação e premiação a negros já havia acontecido. Agora, em 2018, as indicações retornaram, com as premiações a negros numa menor intensidade, mas ficou bem claro que todos na Academia primam por abraçar o respeito às diferenças. Essa, talvez, também tenha sido uma espécie de resposta às estripulias altamente desrespeitosas e etnocêntricas do governo Trump, que não se nega a chutar o balde e o bom senso quando abre a boca (ou o twitter). Outra tendência, essa sim, uma espécie de constante nos últimos anos, foi a de distribuir a premiação, sem um filme que abiscoite muitas estatuetas.
Assim, “A Forma da Água”, a recordista de indicações sendo treze no total, ganhou quatro Oscars (filme, direção, design de produção e trilha sonora). “Dunkirk” foi uma grata surpresa, apesar de ter ganho mais prêmios técnicos, sendo três estatuetas (edição de som, mixagem de som e montagem). Houve, também, os prêmios óbvios, ou seja, aqueles que a gente já sabia quem ganharia. Foi o caso de Melhor Ator para Gary Oldman em “O Destino de Uma Nação”, Sam Rockwell para ator coadjuvante e Frances McDormand para atriz em “Três Anúncios Para Um Crime”, e Allison Janney para atriz coadjuvante “Eu, Tonya”. Outra grata surpresa foram as duas estatuetas para “Blade Runner 2049” (Fotografia e Efeitos Visuais). Já nos roteiros, tivemos um prêmio merecido para Jordan Peele pelo inusitado “Corra!” de roteiro original (e bota original nisso!) e James Ivory por “Me Chame Pelo Seu Nome” de roteiro adaptado.
Melhor Figurino para “Trama Fantasma” era algo óbvio, embora eu achasse que esse filme merecesse também a trilha sonora. Nas animações, nada de novo no horizonte. A Disney continua ganhando com “Viva” (mais uma vez merecido, diga-se de passagem), além de ganhar o Oscar de Melhor Canção. Somente lamentei duas coisas na premiação: eles poderiam variar e dar a estatueta de animação para “O Touro Ferdinando”, pois esse foi um excelente trabalho de nosso Carlos Saldanha. E numa categoria que eu gosto muito de acompanhar, a de Melhor Filme Estrangeiro, queria muito que o prêmio fosse para “O Insulto”, mas ganhou “Uma Mulher Fantástica”, pois esse filme rezava pela cartilha da diversidade, diga-se de passagem, também uma boa película que veio aqui da América Latina, já que se trata de uma produção chilena.
Pois é. Distribuídos os prêmios, resta a quem ainda não viu todas as produções dar uma conferida, além da gente torcer bastante para que cheguem mais filmes indicados por aqui, justamente para podermos apreciar nas telonas e não nas telinhas do PC ou do celular…
Segue, abaixo, a lista dos premiados, copiada da postagem da minha poderosa amiga, a Princesa Larissa Rezende Leia… Os vencedores estão em negrito…
MELHOR FILME
– Me Chame Pelo Seu Nome
– O Destino de Uma Nação
– Dunkirk
– Corra!
– Lady Bird – É hora de voar
– Trama Fantasma
– The Post – A Guerra Secreta – A Forma da Água
– Três Anúncios Para Um Crime
MELHOR DIRETOR
– Christopher Nolan (Dunkirk)
– Jordan Peele (Corra!)
– Greta Gerwig (Lady Bird: É hora de voar)
– Paul Thomas Anderson (Trama Fantasma) – Guillermo del Toro (A Forma da Água)
MELHOR ATOR
– Timothée Chalamet (Me Chame Pelo Seu Nome)
– Daniel Day-Lewis (Trama Fantasma)
– Daniel Kaluuya (Corra!) – Gary Oldman (O Destino de Uma Nação)
– Denzel Washington (Roman J. Israel, Esq.)
MELHOR ATRIZ
– Sally Hawkins (A Forma da Água) – Frances McDormand (Três Anúncios Para Um Crime)
– Margot Robbie (Eu, Tonya)
– Saoirse Ronan (Lady Bird: É hora de voar)
– Meryl Streep (The Post – A Guerra Secreta)
MELHOR ATOR COADJUVANTE
– Willem Dafoe (Projeto Flórida)
– Woody Harrelson (Três Anúncios Para Um Crime)
– Richard Jenkins (A Forma da Água)
– Christopher Plummer (Todo o Dinheiro do Mundo) – Sam Rockwell (Três Anúncios Para Um Crime)
MELHOR ATRIZ COADJUVANTE
– Mary J. Blige (Mudbound) – Allison Janney (Eu, Tonya)
– Lesley Manville (Trama Fantasma)
– Laurie Metcalf (Lady Bird: É hora de voar)
– Octavia Spencer (A Forma da Água)
MELHOR ROTEIRO ADAPTADO
– Me Chame Pelo Seu Nome (James Ivory)
– Artista do Desastre (Scott Neustadter e Michael H. Weber)
– Logan (Scott Frank, James Mangold e Michael Green)
– A Grande Jogada (Aaron Sorkin)
– Mudbound (Virgil Williams and Dee Rees)
MELHOR ROTEIRO ORIGINAL
– Doentes de Amor (Emily V. Gordon e Kumail Nanjiani) – Corra! (Jordan Peele)
– Lady Bird: É hora de voar (Greta Gerwig)
– A Forma da Água (Guillermo del Toro)
– Três Anúncios Para Um Crime (Martin McDonagh)
MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃO
– A Bela e a Fera
– Blade Runner 2049
– O Destino de Uma Nação
– Dunkirk – A Forma da Água
MELHOR FOTOGRAFIA
– Blade Runner 2049 (Roger Deakins)
– O Destino de Uma Nação (Bruno Delbonnel)
– Dunkirk (Hoyte van Hoytema)
– Mudbound (Rachel Morrison)
– A Forma da Água (Dan Laustsen)
MELHOR FIGURINO
– A Bela e a Fera
– O Destino de Uma Nação – Trama Fantasma
– A Forma da Água
– Victória e Abdul
MELHOR EDIÇÃO DE SOM
– Em Ritmo de Fuga
– Blade Runner 2049 – Dunkirk
– A Forma da Água
– Star Wars: Os Últimos Jedi
MELHOR MIXAGEM DE SOM
– Em ritmo de fuga
– Blade Runner 2049 – Dunkirk
– A Forma da Água
– Star Wars: Os Últimos Jedi
MEHOR CURTA DE ANIMAÇÃO
– Dear Basketball
– Garden Park
– Lou
– Negative Space
– Revolting Rhymes
MELHOR CURTA-METRAGEM
– Dekalb Elementary
– The Eleven o’Clock
– My Nephew Emmett – The Silent Child
– Waty Wote/All of Us
MELHOR TRILHA SONORA
– Dunkirk
– Trama Fantasma – A Forma da Água
– Star Wars: Os Últimos Jedi
– Três Anúncios Para Um Crime
MELHORES EFEITOS VISUAIS
– Blade Runner 2049
– Guardiões da Galáxia Vol. 2
– Kong: A Ilha da Caveira
– Star Wars: Os Últimos Jedi
– Planeta dos Macacos: A Guerra
MELHOR EDIÇÃO
– Em Ritmo de Fuga – Dunkirk
– Eu, Tonya
– A Forma da Água
– Três Anúncios Para Um Crime
MELHOR MAQUIAGEM E CABELO
– O Destino de Uma Nação
– Victoria e Abdul
– Extraordinário
MELHOR FILME EM LÍNGUA ESTRANGEIRA
– Uma Mulher Fantástica (Chile)
– O Insulto (Líbano)
– Sem amor (Rússia)
– Corpo e Alma (Hungria)
– The Square: A arte da discórdia (Suécia)
MELHOR DOCUMENTÁRIO EM CURTA-METRAGEM
– Edith and Eddie – Heaven Is A Traffic Jam On The 405
– Heroin(e)
– Knife Skills
– Traffic Stop
MELHOR DOCUMENTÁRIO
– Abacus: Pequeno o Bastante Para Condenar
– Visages Villages – Ícaro
– Últimos Homens em Aleppo
– Strong Island
MELHOR CANÇÃO
– Mighty River (Mudbound)
– Mystery of Love (Me Chame Pelo Seu Nome) – Remember Me (Viva – A Vida é Uma Festa)
– Stand Up For Something (Marshall)
– This is Me (O Rei do Show)
MELHOR ANIMAÇÃO
– O Poderoso Chefinho
– The Breadwinner – Viva: A Vida é Uma Festa
– O Touro Ferdinando
– Com Amor, Van Gogh
Mais uma curiosa produção passou em nossas telonas. “Lucky” nos lembra muito daqueles casos de pessoas que têm uma vida longeva, apesar de alguns hábitos pouco salutares. Mas, será que problemas existenciais atingem esse tipo de pessoas? Pelo que o filme mostra, claro que sim.
O Lucky em questão (interpretado por Harry Dean Stanton) é um velhinho, veterano da Segunda Guerra Mundial, que vive numa cidadezinha de interior. Ele tem hábitos muito metódicos. Ao se levantar da cama, faz exercícios, se arruma, para numa lanchonete, depois vai para uma loja comprar cigarros, assiste a programas de TV e, depois, vai a um bar à noite. Ele tem a mania de fazer palavras cruzadas e de descobrir com precisão o significado de algumas palavras. Um belo dia, Lucky tem um mal estar e cai ao chão, o que vai forçar ele a ir ao médico. Qual não é a surpresa quando o médico diz a ele que tem uma saúde de ferro e que esse mal estar é apenas o sinal de uma velhice, que prenuncia uma morte inevitável? A partir daí, nosso Lucky fica bem incomodado com a situação, com sua cabeça fervilhando de problemas existenciais. Afinal de contas, ele percebe que já está numa idade muito avançada e que sua morte é questão de tempo. Mas, como encarar essa situação escabrosa com naturalidade, já que ela acontece para todo mundo e é inevitável?
O filme torna-se uma espécie de jornada pelo conhecimento de si mesmo, onde as descobertas se darão nas pequenas experiências do cotidiano, rotineiras ou não. O personagem protagonista vai passando por situações que ajudam a ele enxergar o verdadeiro sentido da vida aos poucos e ele acaba concluindo que, diante do inevitável, o melhor mesmo é curtir enquanto se está por aqui e sorrir. Embora a coisa tenha ficado meio artificial, pois Lucky era muito sisudo e mal humorado na maioria das vezes, o filme acaba entregando uma mensagem otimista. Agora, para aproveitar bem a película, é imperativo que o espectador entre no ritmo dela, demasiadamente lento. Por isso, mesmo que os grandes detalhes aqui estão nas pequenas e singelas coisas que podem tornar a vida mais divertida e com sentido.
Nem é preciso dizer que esse é um filme de um ator só, com os demais sendo meros coadjuvantes. Harry Dean Stanton consegue trabalhar muito bem o seu personagem, um velho rabugento e mal humorado que passa pelo problema existencial. A gente conseguia sentir quando o cara estava deprimido, mesmo estando constantemente de mau humor. Foi bem legal ver a sua atuação e também lamentar a sua morte, ocorrida em 15 de setembro último, aos 91 anos. É a vida imitando a arte. Outra curiosidade aqui é a participação de David Lynch como ator no filme, um simpático idoso que está entristecido, pois perdeu seu… cágado (!).
Assim, “Lucky” pode até ter um ritmo lento, exigindo uma certa paciência do espectador, mas é não deixa de ser uma película interessante, pois tem um personagem protagonista bem construído, com um problema existencial e buscando um sentido para o pouco de vida que lhe resta. Mais um filme com uma boa questão para se refletir.
Confesso a vocês que tenho um pouco de dificuldades com o cinema coreano. A maioria dos filmes que eu vi do cinema desse país eu achei um tanto enfadonho e com ritmo muito lento, salva uma ou outra exceção. Mas “O Motorista de Táxi” me impressionou muito e posso dizer que esse é o melhor filme da Coreia do Sul que eu vi até hoje. Mais um filme baseado numa história real. Mais um filme que nos faz pensar sobre as coisas (ruins) do mundo.
A história é ambientada na Coreia do Sul de 1980, que estava em plena ditadura militar e era assolada por muitos protestos de estudantes contra arbitrariedades como o toque de recolher. No meio de toda essa confusão está Kim (interpretado por Kang-ho Song), um taxista um tanto egoísta e mesquinho que se preocupava mais com o seu carro (e ganha pão) do que com qualquer outra coisa. Ele criticava os protestos de estudantes contra o governo, pois achava que estudante deve estudar e não protestar. Kim sempre estava sem grana e devia a Deus e ao mundo. Mas, num belo dia, enquanto almoçava com um amigo (e senhorio) que lhe pagava o almoço, ele escutou de um outro taxista que ele tinha conseguido uma corrida até a cidade de Gwangju para um estrangeiro. Esperto como ele só, Kim saiu do restaurante e se apresentou ao cliente, um jornalista alemão de nome Peter (interpretado por Thomas Kretschmann) como o taxista que faria a corrida. Mal sabia Kim que aquela corrida mudaria sua vida e a visão que tinha do governo de seu país.
Podemos dizer que o diretor Hun Jang e o roteirista Yu-na Eom foram muito espertos e inteligentes na concepção do filme. O início da película tem um tom de comédia, onde o taxista Kim dita o tom cômico. Sua aparência mal humorada e mesquinha provocava situações engraçadas com uma pitada de drama, principalmente quando sabemos de sua situação familiar. O tom de comédia continua firme e forte quando ele faz a corrida do jornalista estrangeiro e a barreira linguística leva a mais situações inusitadas e cômicas. Mas, ao se chegar à cidade de Gwangju, o filme muda totalmente de figura e ele se torna uma denúncia nua e crua das atrocidades que os militares cometiam contra a população civil, que não entendia o porquê daquela violência toda. É um momento que a película fica muito pesada e até traumática, e a forma como o gênero do filme muda da água para o vinho, de algo leve e divertido para algo extremamente funesto e revoltante só aumenta o impacto em cima do espectador. A coisa atinge ainda mais o espectador principalmente quando sabemos que o que é mostrado na película é uma história real. O desfecho do filme (que eu não direi aqui) é bem comovente, pois foi criado um forte elo entre o passageiro e seu taxista em virtude de tudo o que passaram juntos. Mas nem sempre a vida consegue repetir a magia da arte.
De qualquer forma, os atores estiveram muito bem, sobretudo Kang-ho Song, que precisou se desdobrar por causa da complexidade do seu personagem em virtude das diferentes situações pelas quais ele passava. Já Thomas Kretschmann não foi tão marcante quanto o seu colega coreano mas ele convenceu muito quando estava numa espécie de estado de choque depois de testemunhar tantos massacres.
Assim, “O Motorista de Táxi” é o melhor filme da Coreia do Sul que eu vi, na minha modesta opinião, pois ele exerce com maestria a função social de denúncia do cinema e o diretor e o roteirista conseguem dar o seu recado, chocando o público violentamente com a repentina troca de gênero de uma comédia levinha para um violento filme que rasga as entranhas. Programa imperdível.
Quando passamos pela Cinelândia, temos o prazer de ver o Teatro Municipal. Sujo e encardido por muito tempo, nosso teatro sofreu uma reforma há alguns anos e agora reluz em verde e dourado. A construção, iniciada em 1906 e concluída em 1909, foi inspirada no teatro mais conhecido da França, o Ópera de Paris. E é justamente sobre esse teatro que tivemos um excelente documentário em nossas telonas. “A Ópera de Paris” fala do cotidiano do teatro mais conhecido da França. A impressão que se dá é a de que o Ópera de Paris por fora é um grande museu, tamanha a sua beleza e ornamentação. Mas, quando adentramos o teatro, vemos que há todo um mundo lá.
E é esse mundo que o documentário mostrou com excelente maestria. Praticamente tudo do teatro estava lá, desde a direção até o pessoal da limpeza, passando pelo grande corpo de artistas que trabalha lá diariamente. Pudemos ver no filme os ensaios de balé, do coro, a nova promessa do canto lírico vinda direto da Rússia (e que ainda não sabia falar francês), a organização dos ensaios de óperas nos bastidores, a parte administrativa, etc., etc. Um momento muito interessante foi ver o cotidiano do diretor do teatro, que tinha que lidar com questões muito espinhosas tais como: corte de verbas, corte de pessoal, greve de funcionários, etc. O mais interessante era ver como diretor tratava a questão do corte de pessoal, sempre barganhando que o mínimo de funcionários fosse cortado, assim como respeitava os sindicatos e os movimentos grevistas. Ou seja, durante os dias de greve, os espetáculos até eram realizados, mas de forma incompleta ou deficiente. E algumas pessoas insistiam em ficar para o jantar antes do espetáculo e assistir ao espetáculo meia boca mesmo, em solidariedade à casa. Coisas simplesmente inimagináveis em certo país subdesenvolvido da América do Sul, cujo nome começa com “B” e não é a Bolívia. Outra coisa surpreendente foi ver uma reunião da direção discutindo o excessivo preço das óperas para o público.
Mas a Ópera de Paris também faz um trabalho social e dá aulas de música para comunidades carentes, formando até grupos de músicos infanto-juvenis. Pudemos ver as aulas das crianças e sua exibição para o público na formatura final.
E quando um grande astro desfalca a ópera em cima da hora e é necessário que outro medalhão o substitua? Isso também aparece no filme, de uma forma até suave, pois o substituto conseguiu ter um baita de um jogo de cintura para interagir com a equipe, tendo pouco (ou até nenhum) momento para o ensaio. Coisas do dia a dia de um teatro da magnitude da Ópera de Paris.
O jovem cantor lírico foi um momento todo especial do filme Pudemos acompanhar a ligação onde ele ficou sabendo que havia sido escolhido pelo teatro, a sua chegada, as medidas para as roupas, sua familiarização progressiva com o idioma francês, o encontro com um grande ídolo, sua amargura ao errar um ensaio e o triunfo de um espetáculo bem sucedido. São pequenas histórias como essa que dão um sabor todo especial ao documentário.
Assim, “A Ópera de Paris” é um filmaço sobre o grande teatro francês que se torna um programa obrigatório e um filme para se ver, ter e guardar, pois mostra em detalhes o cotidiano de uma grande atração turística francesa. Programa imperdível.
Uma co-produção argentino-uruguaia na área. “Minha Amiga do Parque”, de Ana Katz, é uma película, acima de tudo, sobre a fragilidade que a solidão impõe às pessoas. Tudo isso acompanhado de bebês, carrinhos, mamadeiras e passeios no parque.
Vemos aqui a história de Liz (interpretada por Julieta Zylberberg), uma mãe de primeira viagem que precisa cuidar de seu filho com alguns meses de vida, sozinha. Isso porque seu marido está em viagem de trabalho. O cotidiano de Liz é ficar totalmente dedicada à criação de seu filho, tendo poucas formas de companhia. Esse detalhe, mais o arrependimento que ela teve de não produzir leite para seu filho deixaram-na extremamente fragilizada. Um belo dia, Liz encontra Rosa (interpretada por Ana Katz), que também tem uma criança. Logo, as duas começam uma amizade. Mas a forma como Rosa se comporta, seja incitando Liz a sair de uma lanchonete sem pagar a conta, seja sem ter qualquer pudor de ser pidona com as coisas de Liz, seja falando um monte de mentiras, incomoda desde o primeiro instante. O filme, a partir daí, vai desenvolvendo essa ideia e a gente fica na expectativa de como Liz, fragilizada pela solidão, vai ser ou não um alvo fácil para Rosa, que parece ser, no mínimo, uma irresponsável. Ou mau-caráter mesmo…
O filme, que parece ser uma historinha água com açúcar, vai paulatinamente ganhando tons dramáticos, à medida que Liz aprofunda suas relações na rua. O caminho que essas amizades tomam parece não ser o melhor, e a história vai dando sinais disso. A gente espera que Liz quebre a cara fragorosamente ao final do filme. Isso vai mesmo acontecer? Chega de tantos spoilers.
As atrizes estiveram muito bem. Julieta Zylberberg teve uma atuação cativante, sobretudo nos seus momentos de fragilidade. Ela conseguia envolver bem o espectador no clima de solidão e tristeza na qual estava metida. Já Ana Katz funcionou bem como a amiga falsa, interesseira, sonsa e irresponsável de Liz. O mais interessante é que não temos uma personagem simples e plana no caso de Rosa, sendo mais complexa até do que a própria protagonista.
Mesmo que façamos algum juízo de valor sobre as personagens, o filme deixa bem claro que quer destacar as suas características humanas, mostrando não somente os defeitos, mas também as virtudes e fraquezas, sobretudo das personagens Liz e Rosa.
Assim, se “Minha Amiga do Parque” é uma película relativamente curta (cerca de 86 minutos), podemos destacar a fragilidade que a solidão impõe como tema principal, seguida pela construção das personagens, que se são marcadas inicialmente por juízos de valores, ainda assim elas são exibidas como figuras humanas com defeitos, virtudes e fragilidades. Temos uma protagonista estressada e no fio da navalha em virtude de sua solidão. E uma antagonista que, apesar de interesseira, também deixa escapar seu lado emotivo. Nada de tão pirotécnico (o desfecho da película se faz num tremendo anticlímax), num choque de realidade que elenca o humano como fator principal.
Uma co-produção Alemanha/Itália/Áustria/Suíça passou em nossas telonas. “Lou” fala da história real de Louise Andreas-Salomé, uma mulher bem à frente do seu tempo, uma escritora e psicanalista que teve várias amizades masculinas, dentre elas Nietzsche, Rilke e Freud. Uma mulher que teve uma vida intensa, praticamente uma precursora do empoderamento feminino que vemos hoje em dia.
A película começa com ela, já idosa (interpretada por Nicole Heesters) confinada em sua casa durante a queima de livros provocada pelos nazistas. Ela se aposenta de sua profissão de psicanalista e fica reclusa em casa, para tentar escapar de todo o horror em que se transformou a Alemanha. Mas um homem, Ernst Pfeiffer (interpretado por Mathias Lier) insiste em ir à sua casa, à procura de seus serviços. Apesar de todas as chances em contrário, Louise e Ernst iniciam uma amizade e a senhora começa a contar história de sua vida, desde a infância, quando questionou abertamente o poder da Igreja e das instituições vigentes, que controlavam a mulher em todo o seu machismo. Ela conhece um homem mais velho numa livraria, que se encanta com seus poemas e quer se casar com ela, o que lhe provoca um trauma que faz a moça decidir que jamais se apaixonará e que somente se envolverá intelectualmente com os homens. Sua opção acabou fazendo com que ela tivesse diferentes tipos de relacionamento com os homens de sua vida, sendo todos eles com maior ou menor grau de turbulência.
Esse foi realmente um filme muito interessante, pois abordou a vida de uma mulher que escolheu uma forma muito peculiar de relacionamento com o sexo oposto mesmo em nossos dias. Sua opção pela razão total para se resguardar de problemas de ordem emocional acabou não surtindo efeito, já que isso afetava emocionalmente os homens à sua volta e ela acabava caindo nesse turbilhão. Só é pena que a película tenha enfocado muito mais o aspecto pessoal e emocional da vida de Louise do que o aspecto intelectual. Ainda assim, tivemos um filme intrigante e marcante. Um filme, acima de tudo, de atores, de personagens e de relacionamentos e que confirma um pouco aquela ideia de que a história de um homem ter uma mulher somente como amiga é um tremendo engodo. De todos os relacionamentos que Louise teve, talvez somente o com Freud remasse contra essa maré.
Uma coisa que chamou muito a atenção e foi de uma plasticidade incrível foi o uso de postais antigos, onde os atores corriam vivos perante as imagens congeladas de pessoas e ruas. Somente em uma cena, a atriz Katharina Lorenz (que fez Louise na vida adulta) andava em meio a um cenário real com pessoas paradas. Mas em todas as outras cenas, foram usadas imagens de postais antigos, sendo algo muito bonito de se ver.
Assim, “Lou” é um curioso filme que está em nossas telonas e que fala de empoderamento feminino na vida real em épocas e lugares de machismo extremo. Uma mulher que tentou abdicar da paixão em nome da razão, mas por ser de personalidade extremamente magnética, não o conseguiu. Uma mulher que tinha o dom da escrita e escolheu a psicanálise, sendo pioneira em sua área. Um filme que vale muito a pena ser assistido, pois sua protagonista nos envolve completamente.