Batata Movies – A Bela Da Tarde. Surreal Disputa Entre Real E Onírico.

                                                    Cartaz do Filme

Ao que eu me lembre, só havia visto um filme de Luís Buñuel, o longínquo “Um Cão Andaluz”, lá da época do cinema mudo e um dos ícones clássicos do surrealismo. Qual não foi a minha surpresa quando vi que estava em circuito uma cópia restaurada de “A Bela da Tarde”, em comemoração aos cinquenta anos da película, realizada lá no ano de 1967, com Catherine Deneuve no auge de sua juventude e beleza? Essa era uma oportunidade de ouro e me despenquei lá para o Espaço Itaú para assistir.

                                       Uma esposa frígida e recatada…

E quais foram as impressões? Esse é um filme que tem um enredo um tanto manjado (alerta de spoiler em filme de cinquenta anos!!!). Uma esposa frígida sexualmente (interpretada por Deneuve), que tem um marido dedicado e bem sucedido na carreira de médico, vive atormentada com sua condição, mesmo com toda a compreensão do mundo do cônjuge. Um belo dia, ela descobre, por intermédio de uma amiga, que os famosos prostíbulos ainda existem nas ruas de Paris. Tomada por toda uma curiosidade, ela visita um deles e começa a trabalhar como prostituta, algo que vai transformar sua vida, pois a moça fica bem mais ativa com suas experiências sexuais, e ela consegue levar uma vida mais afável com o marido. O problema é que um dos amigos do marido, tremendamente inconveniente com a moça, a descobre no prostíbulo, o que faz a esposa largar a profissão em que ela somente pode estar à tarde (daí o título do filme). Mas um de seus clientes é um perigoso bandido que descobre seu endereço e acaba atirando em seu marido, que fica paralítico.

     … tem uma vida tranquila com o marido…

Esse drama um tanto sexual com ares de tragédia cairia num lugar comum não fosse uma pequena batalha presente na estrutura narrativa da película. Os pólos atuantes desse embate são o mundo real e o onírico, onde um não respeita o limite do outro. Assim, no início da película, presenciamos uma situação onde o casal anda numa carruagem e fala da frigidez da esposa.

                        Fetiches surrealistas…

Num rompante, o marido para a carruagem e ordena aos cocheiros que chicoteiem e estuprem a moça. Mas isso na verdade é somente um devaneio fetichista da esposa, que está segura na cama de seu quarto. Esse é apenas um dos exemplos que permeiam todo o filme, com o detalhe de que o onírico é extremamente inusitado, beirando o surreal, algo que tem tudo a ver com um diretor como Buñuel. O leitor mais atento pode então frisar que esse jogo de gato e rato entre o real e o onírico então é de fácil percepção, ou seja, é só tudo se tornar surreal que sabemos o que é real e o que é invenção da mente da esposa. Vemos até umas armadilhas relacionadas com essa ideia em alguns momentos do filme. Mas a coisa não é tão simples assim e o fio narrativo que considerávamos como parte do mundo real se revela, ao final da película, nada mais do que um outro devaneio ilógico da esposa, que aparece finalmente como uma perfeita casada no mais perfeito dos mundos.

                                Ela experimenta a vida de prostituta…

Essa brincadeira um tanto lúdica entre o real e o onírico com toques de surrealismo é a grande atração do filme depois da beleza estonteante de uma jovem Deveuve de cinquenta anos atrás.

    …com direito a algumas ligações perigosas…

Assim, “A Bela da Tarde” justifica toda a sua fama de ser um clássico da história do cinema, com a chancela de dois nomes fortes do porte de Buñuel e Deneuve. Se o estimado leitor não tiver a oportunidade de assistir a essa cópia restaurada que está em circuito, procure em DVD ou no Youtube, pois vale muito a pena, não somente para os amantes de um bom cinema como também para admirar a beleza de uma diva das telonas.

Batata Movies – Vazante. Cenas De Um Passado Não Tão Distante.

                                  Cartaz do Filme

A competente cineasta brasileira Daniela Thomas nos brinda com mais um de seus bons filmes. “Vazante” é um filme inquietante por si só. Parecendo muito afastado no tempo e descolado de nossa realidade, a película consegue nos mostrar de que ela pode se aproximar mais de nosso tempo presente do que imaginamos. Um filme que consegue fazer refletir e fazer chocar.

                                   Um casamento…

Vemos aqui a história de Antônio (interpretado por Adriano Carvalho), um dono de fazenda que vive em Minas Gerais no início do século XIX. Ele perde tragicamente a esposa e filho quando a mulher estava em trabalho de parto. Desesperado, o homem se lança no mato e lá fica deitado, tentando de alguma forma aplacar a sua dor. Mas como não há nada melhor do que um dia após o outro, a família do irmão da falecida vai morar numa fazenda vizinha. Com a família virá Beatriz (interpretada por Luana Nastas), uma jovem praticamente na pré-adolescência, que acaba casando com Antônio, em virtude das rígidas condições sociais da época. O homem precisa passar uns dias fora de casa para tratar de seus negócios com gado. Enquanto isso, Beatriz passa os dias sozinha, interagindo com os escravos da fazenda. Paro com aqui com os spoilers, mas o leitor um pouco mais atento já está percebendo, ao ler estas linhas, para qual rumo a história irá, assim como o desfecho.

                       A escravidão retratada…

Bom, se a trama não é algo tão inédito assim, isso também não significa que o filme não tenha virtudes. Muito pelo contrário até, pois a película é cheia de lances muito atraentes. A começar pelo notório preto e branco que leva o público a um contraste em claro e escuro muito marcante. Tal contraste já ajuda a alimentar o ambiente opressor do filme, já que as relações sociais numa fazenda no interior de Minas Gerais na primeira metade do século XIX não será exatamente o melhor exemplo de candura e leveza.

Aliás, a grande vedete do filme está justamente na questão das relações sociais. Numa sociedade patriarcal e com muitas heranças de um Antigo Regime ainda próximo (onde as relações pessoais e de troca de favores suplantavam as práticas impessoais e competitivas da sociedade capitalista), atrelada ao fator complicador gerado pela escravidão, vemos aqui como a hierarquização se fazia de forma extremamente presente. Os homens brancos praticamente são os senhores de tudo, indo desde os escravos, tratados como objetos que satisfazem todas as suas necessidades (até sexuais), chegando até a figura da esposa branca Beatriz, que em sua inocência adolescente, acabava se juntando aos escravos e de uma certa forma se igualava a eles, se virmos isso do ponto de vista das propriedades que os patriarcas brancos têm. Essa visão de superioridade do homem branco sobre a mulher, branca ou não, e sobre o próprio negro, ainda se faz presente nos dias de hoje. É só verificarmos que estrato da sociedade compõe a casta de grandes executivos, quem são os empregados, como a mulher é vista no mercado de trabalho e como há a óbvia manutenção do racismo e da ideologia dominante de uma elite que faz de tudo para restringir os direitos sociais. Nesses pontos, podemos dizer que “Vazante” é até bem atual. A única coisa que incomodou um pouco foi o fato de, a uma certa altura do filme, as relações pessoais foram colocadas um pouco de lado em virtude de um maior destaque dado ao relacionamento do casal protagonista. O problema é que, cedo ou tarde, isso teria que acontecer, até para que o filme tivesse um quê maior de dramaticidade. Outro problema aqui foi a qualidade do som, creio também que um pouco por culpa do sistema de som da sala do Estação Botafogo 2, que não está lá essas coisas. Em alguns trechos, os atores pareciam sussurrar bem baixo, o que atrapalhava a compreensão.

                   Mulher negra. Duplo objeto…

A questão da escravidão é muito bem trabalhada na película. Vemos um capataz negro controlando os escravos africanos. Devemos nos lembrar de que havia muitos conflitos envolvidos entre os africanos recém-chegados ao Brasil (que haviam se tornado escravos há pouco tempo e que lutavam para sair dessa condição) e os chamados crioulos, que eram negros nascidos no Brasil já na condição de escravos, que encaravam com mais “naturalidade” a sua condição. O filme mostra muito bem a postura bem mais rebelde dos africanos e de como a barreira linguística podia complicar muito as coisas, pois até os próprios escravos não entendiam uns aos outros, dependendo de sua procedência. Ainda, foi apresentado na película o escravo liberto (ou forro), esse nem livre, nem escravo, que tinha a promessa de uma carta de alforria caso trabalhasse mais alguns anos para o senhor. O forro tinha então o projeto ambicioso de recuperar a propriedade falida em troca da liberdade. E a sua função de administrador que precisava fazer a propriedade funcionar direitinho acabava o aproximando de um capataz que tratava os escravos da mesma forma que um branco o faria. Quando vemos esses momentos polêmicos do filme, onde negros maltratam negros, devemos nos lembrar que a escravidão no Brasil foi um fenômeno altamente complexo onde muitas situações ocorreram. O filme buscou trilhar um pouco por esse caminho mais complexo, saindo do lugar comum da escravidão somente como uma manifestação de violência do branco opressor contra o negro.

       A senhora convivendo com os escravos…

Dessa forma, “Vazante” é um daqueles filmes fundamentais que aparecem por aí, pois não é todo dia que vemos uma película abordar questões históricas de grande complexidade com eficiência e maestria. É um programa imperdível como produto cinematográfico e de análise histórica.

Batata Movies – Mãe. Parece, Mas Não É.

                Cartaz do Filme

Um filme inusitado passou em nossas telonas. “Mãe”, dirigido por Darren Aronofsky (o mesmo diretor de “Cisne Negro”) é uma daquelas películas que seguem uma linha narrativa que, de repente, se modifica completamente, bem ao estilo do “parece, mas não é”. Com isso, o espectador fatalmente tem a impressão de que vê um certo gênero quando, na verdade, acaba sendo outro. Um filme que gosta de brincar de gato e rato com o espectador.

                      Uma mulher atormentada

Mas, no que consiste a história? Vemos aqui um casal bem unido (interpretado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem). O marido é escritor e tem um bloqueio criativo que o impede de seguir a sua carreira adiante. Já a esposa é devotada ao casamento e ajuda o cônjuge a reconstruir a sua vida depois de uma tragédia pregressa. Tudo parecia às mil maravilhas com aquele casal. Até que, um dia, o marido leva um homem estranho para sua casa (interpretado por Ed Harris) e o acolhe, para espanto da esposa, que não entende a atitude do esposo a princípio, mas a acata, pois vê que o seu companheiro tem uma postura altamente solidária. Entretanto, com o tempo, aquele acolhimento dado àquele homem revela-se uma tremenda furada. O cara é extremamente inconveniente, fuma dentro de casa, e tem uma doença que provoca nele tosses insuportáveis não somente para ele como também para quem presencia aquilo tudo. E, como se não bastasse, ele tem uma esposa (interpretada por Michelle Pfeiffer), que se revela muito cínica e ácida. Todo esse rosário de situações inusitadas vai transformando a vida da esposa da casa num inferno e o marido não toma qualquer atitude para reverter isso, já que os intrusos se declaram fãs incondicionais de sua produção literária.

                         Um marido sem noção…

Esse é o tipo de filme que incomoda muito o espectador, já que ele bate de frente com um valor primordial da sociedade liberal: a ideia de propriedade como sinônimo de liberdade. Desde os tempos da Revolução Inglesa e do pensador John Locke, que cunhou as bases do liberalismo político, a ideia de propriedade como liberdade, cunhada pelo mesmo pensador, impera na sociedade liberal capitalista contemporânea. E, de repente, vemos o direito à propriedade sendo sistematicamente violado na película, provocando um enorme desconforto e uma empatia cada vez maior entre o espectador e a esposa interpretada por Lawrence, que recebe a agressão direta do desrespeito a esse direito fundamental. E a coisa é feita numa torrente cada vez mais crescente em intensidade, com a nítida intenção de incomodar. Por ser tão agressivo, o espectador vê a película nesse momento como uma história de suspense que pode até descambar para o terror, achando que o filme irá cair no lugar comum de um clichê. O problema é que a coisa vai se tornando cada vez mais surreal com o andamento da história, e o inusitado fica tão agressivo que rompe até os limites da liberdade poética, deixando a pessoa que assiste um tanto perdida com o que vai acontecer com o desfecho. E aí, quando chega o clímax, há uma violenta virada, onde o filme assume outra cara, não fechando um ciclo, por mais paradoxal que isso possa parecer. Infelizmente, os spoilers não me permitem ir mais a fundo na análise, mas uma coisa é certa aqui: a violenta virada que esse filme sofre em sua estrutura narrativa não é algo que a gente vê todo o dia e acaba nos surpreendendo um pouco, como se a violação da propriedade prendesse tanto a nossa atenção que a gente não consegue perceber as pequenas pistas que essa virada nos deixa antes do clímax (a capa de surreal é outro fator que ajuda a omitir um pouco tal virada, embora as pistas residam justamente no surreal).

          Ed Harris, um homem inconveniente

Bom, apesar desse estado de confusão que o filme provoca no espectador, visto por uns como virtude e por outros como defeito, temos um grande atrativo que é o elenco. Foi muito bom rever Ed Harris e Michelle Pfeiffer, que andavam meio sumidos de nossas telonas. Só é uma pena que tenham aparecido pouco. Eles poderiam ter tido uma participação um pouco maior na história, sobretudo Pfeiffer, com uma personagem bem mais interessante e agressiva. Harris foi perfeito em sua inconveniência, embora o personagem exibisse uma fragilidade latente que não combinava muito, mas ajudava a aumentar a tensão. Bardem foi primoroso como o marido amável, que podia ser muito complacente em alguns momentos, mas extremamente agressivo em outros. Agora, a mais fraquinha ali talvez tenha sido justamente Jennifer Lawrence. Embora suas sequências de desespero explícito tenham sido bem convincentes, sua atuação meio que se apagou em meio a tantos craques ali envolvidos. Foi até uma covardia com a moça, ouso dizer, mesmo que ela tenha melhorado muito nos últimos anos. Talvez a personagem não ajudasse muito, sei lá, embora não devamos nos esquecer (alerta de spoiler) de que ela chegou a uma situação limite no filme, onde ela acabou saindo do lugar comum de vítima que constituía a sua personagem.

Michelle Pfeiffer, numa personagem ácida e cínica

Assim, “Mãe” é um filme que merece ser visto, primeiro porque ele incomoda e agride o espectador a um ponto de que o mesmo não sabe mais qual será o desfecho da história. E, em segundo lugar, porque o filme revela uma grande virada em seu desfecho, até certo ponto inesperada, pois a estrutura narrativa consegue camuflar bem as pistas de que essa virada irá acontecer. Além disso, temos um ótimo elenco que comprou a ideia do filme e topou destilar todo o seu talento. Vale a pena dar uma conferida. Uma coisa é certa: o filme despertou muita polêmica, sendo amado e odiado pelas pessoas por aí. Ninguém ficou indiferente a essa película.

 

Batata Movies – Festival Do Rio 2017. Sexy Durga. Road Movie À Madrugada.

                                                Cartazes do Filme

Mais um filme que passou no Festival do Rio deste ano. A bola da vez é “Sexy Durga”, uma produção indiana de 2016. Podemos dizer aqui que esse é um filme em duas camadas. A primeira mostra um ritual de adoração a uma deusa local, onde vemos pessoas em transe penduradas por ganchos enfiados em sua própria carne. Tudo muito característico daquela região e bem exótico aos olhos ocidentais, não sem dar um nervoso muito grande ao ver as pessoas tendo os seus corpos furados por ganchos de metal e pendurados neles. Mas essa camada serve apenas como uma espécie de pano de fundo para a história principal. E que história é essa? Vemos aqui um casal, Kaber e Durga, que sofrem a discriminação do sistema de castas indiano. Durga, a moça, é do norte do país e eles parecem estar no sul, onde a relação do casal parece não ser aceita (infelizmente o filme não deixa claro o porquê dessas coisas). Os dois, então, traçam um plano de fuga, onde eles pegarão uma espécie de van clandestina para a estação de trem, onde rumarão para o norte do país.

                      Um casal amedrontado

O problema é que os homens da van são muito esquisitos e mal encarados, começando a fazer perguntas muito estranhas para o casal, que fica totalmente amedrontado e quer descer da van o tempo todo. O mais curioso é que os sujeitos da van garantem que não vão fazer mal aos dois, mesmo colocando o homem e a mulher sem querer nas situações mais escabrosas. O casal também foge da van e anda pela estrada escura (já são altas horas da noite) várias vezes, mas os perigos são muitos e os dois sempre acabam voltando à van original e nunca chegam à redentora estação de trem para sacramentar a tão esperada fuga.

                        Uma van cheia de doidões

O que podemos falar desse road movie à madrugada? Ele é uma verdadeira ópera do absurdo, pois o casal anda num território perigoso durante toda a noite, seja dentro de uma van de malucões, seja a pé, e nunca consegue chegar ao seu destino. E o mais inusitado é que o destino está ali ao seu lado, pois a estrada beira a linha do trem em boa parte do filme. Assim, fica o desespero do casal em andar, andar e andar, com os trens passando bem ali ao lado. Mas o problema também era que o próprio casal não se decidia, pois ele sempre voltava a van depois de sair dela e tomar a estrada no breu que mergulhava a noite. Prisioneiros do próprio medo, o homem e a mulher jamais tomavam uma decisão efetiva e a encaravam de frente, caindo numa armadilha armada por eles mesmos, produto de duas mentes angustiadas que acabavam angustiando também o espectador.

As filmagens devem ter dado muito trabalho por terem sido realizadas à noite. As longas caminhadas na estrada no escuro obrigavam a equipe de filmagem a colocar sempre a câmara em movimento. Igualmente complicadas devem ter sido as tomadas na van, onde víamos o carro parando e andando, com as filmagens se desenrolando. Filmar em tais condições adversas deve ter sido um desafio e tanto e a gente já bate palmas para esse detalhe do qual nem sempre o espectador se dá conta.

                    Andando pela madrugada

Assim, “Sexy Durga” é um filme onde nós podemos dizer que foi de difícil realização, nos contou uma história absurda, onde o preconceito do sistema de castas indiano foi o combustível para o inusitado e o climão de road movie regado a muito heavy metal foi uma curiosidade a mais nas tomadas claustrofóbicas de lugares ermos na escuridão da madrugada. Vale a pena procurar na internet por este, caso não dê o ar de sua graça nos cinemas daqui em circuito comercial.

Batata Movies – Festival do Rio 2017. Matar Jesus. Até Onde Vale A Pena A Vingança?

                                        Cartaz do Filme

Ainda dentro do Festival do Rio 2017, foi exibida a co-produção Argentina-Colômbia “Matar Jesus”. Essa excelente película lança uma questão mais do que ancestral: até onde vale a pena a vingança? Você só se sentirá verdadeiramente saciado se você retribuir todo o mal que sofreu de alguém ou é melhor esperar que a própria pessoa que te fez o mal se estrepe totalmente e assistir a tudo de camarote sem qualquer sensação de culpa ou de arrependimento? Muitos filmes já trabalharam essa questão, uns pendendo para uma resposta, outros pendendo para outra resposta. Agora, essa película revisita o tema, tomando como cenário o ambiente violento da Colômbia.

                   Paula. Vida feliz com o pai

Vemos aqui a história de Paula (interpretada por Natascha Jaramillo), uma bela estudante universitária, filha de um professor que leciona na mesma universidade a disciplina de ciência política. Preocupado com as questões sociais, esse professor fala de resistência dos menos favorecidos às injustiças. Um belo dia, Natascha volta com seu pai para casa de carro, mas a viagem termina numa emboscada onde dois homens numa moto assassinam seu pai. Natascha conseguiu ver o assassino do pai na garupa da moto. Mas percebeu na delegacia que a polícia agiria com morosidade nas investigações. Num desses acasos da vida, Natascha encontra o assassino numa danceteria, e ele não a reconhece. A moça aproveita a oportunidade para se aproximar do bandido, que atende pelo nome de Jesus. Mas essa aproximação em busca de uma vingança não será feita sem percalços, onde Paula passará por muitas situações altamente espinhosas, descortinando um submundo totalmente alheio à sua realidade de classe média.

   Mas sua vida toma um rumo muito perigoso

O filme mostra uma direção bem clara quando se refere à questão da vingança. Desde o início, os planos de Paula para matar Jesus são impedidos por vários obstáculos. O alto preço de uma arma ilegal, a dificuldade em manuseá-la, o ambiente altamente violento em que Paula se metia, parecendo uma ida a um caminho sem volta, o fato de Jesus andar permanentemente armado e ser amigo de policiais corruptos, etc., tudo contribuía para que os planos de vingança de Paula terminassem de forma extremamente trágica, bem ao estilo “A vingança é a arma do otário”. Chegava a ser doloroso ver Paula se enrolando cada vez mais naquelas situações escabrosas, onde sua vida passava por riscos cada vez maiores, e a moça não recuava, dando a impressão de que ela mergulhava de cabeça em uma autoimolação, indo a um matadouro. Entretanto, a alternativa a isso não era das melhores. A segurança de seu lar burguês vinha junto com um ar de tumba, pois a casa havia perdido toda a vida com a morte do pai e marido (quem já perdeu um ente querido de dentro de casa sabe muito bem do que estou falando). Uma das provas disso está na sequência em que Paula passa a noite de natal na casa da família de Jesus, onde há muita celebração e alegria, com as famosas luzinhas de natal piscando em todo o canto, enquanto que, na sua casa, a escuridão e o silêncio prevaleciam. Isso fez até que Paula, num ato de desespero, saísse à toda da casa de Jesus em pleno natal e adentrasse a sua casa em busca dos enfeites natalinos e das luzinhas que, mesmo que mal arrumadas, tiravam um pouco da morbidez de seu lar. Assim, só restava à Paula a sua busca cada vez mais insólita por vingança.

                           Aprendendo a atirar

O desfecho do filme, apesar de muito previsível, ainda assim nos deixa com uma sensação de indignação, pois ficou aquele sentimento de muito barulho por nada. Mas também pareceu um castigo muito adequado a Jesus, e creio que esta foi a mesma conclusão que Paula tomou. Então, o filme termina com uma sensação de que a justiça será feita, mas também não deixa de ter uma certa ideia de vazio.

            Matar ou não matar, eis a questão…

Dessa forma, “Matar Jesus”, apesar do tema já batido da vingança, veio como uma interessante curiosidade do Festival. Esperamos que saia comercialmente por aqui, pois é um filme relativamente inquietante que merece a atenção do espectador.

https://www.youtube.com/watch?v=u4T85L-yqU0

Batata Movies – Festival Do Rio 2017. Brawl In The Cell Block 99. Camadas E Camadas De Violência Gratuita.

                                         Cartaz do Filme

Ainda recordando alguns dos filmes do Festival do Rio 2017, vamos hoje falar de uma película que retrata muito bem a violência da sociedade norte-americana estadunidense. “Brawl in the Cell Block 99” constrói seu protagonista em moldes altamente conservadores: skin head white power (só para começar) extremamente patriota e preconceituoso com imigrantes, homem muito violento mas bem resignado de si, que somente libera sua violência em momentos extremos. O grande problema é que o brucutu em questão é o mocinho da história, o que leva a entender que seus inimigos são muito piores que eles. E quem são seus inimigos? Isso mesmo, caro leitor! Traficantes mexicanos, a “escória imigrante”. Ou seja, dentro da visão estadunidense conservadora de direita, é o sujo falando do mais sujo ainda.

                    Bradley, uma vaca brava…

Mas, no que consiste a história? Bradley, nosso protagonista, (interpretado por Vince Vaughn) trabalha numa oficina, mas é demitido por conta da crise. Ao chegar à sua casa, encontra a mulher dentro do carro. Depois de uma rápida conversa com ela, descobre que a moça tem um amante. Bradley, então, manda a mulher ir para dentro de casa numa forma um tanto ríspida e depois destrói o carro dela com muita porrada. Mais calmo, ele conversa com a esposa e diz que pretende recomeçar o casamento e vai trabalhar temporariamente para Gil, um amigo traficante de drogas. O tempo passa, a esposa de Bradley engravida e ele passa a ter muito conforto. Mas Gil pede a ele para fazer um servicinho junto com traficantes mexicanos, Bradley toma uma posição até certo ponto hostil com os caras, mas aceita o trabalho depois do apelo de Gil.

      Tentando recomeçar a vida com a esposa

O problema é que, durante o tal trabalho, a polícia deu as caras e Bradley, meio que por raiva dos mexicanos, meio que por raiva de tudo dar errado, passa fogo nos próprios comparsas enquanto eles trocam tiros com a polícia. Isso resultou na prisão de todos, na morte de um dos mexicanos e num prejuízo de 3,2 milhões de dólares para o chefão mexicano do tráfico. Sentenciado a sete anos de prisão, Bradley vai para uma prisão de segurança média, mas recebe a visita de um capanga do traficante mexicano que diz que sua esposa foi sequestrada e ela e a filha somente serão libertadas se ele matar um detento que está numa prisão de segurança máxima. Assim, Bradley terá que fazer algo para se transferir de presídio, e a porradaria, com muitos lances de violência extrema, regada a fraturas expostas de braços e pernas, começa.

Fazendo o que não quer para ajudar o amigo Gil

Nessa via crucis de Bradley, é interessante perceber que, apesar dele construir todo o seu modo de ser pautado nessa sociedade conservadora de direita e preconceituosa, ele acaba se tornando uma vítima da mesma. Ao não denunciar seu amigo Gil para a polícia, sua pena, que poderia ser de cinco anos, aumenta para sete. Ao se transferir para a prisão de segurança máxima, é obrigado a se confrontar com um sistema prisional medieval, com direito até a torturas. Tal presídio é dirigido por um psicopata (interpretado magnificamente por Don Johnson, o Sonny de Miami Vice, o homem da Ferrari Branca) que deixa bem claro que tem poder de vida e morte sobre os detentos.

Don Johnson arrebenta como o diretor psicopata de presídio

Podemos dizer que o filme tem uma violência explícita dividida em várias camadas. A primeira, e mais interna, é a do protagonista que, contida no início, explode em direção às demais camadas de violência do filme, da metade da película para a frente. A segunda camada é a dos traficantes mexicanos, que ameaçam Bradley e sua esposa com um verdadeiro terrorismo psicológico. E a terceira camada é a violência do Estado, manifesta principalmente no presídio de segurança máxima e seu diretor. Se há um conflito entre as duas primeiras camadas e até uma disputa relativamente equilibrada entre elas, por sua vez a camada da violência de Estado é indestrutível e implacável, aplicando uma opressão extrema sobre as demais camadas. Assim, o filme não pode ser visto como uma violência homogênea, regada a muita porrada. O conservadorismo é latente na película, onde ele pode se virar justamente contra quem o cultiva, no caso Bradley. Essa é a principal mensagem do filme.

https://www.youtube.com/watch?v=3ESXJoH9NrU

Festival do Rio 2017 – As Entrevistas de Putin. Descortinando um Líder.

                         A entrevista do século!!!

Vamos ainda falar dos filmes que pudemos ver no Festival do Rio 2017. Na última chance do Festival do Rio 2017, tive a oportunidade de ver aquela película que, na minha modesta opinião, foi uma das grandes atrações do evento. “As Entrevistas de Putin”. Dirigido por, ninguém mais, ninguém menos que Oliver Stone, é um filme notável em todos os sentidos. Organizado em quatro programas de cerca de uma hora, a exibição desta grande película, tanto em extensão quanto em magnificência, constituiu-se numa verdadeira maratona da qual você sai muito feliz, pois te dá a certeza de que você participou do Festival esse ano. Foram mais de uma dúzia de entrevistas, concedidas no período de dois anos (de 2015 a 2017)  e Stone teve carta branca para fazer qualquer pergunta (embora isso nem sempre significasse que Putin respondesse, pois alguns temas eram realmente de natureza altamente confidencial). O resultado foi um panorama de um dos líderes mais importantes do mundo, de postura muito controversa aos olhos do Ocidente, mas que se mostrou de forma muito límpida e clara em alguns pontos, não sem ser um pouco turvo em outros.

             Um clima de muita cordialidade

Vários temas foram enfocados na entrevista. Falou-se de sua infância, seus pais, da vida dos tempos de União Soviética, de sua entrada na KGB, o serviço secreto russo. De uma forma muito clara, Putin analisou toda a transição do socialismo para o capitalismo em seu país e apontou os erros e acertos, em sua opinião, de líderes chave nesse processo, ou seja, Mikhail Gorbachov e Boris Yeltsin.

Fazendo as vezes de anfitrião, mostrando o Kremlin…

Com uma franqueza marcante, falou dos problemas que o capitalismo totalmente livre introjetou em seu país e quais medidas ele tomou, já como presidente, para reparar isso. Putin também mencionou a turbulenta relação entre a Rússia e a OTAN, onde o avanço da aliança militar capitalista sobre o leste europeu depois do fim da Guerra Fria foi visto por Putin como algo extremamente desnecessário e beligerante pois, afinal de contas, a Rússia era então uma aliada do Ocidente e aproximar os armamentos da OTAN do território russo exigia uma resposta desse país. Putin ainda lembrou que a crise dos mísseis de Cuba, em pleno auge da Guerra Fria, tinha sido uma resposta a uma atitude semelhante dos Estados Unidos na Turquia, numa prova de uma beligerância antiga dos Estados Unidos.

     Um dedicado intérprete, sempre a postos…

Todas essas tensões entre as duas potências antes e depois da Guerra Fria trouxeram à tona outro ponto: como foi a relação entre Putin e quatro presidentes americanos: Clinton, Bush, Obama e, agora, Trump. E Putin foi muito sincero em dizer que houve momentos tranquilos, mas também momentos de grave turbulência na sua relação com os presidentes dos Estados Unidos. Ele deixou bem claro também que qualquer atitude hostil contra a Rússia terá uma resposta à altura. O mais interessante é que ele fazia tais afirmações levantando muito pouco a voz, num tom sempre muito sereno. Aliás, tocando nesse ponto, pudemos ver Putin sempre de forma contida, expressando alguns estados emocionais. Ele ria, bufava, se irritava levemente, sempre voltando a um estado sereno quando percebia que se excedia, passando uma sensação de muita segurança.

         Falando sobre Snowden ao volante…

Foi muito taxativo sobre a questão da Ucrânia e da Crimeia, onde disse claramente que, no primeiro caso, houve uma tentativa de golpe de estado de direita, e no segundo, que houve um referendo onde o povo desejava a anexação à Rússia. Expôs argumentos convincentes sobre o posicionamento da Rússia na Guerra da Síria (luta contra o terrorismo que tanto assolou a Rússia na Guerra da Chechênia) e foi também muito seguro ao afirmar que a Rússia não interferiu nas eleições americanas que escolheram Trump para a presidência. Fugindo um pouco do escopo da política, Putin afirmou que não há perseguições a homossexuais em seu país, embora se mostrasse um pouco conservador em suas opiniões.

                             Um esportista…

Stone tentava arrancar o máximo de respostas possíveis de Putin, mas o líder era muito esperto em suas afirmações. Foi muito interessante ver o diretor americano debatendo questões como a perpetuação de Putin no poder e até exibindo para ele uma cópia de “Dr. Fantástico”, de Kubrick. Apesar das reservas de Putin em abordar temas mais espinhosos em alguns poucos momentos, uma coisa é certa: esse é o relato mais completo que temos desse enigmático presidente russo e um enorme serviço de Stone ao cinema e a uma melhor compreensão da geopolítica internacional.

                       Firmeza nas palavras

Esse é o tipo de documentário que tem que ser lançado em DVD por aqui e que a gente tem que ver, ter e guardar, não somente pela polêmica do tema, mas, principalmente, pelo grau de sinceridade e de como o discurso do presidente russo pode ser incisivo em vários momentos. Vale muito a pena a experiência de assistir a essa série de entrevistas. E, não se esqueça: vá a São Petersburgo, recomendação do próprio Putin à esposa de Stone. Imperdível!

 

Batata Movies – Rio Fantastik Festival – Enfim Sós. Os Companheiros Sumiram / Animal Cordial. Cardápio De Sangue.

Cena de “Enfím Sós”

O Cine Joia, de Copacabana, e o Estação Net Rio 2 realizaram o Rio Fantastik Festival, onde doze longas e dez curtas de suspense e terror foram exibidos e seis longas e seis curtas concorreram ao troféu Cramulhão, em homenagem à mostra que acontece mensalmente no Cine Joia. Tive a oportunidade de assistir a um curta e a um longa do Festival lá no Cine Joia.

O primeiro filme foi o curta “Enfim Sós”, de Helvécio Parente. Trata-se da história de um casal que se hospeda num hotel e, enquanto a moça vai para o banho, o marido espera no quarto. Só que, misteriosamente, a moça desaparece e o marido a procura pelo hotel. Qual não é a surpresa de, depois de ter passado na recepção com a esposa, as câmaras do hotel mostram o marido entrando sozinho e o seu próprio celular mostra a selfie que ele fez com a esposa com ele sozinho no enquadramento? Atônito, é levado para o hospital depois de ter uma crise nervosa. Enquanto isso, a moça sai do banho e também se depara com o quarto vazio, também indo à recepção do hotel e também sendo comunicada que foi vista entrando sozinha ali, assim como foi dito anteriormente para o marido.

O diretor Helvécio Parente

Vórtex temporal? Ou apenas um grande mistério? Só é pena que essa instigante ideia não possa ter sido mais profundamente desenvolvida em virtude da duração do curta, de apenas oito minutos. De qualquer forma, abre-se grandes possiblidades para o caso de um média ou longa-metragem. Ah, sim, não podemos nos esquecer de que, no elenco, Fernando Caruso fazia o marido.

Cena de “O Animal Cordial”

O segundo filme, esse um longa, foi “O Animal Cordial”, de Gabriela Amaral Almeida, onde um dono de restaurante, Inácio (interpretado por Murilo Benício), tem uma relação doentia com seus empregados e clientes. Tudo vai piorar muito quando dois assaltantes entram no restaurante e Inácio consegue dominá-los. O que se vê a seguir é uma sucessão de eventos macabros que resultará em muitas mortes e sangue, pois Inácio pirou na batatinha e acredita que o assalto foi orquestrado pelo cozinheiro da casa, Djair (interpretado por Irandhir Santos).

Boa participação de Irandhir Santos…

É muito curioso notar que Inácio não é a única mente desajustada em todo o contexto. Sara (interpretada por Luciana Paes) faz um pacto com o patrão, por se apaixonar por ele, e tem violentos conflitos com Verônica (interpretada por Camila Morgado), uma das clientes do restaurante, justamente em virtude da diferenciação social e do preconceito. Vale a referência de que o título do filme é uma paródia ao texto “O Homem Cordial”, um dos capítulos do livro “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, onde o autor defende a ideia de que o brasileiro, influenciado pelas relações pessoais e clientelistas do Antigo Regime, construiu uma visão pacífica e cordial de si mesmo, alimentando aquele mito de que o brasileiro é bonachão e tranquilo. O que vemos no filme é justamente o oposto: pessoas se tratando com uma agressividade e animosidade sem tamanho, destruindo umas as outras, onde até é citado o uso da carne humana como cardápio do restaurante, algo parecido com o que alguns serial killers da República de Weimar faziam, onde a carne de suas vítimas era comercializada, assim como os ossos dos corpos eram usados para se fazer pentes e botões que também seriam vendidos.

A diretora Gabriela Amaral Almeida

Assim, essas duas produções (o curta “Enfim Sós” e o longa “O Animal Cordial”) são a prova de que o cinema brasileiro pode fazer bons trabalhos nos gêneros de suspense e de terror. É uma pena que tais filmes não encontrem espaço no circuitão mais tradicional, sendo isso uma prova de que a mostra Rio Fantastik Festival se torna mais do que necessária para que essas obras tenham uma chance de dialogar com o grande público. Só para lembrar, “O Animal Cordial!” também passou no Festival do Rio 2017.