Batata Movies – Fúria. Fake News E Rancor.

Fury (1936 film) - Wikipedia
Cartaz do Filme…

Dentre os filmes da fase americana de Fritz Lang, falemos de sua primeira película nos Estados Unidos. “Fúria” (“Fury”, 1936) foi um cartão de visitas arrebatador do diretor austríaco em terras americanas. Lang mostra com uma grande crueza até onde o ser humano pode ser venal e destrutivo. Um filme que faz a gente olhar para dentro de si e se questionar do papel que assumimos perante as pessoas e o mundo. Para podermos falar dessa película, vamos liberar os spoilers de oitenta e quatro anos.

File:Spencer tracy fury cropped.jpg - Wikimedia Commons
Joe. Um homem transformado pelo ódio…

O plot gira em torno de Joe Wilson (interpretado por um jovial e eternamente magistral Spencer Tracy). Ele está planejando seu casamento com a doce Katherine Grant (interpretada por Sylvia Sidney), mas o jovem casal ainda está juntando dinheiro e a moça vai ganhar a vida em outra cidade. Joe vai levando a sua vida e tudo vai de vento em popa. Até o dia em que ele consegue comprar um carro e vai visitar sua noiva na cidade em que ela está. Entretanto, durante a viagem, ele é parado pela polícia numa cidade vizinha e é levado para a delegacia como suspeito de sequestrar uma menina, já quee algumas evidências apontam nessa direção. A noticia da prisão de Joe corre a cidade e a população, numa rede de fofocas (ou fake news, só para atualizarmos o tema), já decide que Joe é culpado e deve ser imediatamente punido. Os moradores da cidade, enfurecidos, decidem atacar a delegacia, que pede reforços militares que são barrados por políticos estaduais preocupados com o resultado das eleições. Katherine sabe de toda a confusão na cidade vizinha e, desesperada, vai a pé até lá. Assim que ela chega, já encontra a delegacia em chamas com Joe dentro, e desmaia. Joe consegue fugir da delegacia sem ser visto e deixa de ser o homem doce e alegre para se tornar amargo, rancoroso e com desejo de vingança. O resultado da investigação inocenta Joe e, como ele é dado como morto, vinte e dois moradores são acusados de assassinato. E aí a coisa vira. Os moradores da cidade assistem ao julgamento torcendo pelos seus, mas o promotor está ávido por condenar os acusados. Depois de conseguir imagens filmadas dos acusados incendiando a delegacia, a defesa argumenta que não há um corpo. Joe, que escuta o julgamento no rádio, manda uma carta com sua aliança derretida para o juiz, forjando uma evidência de seus restos mortais. Mas Katherine percebe que a carta tinha um erro ortográfico que somente Joe cometia. Revoltada, ela pressiona seus dois irmãos que sabem que Joe está vivo. A moça os seguirá e descobrirá Joe, que está transtornado e tomado pelo ódio. Katherine diz que, se os acusados forem condenados à morte, Joe terá que andar o resto de sua vida às escondidas e não poderá se casar com ela. Ainda, Katherine diz que o que Joe sofreu na prisão por alguns momentos, muitas pessoas estão sofrendo por muito tempo, pois o julgamento é um processo demorado. Joe sai revoltado para a rua e anda pela noite, sendo assombrado pela sua consciência, vendo imagens dos moradores da cidade em sofrimento, ao bom estilo das alucinações e do claro/escuro tão caro à Lang. O filme termina com o veredicto sendo dado pelo juiz e Joe entrando no tribunal, alegando que quer ficar em paz consigo mesmo e que aceita a punição da justiça, com a esperança de poder reconstruir sua vida um dia com Katherine, que lhe dá um beijo apaixonado.

Fury, de Fritz Lang, ou a transfiguração de pacíficos cidadãos ...
Uma cidade contra um homem…

Esse realmente é um filmaço de Lang. Embora haja um happy end, vemos aqui uma leitura altamente pessimista da alma humana tanto na situação coletiva quanto na individual, mostrando as diferentes manifestações da fúria em si. O pior do ser humano numa situação coletiva se manifesta nos pré-julgamentos e na propagação de falsas verdades, mostrando que o fenômeno nocivo das chamadas fake news é muito mais antigo do que parece. E aí, a turba, enfurecida, acaba se tornando uma massa humana de 100% de emoção e 0% de razão, agindo de forma muito selvagem e inconsequente. Tanto que, durante o julgamento, muitos moradores simplesmente caíam em desespero quando perceberam o barbarismo das ações das quais tomaram parte, como se a fúria coletiva despertasse os instintos mais selvagens do ser humano e ele regredisse a um estado mais ligado à natureza do que à cultura. Mas a fúria de um ser individual também é radiografada no filme. E aí, muitas palmas para esse grande ator que é Spencer Tracy, que tem uma característica toda especial: Tracy, juntamente com Tom Hanks, são os dois únicos atores de Hollywood a ganhar o Oscar de Melhor Ator por dois anos consecutivos. E sua atuação aqui confirma bem isso. No inicio do filme, vemos um Joe doce e amável. Mas o seu quase linchamento o torna uma pessoa rancorosa, cheia de ódio e sede por vingança, o que deixa surpresos seus irmãos e sua noiva. Será o acerto de contas com sua consciência (o momento de herança expressionista do filme) que fará com que Joe decida se revelar vivo perante o tribunal. Se Spencer Tracy deu um show nesse filme, não podemos nos esquecer da fofíssima Sylvia Sidney. Se ela parece frágil e doce, ela tem também muita fibra nos momentos certos, seja literalmente correndo de uma cidade para outra, seja depondo no julgamento de forma firme, seja sendo igualmente firme ao perceber o caminho de revanchismo que Joe tomava. Ou seja, é esse misto de doçura, fragilidade e firmeza que faz a interpretação de Sidney tão especial. Não é à toa que ela trabalhou em três filmes de Frtz Lang nos Estados Unidos.

Director B-Side: Fritz Lang and 'Fury' - mxdwn Movies
Katherine tenta demover Joe de toda a sua revolta…

Dessa forma, “Fúria” foi o grande cartão de visitas de Fritz Lang para o cinema americano. Sua visão realista e pessimista do comportamento humano, seja em nível coletivo, seja em nível individual, pode ser vista como um personagem à parte na película, que também mostra a herança de seus dias expressionistas na Alemanha, com direito ao claro/escuro e às alucinações. Um programa imperdível. Infelizmente, esse filme está disponível apenas no site cinemalivre.net, onde você precisa pagar uma pequena quantia para ter acesso a muitos filmes de diretores consagrados. Vale a pena dar uma conferida. E fique agora com o trailer abaixo.

Batata Movies – Metrópolis. Um Futuro Que Espelha O Presente.

Metropolis (1927 film) - Wikipedia
Cartaz do Filme…

Dentre as nossas análises de filmes da fase alemã de Fritz Lang, falemos hoje de “Metrópolis” (“Metropolis”, 1927), talvez o mais famoso filmes de Fritz Lang. Essa foi uma grande superprodução da UFA que, infelizmente, não teve o retorno esperado. O filme foi muito mutilado para a sua exibição nos Estados Unidos, em virtude de sua longa duração e de alguma censura, o que fez com que a versão completa se perdesse para sempre, ficando muito desconexa e de difícil compreensão. Mesmo assim, a grande plasticidade de suas imagens transformou “Metrópolis” numa lenda. Em 2008, foi divulgada ao mundo a descoberta de uma cópia praticamente completa em Buenos Aires e hoje podemos ver “Metrópolis” muito próximo do que foi sua exibição de estreia em Berlim, a 10 de janeiro de 1927. Para podermos falar desse filme, vamos liberar os spoilers de noventa e três anos.

Cinema e Arquitetura: “Metrópolis” | ArchDaily Brasil
Uma grande metrópole futurista…

O plot é o seguinte. No ano de 2026, há uma grande cidade futurista chamada Metrópolis, com uma população de sessenta milhões de habitantes. A enorme cidade é controlada por máquinas que ficam abaixo da terra, onde operários têm uma jornada desumana de trabalho de dez horas diárias. Eles vivem numa cidade operária abaixo das máquinas. Os filhos da elite de Metrópolis se divertem nos jardins eternos, por serem artificiais, e têm uma vida privilegiada, regada à muito prazer. Um deles é Freder (interpretado por Gustsv Fröhlich), filho do grande patrão da cidade, Joh Fredersen (interpretado por Alfred Abel). Um dia, enquanto Freder se diverte com uma das moças à disposição do varão, surge uma linnda moça humilde chamada Maria (interpretada por Brigitte Helm), com muitas crianças maltrapilhas, que são as filhas dos operários. Maria diz às crianças que aquela elite estarrecida são seus irmãos. Freder imediatamente se apaixona pela moça e vai atrás dela, mas descobre a realidade insana das máquinas e da exploração sobre os operários. Ele vai conversar sobre isso com seu pai, que não demonstra a menor compaixão. Com a ajuda de Josaphat (interpretado por Theodore Loos), Freder vai procurar Maria e seus irmãos, enquanto que o pai ordena ao sinistro mordomo (interpretado por Fritz Rasp) que vigie o filho. Há, também, um cientista, Rotwang (interpretado por Rudolf Klein-Rogge) que disputou, no passado, com Joh Fredersen o amor de uma mulher chamada Hel, e ele perdeu. Mas Hel morreu ao dar à luz Freder. Inconformado, Rotwang cria para ele uma mulher mecânica (também interpretada por Brigitte Helm), mas Fredersen pede que Rptwang dê ao robô a forma de Maria para manipular os operários. Esse plano se mostrará trágico, com conseqüências muito destrutivas.

Metrópolis (1927) - Cultura Projetada
Maria. Mais um vez, a questão dos duplos…

Esse filme, eivado de uma estética expressionista, é considerado por alguns especialistas do cinema alemão como já fora da fase expressionista. Lang se dizia realista ao invés de expressionista. Mas muitos elementos do expressionismo estão lá: o claro/escuro, a interpretação antinatural dos atores, a arquitetura muito ornamentada da grande metrópole, as sombras atuando como personagens, a indignação com a exploração capitalista. Freder é um personagem-chave aqui. Ele surge como o novo homem expressionista que vai ao contato de seus irmãos mais pobres para libertá-los da tirania. Entretanto, Freder será influenciado e guiado pela doce e angelical Maria, que, ao invés de propor uma ruptura entre capital e trabalho, propõe a (impossível) união pacífica entre esses dois pólos. A frase que manifesta essa união no filme é “Entre a mente que planeja e as mãos que constroem, tem que haver um mediador, e esse deve ser o coração”. Assim, Freder, eivado de uma conotação até messiânica, promove essa união entre capital e trabalho com um relutante aperto de mão entre Joh Fredersen e o capataz dos operários. O próprio Fritz Lang dizia que não gostava de “Matrópolis” por seu final “falso”. Muitos outros historiadores e estudiosos do cinema condenavam o filme, às vezes até com adjetivos depreciativos. Freder parece fazer uma jornada no filme. No início, ele busca um novo homem expressionista, com uma nova visão de mundo e ansioso pela justiça social. Mas, ao ser manipulado por Maria, ele chega ao novo homem nazista, onde os operários voltam a ter uma postura passiva frente ao patrão por inteira responsabilidade de seu filho e, muito mais de Maria, que acalmava as massas com a profecia da vinda do mediador. Thea von Harbou, que assina o roteiro, teria simpatia com os nazistas, e estes, sobretudo Goebbels, diriam que é necessário conquistar o coração do povo e mantê-lo. Assim, o filme se constitui de duas camadas: a Expressionista-Social e a da Nova Objetividade passiva e conformista que flerta com o nazismo, estilo artístico surgido posteriormente ao Expressionismo. Se Lang não atingiu sua maturidade política nesse filme, as condições turbulentas da República de Weimar não tardariam em acelerar esse processo de maturação e nosso diretor seria muito mais competente nas entrelinhas em “M, O Vampiro de Dusseldorf”, de 1931.

Metrópolis | O precursor do Sci-Fi completa 90 anos
Lang e alguns dos seus mais de trinta e sete mil figurantes…

Dessa forma, se “Metrópolis” imortalizou Lang pela grandeza da produção, por outro lado, esse é um filme de estética Expressionista que tem uma narrativa que se adéqua mais à Nova Objetividade. Um produto cultural nas fronteiras de duas tendências artísticas. Não deixe de ver o filme na íntegra legendado em português abaixo.

https://www.youtube.com/watch?v=Vnp_TAb52AI

Batata Movies – A Mulher Na Lua. Uma Ficção Científica Séria.

Woman in the Moon - Wikipedia
Cartaz do Filme

Dentre as nossas análises de filmes de Fritz Lang em sua fase alemã, vamos falar de “A Mulher Na Lua” (“Frau Im Mond”, 1929). Esse é um filmaço de Fritz Lang. Além da sua longa duração (cerca de duas horas e quarenta e nove minutos), “A Mulher Na Lua” é uma ficção científica surpreendente, pois foi um filme que buscou fazer uma ficção científica o mais coerente possível, mas também com alguns devaneios. Para se ter uma ideia, o filme teve consultoria científica e tocou, em paralelo, o desenvolvimento de um projeto onde um foguete de verdade (não tripulado, obviamente, e de dimensões bem mais reduzidas que os de hoje) seria lançado no dia de lançamento do filme. O filme teve como consultor científico o pioneiro da astronáutica Hermann Oberth, que tinha como ajudante um jovem de nome Werhner Von Braun, que mais tarde seria responsável pelo Saturno V, o foguete que realmente levaria o ser humano à Lua. Infelizmente, o foguete não foi lançado no dia da estreia do filme, mas “A Mulher Na Lua” estimularia muito a pesquisa e desenvolvimento de foguetes. Para podermos falar desse filme, vamos liberar os spoilers de noventa e um anos.

Blu-ray Review: Frau im Mond | The Least Picture Show
Um casal com um amor reprimido…

O plot é o seguinte. O cientista Wolf Helius (interpretado por Willy Fritsch) visita seu antigo professor, Georg Manfeldt (interpretado por Klaus Pohl), que vivia num humilde apartamento e na miséria depois de ter sido ridicularizado pela comunidade científica por defender que havia ouro na Lua e que uma viagem até nosso satélite natural seria possível. Ele desenvolveu toda uma teoria a respeito, que agora estava sendo cobiçada por uma grande instituição financeira. Essa teoria ficaria sob a guarda de Helius, que a colocaria em seu cofre em casa. Mas essa instituição financeira conseguiu roubar a teoria escrita pelo cientista e obrigou Helius a fazer a viagem conjuntamente com um de seus representantes, o sinistro Walter Turner (interpretado por Fritz Rasp). Também tomariam parte na viagem o professor Manfeldt e o casal de cientistas amigo de Helius, Hans Windegger (interpretado por Gustav von Wangenheim) e Friede Velten (interpretada por Gerda Maurus). Completa a tripulação o garoto “clandestino” Gustav (interpretado por Gustl Gstettsenbaur). Depois de uma grande cerimônia para o lançamento, o foguete parte para a Lua, soltando seus estágios e tudo, viajando por trinta e seis horas até pousar em nosso satélite artificial. Uma vez chegado lá, o professor Manfeldt sai do foguete primeiro, pisando na superfície lunar com um escafandro, mas descobre que há atmosfera no satélite. Ele anda até uma caverna e encontra ouro, mas cai num buraco e morre. Turner o segue e consegue encontrar outro pedaço de ouro, tentando voltar para a Terra sozinho no foguete, deixando os demais tripulantes na superfície. Mas seus planos são descobertos e, depois de uma luta corporal e uma troca de tiros. Turner morre. Entretanto, um dos tiros atingiu os cilindros de oxigênio do foguete, o que significava que um dos tripulantes teria que ficar na Lua. Helius e Windegger (que estava meio surtado da vida) tiraram a sorte no palitinho e Helius venceu. Gustav armou um acampamento para Windegger ficar. Mas Helius decidiu ficar no lugar do amigo e deu-lhe uma bebida com tranqüilizante para ele dormir. Helius deu as instruções para Gustav pilotar o foguete e desceu para a superfície da Lua. Depois que o foguete partiu para a Terra, Helius foi para o acampamento e encontrou Friede que, apesar de noiva de Windegger, sempre esteve apaixonada por Helius. Fim do filme.

Frau Im Mond [Woman in the Moon] | Eureka
Um filme que inspira o futuro…

O que podemos dizer de “A Mulher Na Lua”? Em primeiro lugar, a ficção científica impressiona, e muito. As cenas da Lua (que precisaram de quarenta caminhões de areia das praias do Mar Báltico para simularem o deserto lunar) lembram muito as imagens reais da superfície da Lua, à despeito da atmosfera, do ouro e das poças ferventes que vemos no filme. Mas muito mais impressionante e realístico foi o lançamento do foguete na Terra. O deslocamento do foguete do hangar para a plataforma de lançamento lembra demais os lançamentos reais, à despeito do foguete ser colocado numa piscina para aguentar o seu peso com o deslocamento da água. Chamou muito a atenção a contagem regressiva, a separação dos estágios durante o lançamento do foguete e os nossos astronautas tendo que suportar a pressão da força G e a necessidade do foguete atingir a velocidade de escape da gravidade da Terra, que realmente é de onze quilômetros por segundo. A situação de gravidade zero durante o voo também é lembrada, onde os personagens tinham que encaixar os pés em alças durante o voo. Gustav chega a “flutuar” num momento do filme. Nessas horas, a gente se pergunta: até onde “A Mulher Na Lua” influenciou nos lançamentos reais de foguetes? Devemos nos lembrar que esse é um filme de 1929, feito décadas antes dos lançamentos reais de foguetes, e vimos a contagem regressiva nele. Vendo esse filme, me lembro demais da discussão de como Jornada nas Estrelas influenciou o futuro antecipando, por exemplo, o uso de celulares e tablets. Parece que todo o cerimonial, estética e antevisão de um lançamento de foguete em estágios, sujeição do corpo humano à aceleração e à ausência de gravidade foram exibidos nesse filme, com os cientistas de décadas posteriores influenciados pelo que vimos na película de Lang lá do final dos anos vinte.

Frau im Mond | Electric Sheep – reviews
Uma paisagem lunar muito realista…

E a “Mulher Na Lua” em si? Apesar dela estar no título do filme, a sua posição na missão é altamente periférica. Parece que o empoderamento feminino aqui só chegava ao máximo a isso. O simples ato de Friede já estar numa missão perigosíssima, como o próprio Helius dizia (como ele era apaixonado por Friede, não queria de jeito nenhum que a mesma se submetesse a uma missão tão perigosa) parecia ser suficiente para um ato feminino pioneiro e de vanguarda. Um empoderamento feminino que se manifestava no vestuário. Se no início do filme, a moça, em seu noivado, vestia um delicado vestido branco, na missão, sua vestimenta era deveras masculinizada, com direito a uma gravata e a uma calça bem larga, que escondia suas formas femininas. Seria como se a moça, ao tomar para si uma tarefa atribuída aos varões, precisasse se vestir como tal. Pelo menos, ela filmou a superfície da Lua em toda a sua riqueza de detalhes (impossível não se lembrar de Leni Riefensthal), já que Friede era uma renomada cientista.

Pin on Film
A mulher que filma a Lua…

Dessa forma, se “A Mulher Na Lua” mostrou um empoderamento feminino com as limitações culturais da época, por outro lado, vimos uma ficção cientifica que, apesar dos devaneios como a presença de atmosfera na Lua, teve uma consultoria científica que alguns diriam que anteviu o futuro, e outros diriam que deu as bases para a construção do próprio futuro. Ver uma contagem regressiva de um lançamento de um foguete décadas antes do primeiro foguete ser realmente lançado é algo, no mínimo, perturbador. E veja o filme na íntegra abaixo, legendado em português.

https://www.youtube.com/watch?v=lZiU9Gc-kWk

Batata Movies – O Homem Que Quis Matar Hitler. Caçada Insana.

Man Hunt – Wikipédia, a enciclopédia livre
Cartaz do Filme

Voltando a falar um pouco da fase americana de Fritz Lang, temos “O Homem Que Quis Matar Hitler” (“Man Hunt”, 1941). Esse é um filme de suspense que aborda o infinito tema da Segunda Guerra Mundial no cinema. Para que possamos falar sobre o filme, vamos liberar os spoilers de setenta e nove anos.

O Desporto da Caça, com Hitler na Mira | À pala de Walsh
Capitão Thorndike. Atrás de uma grande caça…

O plot é o seguinte. O capitão inglês Thorndike (interpretado por Walter Pidgeon) tenta matar Hitler um pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, mas é capturado pelos nazistas. Ele vai ser interrogado por Quive-Smith (interpretado por George Sanders) e diz que não pretendia matar o Führer, somente simular a caçada perfeita. Quive-Smith não acredita muito nisso e liberta Thorndike caso ele assine um documento onde admite tentar matar Hitler a mando do governo inglês. Mas Thorndike se nega terminantemente a fazer isso. Os nazistas então o torturam e o jogam de uma ribanceira, simulando um suicídio. Mas Thorndike sobrevive e foge, sob o cerco cerrado dos nazistas, que descobrem que ele sobreviveu. A perseguição se estende até a Inglaterra, onde Thorndike conhece Jerry (interpretada por Joan Bennett), uma moça que se apaixona por ele, Mas Thorndike é perseguido por nazistas e ele precisa se separar da moça, que lamenta muito isso. Quando isso finalmente acontece, Jerry é capturada pelos nazistas é assassinada. Os nazistas finalmente cercam Thorndike, que consegue alvejar Quive-Smith com um presente que nosso protagonista tinha dado à moça (um adorno em formato de flecha), mas Quive-Smith também acerta Thorndike com um tiro. Este consegue sobreviver mais uma vez. O episódio termina com Thorndike descendo em território alemão em plena guerra, com um rifle, com o objetivo de matar Hitler novamente.

Man Hunt (1941) Fritz Lang | Journeys in Darkness and Light
Capturado, Thorndike tem Quive-Smith como antagonista…

Esse é um filme de muito suspense, com cenas de perseguição quase o tempo todo, mas também um filme que mostra o terno relacionamento entre Thorndike e Jerry. O mais curioso disso é que a personagem de Jerry seria originalmente uma prostituta, mas a glamourização de uma prostituta por parte do filme era considerado moralmente impossível. Assim, se colocou uma máquina de costura na casa de Jerry para ela ser tomada como costureira. Mesmo assim, Lang conseguiu colocar a cena do encontro final entre Jerry e Thorndike com a primeira fingindo ser uma prostituta para despistar o policial que estava na rua e não reconhecesse Thorndike, que era procurado. Outra curiosidade no filme foi testemunharmos a participação de um Roddy McDowall muito jovem, menino ainda, já destilando muito talento, e ajudando Thorndike a fugir da perseguição dos nazistas.

Man Hunt Blu-ray Review
Com Jerry, que vai se apaixonar loucamente por ele…

Dessa forma, “O Homem Que Quis Matar Hitler” é um filme de suspense que tem a perseguição como um personagem à parte, bons diálogos entre Throndike e Quive-Smith, uma história de amor um tanto terna entre Thorndike e Jerry (com uma Joan Bennett ainda com cara de menina, já que o filme é de 1941) e uma grata surpresa de um pré-adolescente Roddy McDowell, já mostrando um baita de talento desde muito cedo. O filme vale mais por suas curiosidades em si. E veja o filme na íntegra abaixo, legendado em português.

https://www.youtube.com/watch?v=4je_JZnBOiw&t=1s

Batata Movies – Casamento Proibido. O Crime Não Compensa, Na Ponta do Lápis.

You and Me (1938) - IMDb
Cartaz do Filme…

Um filmaço da fase americana de Fritz Lang. “Casamento Proibido” (“You and Me”, 1938) já seria um grande filme simplesmente pela presença da fofíssima Sylvia Sidney, mas a película tem outros atrativos sendo, sobretudo, um filme de forte conteúdo social. Para podermos falar sobre esse filme, os spoilers de oitenta e dois anos estão liberados.

You and Me (Fritz Lang, 1938) – Offscreen
Um casal buscando recomeçar…

O filme fala da trajetória de um casal, Helen (interpretada por Sidney) e Joe (interpretado por George Raft). Os dois são colegas que trabalham numa loja de departamentos. E têm algo em comum: os dois tiveram um passado de crimes, cumpriram pena na prisão e estão em liberdade condicional. Essa coincidência aconteceu, pois o patrão dos dois, o senhor Morris (interpretado por Harry Carey) acredita que quem passou pela cadeia fica marcado pela sociedade e ninguém quer dar uma segunda chance, ou seja, um novo emprego. Morris decidiu então empregar em sua loja de departamentos somente pessoas que estejam em liberdade condicional para dar essa segunda chance, para desespero de sua esposa, que pensa como a maioria da sociedade e vê os ex-presidiários com suspeita. Joe teve um passado de crimes violento e decidiu sair do emprego e da cidade para se afastar de seus antigos companheiros de crime, que constantemente o chamavam para voltar às antigas atividades ilícitas. Mas ele desiste de ir embora depois que Helen disse que o amava. Os dois se casam imediatamente, embora não o pudessem fazer, já que estão na condicional. Ainda, Joe não sabe do passado de crimes de Helen, que esconde isso dele de todo o jeito. Joe começa a desconfiar de Helen, inicialmente achando que ela tem outro, mas depois sabendo de seus amigos de crime que ela tinha também um passado negro. Irritado com as dissimulações de Helen, ele decide voltar para seus colegas de crime e assaltar a própria loja do Sr. Morris, em que trabalhava. Mas Helen, que já estava grávida de Joe, diz tudo ao Sr. Morris, que espera os bandidos com um monte de seguranças e a própria Helen na loja. O Sr. Morris dá um esporro federal nos ladrões, que são todos os seus empregados, e deixa Helen sozinha com eles, à pedido da própria moça. Aí, ela começa uma explicação aos bandidos de que o crime não compensa, sob risadas gerais e começa a fazer num quadro negro todo um conjunto de contas, ao bom estilo de “colocar tudo na ponta do lápis”, para ver se o que cada bandido que participaria do assalto ganharia, pois somente um percentual do roubo iria para a quadrilha, isso sem falar em gastos com um carro para a fuga, caminhões para transporte do roubo, suborno dos seguranças, etc. etc. Ao fim, a quantia que cada um teria seria irrisória, isso sem falar que eles voltariam a ser procurados pela polícia. Todo mundo ficou com uma tremenda cara de tacho, e Joe, muito enfurecido, gritava com ela, que foi embora. Os próprios ladrões disseram que “todo homem tem o direito de gritar com uma mulher (ê 1938!), mas não na frente dos outros”. Joe grita com eles também e sai à toda revoltado. Com a cabeça mais fria, ele pega um perfume na loja, paga na caixa registradora e o leva. Mas quando chega ao apartamento que dividia com Helen, esta já foi embora e lhe deixou uma carta de despedida. Desesperado, vai ao agente da condicional e ainda descobre que ela está grávida. Sem saber o que fazer, vai aos seus amigos de bandidagem que procuram Helen pela cidade toda, até a descobrirem num Hospital, onde dava à luz. O filme termina com um happy end clássico, onde o casal se reencontra, com um monte de bandidos o cortejando.

You and Me (Fritz Lang, 1938) – Offscreen
Voltando à vida de crimes…

O grande barato de “Casamento Proibido” é a questão social que Lang levanta, vista também em “Vive-se Só Uma Vez”: como recolocar na sociedade aqueles que já cumpriram suas penas e estão em liberdade condicional? O trailer do filme enfoca demais essa questão e Lang criou um casal bem simpático para o grande público ter empatia com quem vive nessa condição. Mas Joe era um homem de passado violento, algo difícil de se desvencilhar. Assim, ele era muito duro contra mentiras e omissões, agindo de forma exagerada contra uma doce Helen, tornando Joe um verdadeiro trouxa, com a ajuda do machismo latente da época. Mas se Helen era doce e frágil, também vimos o seu momento de empoderamento, ao denunciar o assalto ao Sr. Morris e depois ainda explicar aos seus colegas (a maioria trabalhava na loja) por que não compensava trocarem seus empregos por um assalto, provando tudo por a mais b. Essas atitudes de Helen fazem a gente amar Sylvia Sidney com todas as nossas forças nesse filme. E a coisa vai soando cada vez mais simpática, pois, mais ao final da película, os próprios colegas de crime de Joe se transformam numa espécie de alivio cômico na ajuda em fazer o casal ficar junto novamente, o que deu a condição de que o filme tivesse um happy end que não fosse fora de contexto. Assim, Lang consegue fazer um filme que trabalha uma temática social de uma forma leve e suave, não muito tensa.

Le Testament du Dr. Mabuse - version française - (1933) de Fritz ...
Mostrando, na ponta do lápis, que o crime não compensa…

Dessa forma, “Casamento Proibido” é um dos filmes mais simpáticos de Lang, pois usa o trunfo de Sylvia Sidney, trabalha uma temática social altamente pertinente e adéqua um happy end a uma situação de humor mais ao final do filme. Veja o filme neste link, acionando as legendas, ou em inglês, ou num português sofrível: https://www.youtube.com/watch?v=bVrv-bQoWEc&t=109s

Batata Movies – O Diabo Feito Mulher. A Vingança Cantada.

O Rato Cinéfilo: RANCHO NOTORIOUS (1952)
Cartaz do Filme

Dentre as análises da carreira americana de Fritz Lang, falemos de “O Diabo Feito Mulher” (“Rancho Notorius”, 1952), o terceiro Western do diretor austríaco, que conta com a participação toda especial de Marlene Dietrich. Só quero dizer inicialmente que simplesmente odeio o título em português do filme, além de achá-lo uma tremenda duma sacanagem com Marlene Dietrich. Para podermos falar mais sobre o filme, vamos liberar os spoilers de sessenta e oito anos.

Rancho Notorious
Vern. Em busca de vingança…

O plot é o seguinte. Vern Haskell (interpretado por Arthur Kennedy) tem a sua noiva assassinada num assalto. Ele vai atrás dos assaltantes com alguns homens e o xerife da sua cidade, mas todos recuam quando chegam aos limites legais da jurisdição do xerife, sem falar que dali para a frente era território Sioux. Vern, revoltado, continua sozinho. Ele acha um dos bandidos, que foi alvejado pelo assassino de sua noiva numa discussão e extrai do homem moribundo apenas que o outro bandido foi para um lugar chamado Chuck-a-Luck. Vern sai procurando por aí, até que, numa barbearia, ao mencionar o nome Chuck-a-Luck, é interpelado de forma agressiva por um homem, que menciona o nome de Altar Keane. Os dois começam uma luta de vida e morte e Vern mata o sujeito que era procurado por assaltar diligências e, ao invés de ser preso, ainda recebeu uma recompensa do xerife, que Vern deu de bom grado ao dono da barbearia, que foi destruída na luta. Mas Vern aproveitou a oportunidade para perguntar sobre Alter Keane. Ele descobriu que ela era uma espécie de cantora e dançarina de cabarés e bares, que pulava de cidade em cidade. Vern seguiu os passos da estranha mulher até chegar em Frenchy Fairmont (interpretado por Mel Ferrer), que a conhecia. O homem estava preso e Vern deu um jeito de ser preso também e libertar Frenchy, para conquistar a confiança dele. Frenchy o leva então para um distante rancho, cuja dona é Alter Keane (interpretada por Dietrich). Ela conseguiu o rancho depois de se demitir de um bar onde era cantada de forma agressiva com os homens e ganhar uns jogos de roleta com a ajuda de Frenchy, que se apaixonou por ela. Keane criava cavalos e abrigava bandidos procurados no rancho. Vern, para verificar se o assassino de sua esposa estava pro lá, se tornou atrevido o suficiente para se aproximar de Keane, que cai em suas graças e desperta os ciúmes de Frenchy. Este organiza um assalto a um banco, enquanto que o assassino da noiva de Vern descobre que este está atrás dele e tenta matá-lo, em vão. Vern encara o assassino mas o xerife chega primeiro e o prende. Mas os demais bandidos do rancho libertam o assassino. Vern vai entregar a parte dela no assalto e abre o jogo com Keane, reclamando que ela abriga bandidos e o assassino de sua noiva. Keane pretende deixar tudo, mas Frenchy chega, tentando demovê-la. Os demais bandidos, liderados pelo assassino da noiva de Vern chegam e querem todo o dinheiro do assalto. Um tiroteio generalizado começa, provocando a morte de quase todos, com exceção de Vern, Frenchy e alguns bandidos que são dominados. Keane é alvejada e morre. O filme termina com os dois homens que disputaram Keane indo embora juntos e a canção que permeia todo o filme dizendo que os dois lutaram até a morte.

B-Roll: Fritz Lang's RANCHO NOTORIOUS (1952) - The Retro Set
Alter Keane. Seu rancho recebe todo o tipo de criminosos…

Esse foi o primeiro Western que tem uma canção que “conta” a história, somente a título de curiosidade. Reza a lenda, também, que o relacionamento entre Dietrich e Lang não foi dos melhores durante as filmagens. A atriz, inclusive, se referia a Lang como um “homem horrível”. E é um Western que joga para escanteio o “happy end”, pois a mulher disputada pelos protagonistas morre no tiroteio. Mulher essa que assume uma posição forte e independente na época, com a ajuda de Frenchy, mas é colocada numa incômoda posição na trama, pois ela usa o seu rancho para abrigar foras-da-lei e facínoras de toda a espécie. Quando ela abre os olhos para seus malfeitos em virtude da caçada de Vern, já é tarde e ela acaba vitimada pelo tiroteio provocado pelos varões que ela abrigava em sua casa, tal como se fosse uma espécie de punição por sua vida de crimes e por sua “empáfia” em ser uma mulher forte numa terra e época onde os homens davam as cartas. Esse é um dos motivos pelos quais odeio o título em português do filme, pois somente aumenta a visão ultramachista sobre a ousadia da personagem Keane na película. E aí, temos um desfecho deprimente, com Vern e Frenchy abandonando juntos o rancho e ainda com a música dizendo que os dois morreram em duelo, algo que pode ter acontecido depois do final da película, ou somente caiu no campo da lenda, já que os dois desapareceram juntos. Pelo menos, ficou aqui a impressão de que Lang mais uma vez deixou a sua visão de que “a morte não é uma solução”, pois a vingança, tão corriqueira nos Westerns, não apresentou qualquer resultado positivo aqui, já que Keane, disputada por dois homens, morre ao final. Talvez nem tão disputada assim, pois Vern apenas cortejava Keane para pôr em prática o seu plano de vingança. Ou seja, uma mulher mais velha, que se apaixonou por um rapaz mais novo, ainda teve essa decepção de se sentir usada por ele. Tudo isso perante um Frenchy que realmente a amava e ficava submisso a ela.

Rancho Notorious | BAMPFA
Um baita de um triângulo amoroso…

Dessa forma, “O Diabo Feito Mulher” é mais um Western de Lang que questiona a vingança corriqueira dos Westerns e, se mostra a personagem de Dietrich como uma mulher forte que comanda muitos homens, também pune essa mesma personagem por sua empáfia de desafiar uma cultura ultramachista como a do Velho Oeste Americano. Um filme para refletir, e muito. Infelizmente, não foi achada uma versão na íntegra no Youtube. Fique com o trailer do filme.  

Batata Movies – Coração Vadio. Do Amargo Real Para O Lúdico Estranho.

Liliom (1934 film) - Wikipedia
Cartaz do Filme…

Dentre as nossas análises de filmes de Fritz Lang, vamos para a única película que ele filmou na França, depois de ter fugido da Alemanha Nazista. “Coração Vadio” (“Liliom”, 1934), é um filme estranho, para dizer o mínimo, pois ele começa com uma pegada muito realista para terminar com um lúdico de amargo gosto real. Para podermos falar desse filme, vamos precisar liberar os spoilers de oitenta e seis anos.

Liliom (Fritz Lang, 1934) – Offscreen
Liliom, um malandro de marca maior…

Vemos aqui a trajetória de Liliom (interpretado por um jovem e vigoroso Charles Boyer), cujo trabalho é atrair clientes para o carrossel de um parque de diversões. Um dia, ele começa a flertar com uma jovem, Julie (interpretada por Madeleine Ozeray), despertando ciúmes na patroa de Liliom, a Madame Moscat (interpretada por Florelle). Liliom perde seu emprego e começa a viver com Julie e a tia da moça. Enquanto Julie faz as tarefas pesadas da casa e trabalha para sustentá-la, Liliom leva uma vida malandra e boêmia, maltratando a moça a agredindo-a. Ele está perto de desistir de Julie quando descobre que ela está grávida e fica muito feliz com a possibilidade de ter um filho. Só que, agora, ele vai ter que arrumar dinheiro de algum jeito. E aceita a sugestão de um amigo para praticar um assalto. Mas o plano vai por água abaixo e, perseguido pela polícia, Liliom se mata com uma facada no peito. Quando chega ao céu, dá de cara com o comissário de polícia que constantemente o chamava para a delegacia na Terra. Para os pobres, não há a presença de Deus, somente os rigores da justiça, assim como na Terra. Liliom passará por um interrogatório para se justificar por que agredia a sua esposa e por que se suicidou quando ela mais precisava dele. Ficou claro que Liliom se arrependeu do que fez, mas mesmo assim ele não foi poupado de ficar dezesseis anos no purgatório para depois ter direito a um dia na Terra para falar com sua filha. O tempo passou e um envelhecido Liliom foi para a Terra e encontrou com sua filha (também interpretada por Madeleine Ozeray). A moça diz que não conheceu o pai. Sua mãe diz que ele é um excelente pai e foi para os Estados Unidos. Liliom diz a ela a verdade, falando que seu pai era ruim e agredia sua mãe. A menina, indignada, se afasta de Liliom. Enquanto vemos nosso protagonista agindo na Terra, um anjo e um demônio jogam pesos numa espécie de balança celestial onde o lado que pender mais definirá o destino de Lilion (céu ou inferno). À medida que a filha dele ficava mais irada com suas palavras, o peso para o inferno aumentava. Tudo levava a crer que nosso Liliom iria para o inferno, mas, no último momento, a filha de Liliom pergunta à sua mãe Julie se seu pau batia nela. A mãe diz que sim, mas que, mesmo assim, o amava. Então, com esse argumento meio rodriguiano de que mulher gosta de apanhar, a balança pendeu para o lado do bem e nosso Liliom, que descia o cacete em uma moça inocente e indefesa, vai para o céu.

Liliom | Coisas para fazer in Lisboa
Flertando com Julie..

Muito estranho aos nossos olhos, não? Bom, nosso personagem principal não tinha apenas defeitos, mas o argumento que definiu se ele ia para o céu ou para o inferno é que não cola muito hoje. De qualquer forma, a mensagem principal do filme é que os menos favorecidos nunca têm qualquer tipo de chance ou privilégio, seja neste mundo , seja no mundo celestial. A eles somente restam os rigores da lei. Ou seja, temos uma amarga realidade de periferias na grande parte do; filme para depois entrarmos em uma história mais lúdica de um celestial eivado de realidades terrenas amargas. Realmente o machismo latente de Liliom e sua covardia de se suicidar para resolver todos os problemas foram punidos com os dezesseis anos de purgatório, mas ele teve outra chance de se redimir, ficando um dia na Terra com sua filha. E mesmo assim ele deu com os pés nas mãos, não aproveitando a chance. O que o salvou foi a candura pura de sua esposa, que o amava mesmo com os vacilos da parte dele, que a agredia sistematicamente. Julie sim, merece uma passagem ao paraíso. Mas se seu comportamento rodriguiano de amar mesmo apanhando salva Liliom em 1934, dificilmente o faria em 2020. Pelo menos, foi muito legal ver a atuação de Charles Boyer, todo vivaz e vibrante, em oposição total ao homem calado e amuado de “Jardim de Alah”, em sua fase americana, com Marlene Dietrich. E nunca devemos nos esquecer que foi Boyer que inspirou o gambá Pepe, de Looney Tunes, que sempre agarrava a gatinha que ficava com uma mancha acidental de tinta branca em suas costas, não aguentando o cheiro do gambá.

Liliom (1934) – MUBI
Filme tem momentos de lúdico, com amargas pitadas de real…

Dessa forma, “Coração Vadio” é um filme estranho. É dito que ele foi um fracasso comercial e foi muito mutilado pelos produtores que extraíram as partes mais “germânicas” do filme, com medo da não aceitação do público francês. Ainda assim, podemos testemunhar o que foi a parceria Fritz Lang – Erich Pommer na França. Infelizmente, não temos o filme para exibir aqui. Fiquem com o trecho da morte de Liliom.

Batata Movies – M, O Vampiro De Düsseldorf. Uma Perseguição Implacável.

M (1931 film) - Wikipedia
Cartaz do Filme

Voltando às nossas análises sobre filmes de Fritz Lang em sua fase alemã, vamos falar de “M, O Vampiro de Düsseldorf” (“M, Eine Stadt Sucht einen Mörder”, 1931). Essa película deu à Lang a sua maturidade política, pois ele chegou a ter boicotadas as gravações de seu filme, pois houve um boato de que ele estaria fazendo um filme contra o governo. Quando ele explicou que estava fazendo “apenas” um filme sobre um assassino de crianças, ele voltou a ter autorização para fazer as gravações. Para podermos analisar esse filme, vamos ter que liberar os spoilers de oitenta e nove anos.

Fritz Lang's M: the blueprint for the serial killer movie | BFI
Um assassino de crianças…

O filme, como já foi dito acima, é sobre um serial killer de crianças, que inferniza a cidade de Düsseldorf. Os atos do assassino incomodam os pais, incomoda a polícia, que precisa fazer incursões que incomodam os moradores da cidade, incomoda o crime organizado, que vê uma presença maior da polícia nas ruas atrapalhando as suas atividades. Há um clima de desconfiança no ar e qualquer um que tome uma atitude minimamente suspeita já é acusado pela população de ser o serial killer. Ou seja, os nervos estão à flor da pele na cidade. É muito curioso perceber todas as estratégias altamente metódicas que a polícia toma para capturar o assassino que, entretanto, são completamente em vão. Já o crime organizado, também muito metódico, tem mais sucesso ao catalogar todos os mendigos da cidade numa rede de informações que acaba chegando ao assassino Hans Beckert (interpretado por Peter Lorre, que depois participaria, no cinema americano, de “Casablanca”). Beckert estava com uma menina quando ele compra um balão com um mendigo cego que nota que o assassino assovia um tema de Edvard Grieg, “Na Gruta do Rei da Montanha” (“M” será o primeiro filme falado de Lang e ele já usa o som com uma importância pronunciada na trama). O mendigo cego, após o assassinato da menina, escuta mais uma vez o assovio e pede para um rapaz segui-lo. Ele vai colocar a letra M (de “Mörder”, assassino) em sua mão e irá encostar sua mão no ombro de Beckert, deixando-o marcado, para uma mais fácil identificação. Beckert notará que está sendo perseguido pelos criminosos da cidade e se esconde num prédio de escritórios que é invadido pelo crime organizado da cidade para aprisioná-lo. Beckert será então levado a julgamento pelo crime organizado da cidade, assistido pela população, que exige a sua cabeça. Beckert diz que comete seus assassinatos orientado por uma espécie de desejo, de voz interior. Seu “advogado de defesa exige que Beckert seja entregue para a justiça, mas a massa quer que ele seja executado ali mesmo, o que acabaria acontecendo se a polícia não conseguisse descobrir o local do julgamento. O filme termina com o Estado julgando Beckert e as mães das crianças assassinadas lamentando que, qualquer que seja o veredicto, isso não trará as crianças de volta. Ou seja, como diz o próprio Lang  “A morte não é uma solução”.

Watch Fritz Lang's 'M' with an original score | The Concord Insider
O assassino em ação…

O filme é muito inquietante, pois o clima de perseguição ao assassino nos lembra um pouco o antissemitismo. Até a marca M lembra as estrelas de Davi amarelas que os nazistas colocavam nos judeus para marcá-los, mesmo que o filme tenha sido feito em 1931, dois anos antes dos nazistas assumirem o poder. Sabemos que o antissemitismo na Europa não é uma exclusividade nazista e ele já acontecia muito antes de Hitler chegar à chancelaria. Inquietante, também, são as afirmações de Beckert que atribuem seu impulso assassino a algo que o manipula, que o instiga a matar. Seria uma alusão de Lang aos tempos violentos da Republica de Weimar? Uma república combalida, em 1931, pela crise de 1929, e que mostrava todo um exército de mendigos à serviço do crime na caça ao assassino.

The Mark of M | The Current | The Criterion Collection
Encontrado por um mendigo cego…

Fica uma curiosidade aqui. O fanfarrão inspetor Lohmann, que vemos em “O Testamento do Dr. Mabuse”, já dava o ar de sua graça em “M”, também interpretado por Otto Wernicke. Será Lohmann que irá pressionar um dos punguistas que invadiram o prédio de departamentos e vai conseguir a informação de onde Beckert está.

Fritz Lang e o horror das multidões (Parte 2) – M, o Vampiro de ...
Marcado e perseguido…

Dessa forma, “M, O Vampiro de Düsseldorf” é um filme de Lang que mais uma vez dialoga com os dias turbulentos de Weimar. Uma população que está com os nervos à flor da pele, em tempos de severas dificuldades econômicas e uma referência ao antissemitismo. Vale a pena dar uma olhada na película completa legendada em português abaixo.

https://www.youtube.com/watch?v=r9RLbwkVPoA