Batata Movies – O Filme Da Minha Vida. Reificando O Singelo.

                Cartaz do Filme

Selton Mello está de volta ao cinema, assinando a direção. Depois do bom “O Palhaço”, o ator traz “O Filme da Minha Vida”, onde ele assina o roteiro, baseado num romance do autor chileno Antônio Skármeta, conhecido no cinema por escrever obras do naipe de um “O Carteiro e o Poeta”. E, dessa vez, Mello caprichou, pois ele conseguiu reunir num filme talentos da magnitude de um Vincent Cassel e um Rolando Boldrin. Isso sem falar da boa revelação de ator que foi Johnny Massaro. Mello conseguiu colocar no cinema uma história muito simples de um rapaz de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul de uma forma tão soberba que podemos dizer que houve uma reificação, não no sentido pejorativo do termo, onde se elege algo e se cristaliza isso, tornando algo excessivamente solene e imutável, mas sim uma reificação onde tudo na vida, por mais simples que seja, pode assumir uma dimensão gloriosa.

Tony. Um rapaz com desejos, aspirações e dores

Vemos aqui a história do jovem Tony (interpretado por Massaro), o tal menino de vida simples que admirava enormemente seu pai Nicolas (interpretado por Cassel, um francês que era um grande exemplo para o filho). Um belo dia, Tony já está crescido e precisa se retirar da cidade para estudar para obter a profissão de professor. Quando ele retorna, descobre que o pai misteriosamente voltou para a França, sem deixar vestígios. O rapaz, então com 29 anos, leva a vida de professor, interage com sua mãe e o amigo de seu pai, Paco (interpretado por Mello), segue em seus flertes com a amiga Luna (interpretada por Bruna Linzmeyer) e, lá no fundo, sente uma falta enorme de seu pai. A única coisa que alivia essa sua saudade é a paixão incontrolável pelo cinema e a vontade de frequentar o Cine Roxy, na cidade vizinha. Será exatamente nesse cinema que a vida do Tony sofrerá uma reviravolta. Mas chega de spoilers por aqui.

                Um paizão perdido…

Essa é uma história que cativa o espectador de forma imediata. Todos os elementos com os quais qualquer pessoa se identifica estão lá: o primeiro amor, a primeira vez, a afeição filial, o sofrimento da ausência. É impossível a gente não se encaixar num desses elementos. Mas Mello conseguiu fazer isso de um jeito muito singelo, sem explosões emocionais mais carregadas. Tony sofria, mas ele não transparecia isso, exceto num momento em que ele toma uma atitude mais destemperada. Por mais artificial que isso possa parecer, a coisa não ficou muito pronunciada graças à boa atuação de Johnny Massaro, que conseguiu ser suave em todo o tempo, mas também usou doses comportadas de dramaticidade nos momentos certos. Sua cara ao sair da salinha de cinema maravilhado com o filme que acabou de assistir toca no fundo do coração de qualquer cinéfilo. Mello também atuou muito bem. Sua pouca idade para o papel foi compensada por uma barba estrategicamente inserida e pela interpretação perfeita de um homem rude e rústico, convencendo bastante. Foi uma pena que Rolando Boldrin tenha aparecido pouco. Teria sido muito legal se a gente tivesse tido mais oportunidades de apreciar seu talento artístico. Ver Skármeta, o autor do livro que deu origem ao filme, também é digno de nota. Mas a grande estrela do filme, sem a menor sombra de dúvida, foi Vincent Cassel. Falando um português perfeito, apesar do sotaque francês obrigatório para o papel, Cassel foi grandioso como o verdadeiro paizão, mas foi além como o pai arrependido que deixa o filho para trás. Ele foi, assim como Massaro, de uma suavidade incrível na sua interpretação.

                                 Gurias sedutoras…

Outra coisa que muito chamou a atenção foi o uso de closes. Esse é um elemento pouco explorado hoje em dia de forma tão expressiva. E é legal ver Mello resgatar isso, cujos filmes de Walter Hugo Khouri são o maior exemplo no Brasil. Num filme de poucas explosões emocionais e altamente singelo, os closes e sua expressividade se sobressaíam bastante.

Selton Mello muito bem, envelhecido, xucro e soturno…

Assim, “O Filme da Minha Vida” é mais uma grata surpresa de nosso cinema e a constatação de que Mello deu um passo à frente em seu talento como diretor, escritor e realizador de filmes. Ele consegue transformar o mais singelo numa história em que todos nós nos prendemos e nos identificamos, além de ter conseguido um baita de um elenco, com atores muito expressivos, principalmente em seus closes. E tudo isso sem explosões emocionais mais profundas. Vale a pena prestigiar essa pequena joia de nosso cinema.

 

Batata Movies – Alien Covenant. Criadores E Criaturas.

                                  Cartaz do Filme

E “Alien Covenant” passou nos cinemas. Por que esse filme tem uma relativa importância? Porque ele vai fazer uma ponte entre a franquia Alien e o filme “Prometheus”, ambos saídos das mãos de Ridley Scott. E que tinha um grande atrativo afora o monstrengo: a presença de Michael Fassbender, novamente interpretando o androide David, de “Prometheus”.

                       David, o robô perfeito…

O enredo do filme não foge muito dos demais. Uma nave espacial de nome Covenant viajando para estabelecer colônias em planetas distantes. E aí, essa nave encontra um planeta aparentemente habitável que parece ser um verdadeiro paraíso. Mas aí ele é cheio de bichinhos mortais. E então os tripulantes da nave espacial colonizadora saem de uma ficção científica um tanto promissora para uma mistura de horror e suspense que não é tão promissor assim. A virtude desse filme talvez esteja no fato de que ele é uma continuação de “Prometheus”, um filme que tem um pouco mais de conteúdo que alguns filmes da franquia Alien. E, principalmente, por causa de Michael Fassbender, que (alerta de spoiler) faz dois personagens: os androides Walter, que vem com a Covenant e David, que está no planeta que a nave chega. Walter é um robô menos desenvolvido que David, já que este segundo era tão avançado e chegava tão perto dos humanos que incomodou seus criadores, que acharam melhor fazer versões robóticas menos avançadas, das quais Walter fazia parte. Fassbender destilou todo o seu talento nesses dois personagens e sua interpretação ficou a anos-luz dos demais atores da película. Confesso que fui ao cinema somente para vê-lo, ao bom estilo dos filmes cuja principal atração é o ator que você admira.

              Um planeta aparentemente idílico…

Algumas críticas que o filme fez foram no sentido de que, assim como em “Prometheus”, os cientistas de “Alien Covenant” foram um pouco descuidados ao interagir com a superfície do planeta a ser explorado e com seu meio ambiente. Creio que essa crítica em “Prometheus” até seja válida, mas se a mesma coisa foi repetida em “Covenant”,aí a gente tenha que refletir por que. Talvez o diretor tenha querido fazer uma galhofa com a coisa mesmo, talvez ele tenha querido fazer uma crítica à arrogância do possibilismo humano. De qualquer forma, uma das personagens do filme, Daniels, era a que tinha uma posição mais cautelosa entre todos da equipe. Muitas críticas foram ouvidas também com relação a esta personagem. Mas creio que elas tenham sido um pouco exageradas. Comparar Daniels com Ripley é um pouco de forçação de barra a meu ver. A personagem de Covenant passou por um trauma muito grande ao ver o marido incinerado, o que passou uma sensação de fragilidade imensa da personagem ao início da película, algo que, por exemplo, não aconteceu com Ripley. Mas ela era a voz da razão na nave, e ainda mostrou compreensão quando viu outros personagens reconhecerem seus erros. E foi ela que peitou o monstrão ao fim do filme, numa cena de ação com situações bem absurdas. A personagem de Ripley teve enorme importância, pois foi um ícone do empoderamento feminino em plena década de 80, atingindo grande relevância. E fazer uma comparação desse naipe com a personagem de Daniels chega até a ser uma covardia com esta última, não podendo servir como parâmetro.

             … tem um passado apocalíptico

Mas a grande questão do filme ainda reside na questão do criador e da criatura. Isso já aparece no início do filme na grande sequência do diálogo de Weyland (o dono da empresa que empreende a colonização fora da Terra) e David. Nessa conversa, podemos atestar como a criatura vê o criador e vice-versa, quais são as virtudes e limitações que um tem com relação ao outro. E de como uma criatura quer também se transformar em criador, repetindo os desejos e movimentos de quem a criou. Tudo isso faz o filme ter uma grande virtude que suplanta o terror de um monstro que despedaça corpos humanos. Ou seja, há um debate reflexivo interessante implícito nas entrelinhas desse filme de horror com verniz de ficção científica.

                      Filhotinho…

Assim, se “Alien Covenant” não chega a ser um grande filme, ele tem sua importância por ser a ponte entre “Prometheus” e a franquia Alien, faz um interessante debate sobre a natureza do que é ser criador e ser criatura e, principalmente, tem Michael Fassbender colocando todo o elenco do filme no bolso. Vale a pena dar uma conferida.

https://www.youtube.com/watch?v=vHvR44EO2nk

Batata Movies – Patton, Rebelde Ou Herói? Made In Usa.

                     Cartaz do Filme

Dia desses eu estava fuçando meus alfarrábios quando encontrei uma pequena relíquia: o DVD do filme “Patton, Rebelde ou Herói”, que ganhou sete oscars em 1970 (melhor filme, ator para George C. Scott, diretor para Frank J. Schaffner, roteiro original para Francis Ford Coppola e Edmund H. North, direção de arte, som, montagem). E por que esse filme é uma relíquia? Porque ele consagrou a atuação de um nome muito conhecido entre os atores de Hollywood: George C. Scott. Curiosamente, o ator não aceitou o prêmio, alegando que não se sentia à altura dos outros concorrentes. De qualquer forma, não é essa a impressão ao assistirmos “Patton”.

                                Um general turrão

Mas, do que consiste a história? Esse é um filme de guerra e vemos aqui a trajetória do general George Patton (interpretado por Scott), um militar casca grossíssima que lutou no front africano durante a Segunda Guerra Mundial. Ele era o único general aliado realmente respeitado pelos nazistas, que até colocaram um oficial para pesquisar sua vida. Patton tinha como lema sempre atacar e jamais recuar. Extremamente carismático, ele tratava os soldados feridos como filhos, chegando a afagá-los. Mas era extremamente rude com soldados não feridos que alegavam distúrbios psicológicos para estarem na enfermaria. Na visão do severo general, eles eram covardes que deveriam ir direto para a linha de frente, o que causou alguns problemas com o alto comando do exército americano, já que Patton chegou a espancar um soldado “covarde”. Nosso general também era amante de guerras antigas, como as guerras púnicas entre romanos e cartagineses, ou a guerra grega do Peloponeso entre Esparta e Atenas, acreditando piamente que tinha participado dessas batalhas em vidas passadas. Patton odiava o século vinte e a tecnologia, que tiravam o “glamour” da guerra e a luta pela honra. Derrotou Rommel, um grande general nazista, pois havia estudado suas táticas de batalha e lido seus livros. Só que o general tinha defeitos muito graves. Um deles era o de ser um tremendo “língua de trapo”, sendo muito desbocado em público e falando o que pensava na cara de quem quisesse, ou seja, nota zero em diplomacia, o que era um problema para os aliados, que tinham que costurar tortuosas alianças com países como a União Soviética, por exemplo. Outro grande defeito estava no fato de que o homem era muito vaidoso, chegando ao ponto de colocar colegas militares próximos em batalhas suicidas somente para ele colher os louros da vitória sozinho depois.

Ele acreditava estar em batalhas de vidas passadas…

Além da atuação magnífica de Scott, não podemos deixar de falar da atuação do ator Karl Malden no papel do general Omar Bradley, amigo mais próximo de Patton, o que não o impediu de passar por um monte de sinucas de bico armadas pelo protagonista, o que dava aos dois uma relação um tanto tempestuosa. O ator foi muito bem e não seria surpresa um Oscar de ator coadjuvante para ele, o que infelizmente não aconteceu.

O filme também prima por excelentes cenas de guerra, com mortes de soldados muito bem coreografadas e o uso de tanques e muitas, muitas explosões, dando um grande tom de realidade para filmes feitos à época. Foi uma pena esse filme não ter ganhado o Oscar de efeitos visuais, categoria para a qual também tinha sido nomeado (o filme recebeu dez nomeações ao todo).

                O verdadeiro Patton

Assim, “Patton” é uma pequena relíquia do passado que deve ser rememorada, pois consagrou o talento de George C. Scott, trouxe a boa atuação de Karl Malden e foi um filme de guerra com cenas de bom realismo. Vale a pena procurar por aí. Veja, abaixo, o discurso de Patton ao início do filme.

https://www.youtube.com/watch?v=uDdi0h-dXEk

Batata Movies – Eva Não dorme. Cadáver E Fragmentos.

Cartaz do Filme

Uma co-produção França, Argentina e Espanha paira em nossas telonas. “Eva Não Dorme” é um filme que busca desmistificar um mito. E quanto mais ele tanta fazê-lo, mais o mito fica forte. É a história de um corpo, muitas vezes amado e violado, que passou décadas a fio numa jornada de martírio até encontrar o seu merecido descanso eterno.

Embalsamando um corpo

E qual é o corpo em questão? O leitor mais atento já deve ter verificado no título que se trata de Eva Perón, uma espécie de mãe dos menos favorecidos na Argentina e verdadeiro símbolo nacional. Até hoje, quando passeamos nas ruas de Buenos Aires, sentimos a sua presença muito forte e viva, nos prédios, bancas de jornal e em qualquer lugar que você vá, sobretudo no cemitério da Recoleta, ponto turístico e cuja sepultura é muito visitada. O filme é muito bem dividido em três atos. O primeiro mostra a morte de Evita, o funeral e o embalsamamento. Se num primeiro momento, há uma enorme morbidez envolvida, a coisa descamba posteriormente para um certo momento de placidez, sobretudo quando o médico responsável pela preservação do corpo da ex-primeira dama modela o rosto do cadáver a seu bel-prazer, retirando-lhe a tensão e restaurando parcialmente seu sorriso. O segundo ato mostra um coronel trasladando o corpo para a Europa, numa operação altamente secreta e que conta com a ajuda de um soldado novato que não sabe o que o caminhão em que estão transporta. Aqui há todo um duelo psicológico entre os dois personagens que atinge as raias do altamente angustiante. Já a terceira história avança ainda mais no tempo e mostra o sequestro de um general por um grupo guerrilheiro de esquerda que pretende repatriar o corpo de Evita, obrigando o general a dar informações de como recuperar o cadáver sob a pena de matar o militar. As tentativas mal sucedidas do general em obter informações também são muito tensas.

Cenários escuros e claustrofóbicos

A escolha em se dividir o filme em três pequenas histórias fragmenta a narrativa, tirando o espectador de sua zona de conforto. Mas o filme tem uma característica ainda mais forte. Ele é altamente soturno e claustrofóbico, tal como se todo o sofrimento infringido ao cadáver jogasse uma espécie de maldição sobre todos. Os cenários das três histórias são apertados e escuros (uma sala onde ocorre o embalsamamento, o interior da caçamba de um caminhão, uma prisão num aparelho de um grupo guerrilheiro). As frontes dos personagens são fantasmagóricas, onde cada história (talvez com exceção da primeira) exibe uma tensão crescente que termina numa explosão de violência. A escuridão da tela se irmana com a escuridão da sala de cinema e traz para o espectador uma sensação de sufocamento. Não dá para ficar indiferente a essa película.

Denis Lavant, o melhor do filme

E os atores? Gael Garcia Bernal, o grande medalhão do elenco apenas “passeia” no início e fim do filme, aparecendo pouquíssimo e, talvez, demasiadamente jovem para interpretar um militar golpista. Daniel Fanego, o general Aramburu, sequestrado pelos guerrilheiros, surpreendeu colocando frieza num personagem que estava numa situação desesperadora à beira da morte. Mas o grande nome do filme, sem a menor sombra de dúvida, foi Denis Lavant, interpretando o coronel da segunda história. O homem arrasou com sua interpretação de um militar rude e grosseiro, um cara que dava medo, principalmente por sua face altamente rugosa e cavernosa que a iluminação muito débil hipervalorizou em tons de claro e escuro assustadores. Nem lembrava o personagem (ou personagens) que interpretou no filme super doido Holy Motors. Sua atuação já vale o preço do ingresso.

Boas imagens de arquivo

Assim, “Eva Não Dorme” é um filme que, apesar de falar um pouco do que aconteceu com o corpo de Evita, e de acabar reforçando o seu mito ao invés de desmistificá-lo (muitas imagens de arquivo e sons de seus discursos são usados), traz outros elementos, como a construção das três histórias num clima altamente angustiante e sufocante, e ainda traz a soberba atuação de Denis Lavant como a cereja do bolo. Vale a pena dar uma conferida neste.

Batata Movies – Era o Hotel Cambridge. Cosmos No Microcosmos.

Cartaz do Filme

Um filme brasileiro, dirigido por Eliane Caffé, resistiu bravamente em nossas telonas. Confesso que, pela vida atribulada de todos os dias, não estava tendo uma oportunidade de assistir “Era o Hotel Cambridge”. Mas ele resistiu bravamente no circuito e permaneceu nas salas do Estação Botafogo até este humilde articulista ter condições de assisti-lo. E a resistência do filme em permanecer nas telonas se assemelha à resistência que também vemos no filme. Uma resistência que mostra as mazelas da desigualdade social em nosso país.

José Dummont, grande destaque do filme

Vemos aqui a saga de um grupo de sem-teto que ocupou um prédio em plena cidade de São Paulo em busca de moradia. Nesse grupo, temos de tudo: desabrigados, retirantes nordestinos, refugiados estrangeiros vindos da Palestina e do Congo, etc. Todos eles vivem o dia a dia de lutar contra as más condições de infraestrutura de um prédio outrora abandonado e, ao mesmo tempo encarar as ameaças de despejo e reintegração de posse determinadas pela justiça e feitas de forma truculenta pela polícia, num reflexo das disparidades que acontecem no Brasil: de um lado, temos donos de grandes imóveis que os mantêm abandonados, em estado degradante, cheios de lixo; e, de outro lado, temos toda uma multidão de pessoas que não tem para onde ir, não tem condições de bancar um aluguel, muito menos comprar um imóvel, cujos preços extrapolam a realidade de qualquer brasileiro médio (nem digo na linha de pobreza!) e que precisam, desesperadamente, de um lugar para morar. Agrava-se a isso a situação de imigrantes estrangeiros que fogem da guerra em seus países e que não tem qualquer ajuda do governo por aqui, governo esse que, diga-se de passagem, não atende nem os brasileiros e resolve os problemas sociais como se fossem caso de polícia, como dizia o antigo politico da República Velha Washington Luís.

Sem-teto: grande diversidade

O filme conta com dois grandes trunfos; Temos a grande presença de Suely Franco, que faz uma idosa meio maluquinha, mas muito amorosa e atenciosa. A atriz conseguiu transbordar simpatia com a personagem. Mas o grande nome do filme é o ultraversátil e polivalente José Dummont, o cara! Ele fazia um ator sonhador, que comandava um grupo de teatro no prédio ocupado, e roubava a ação com toda a sua grandiosidade quando aparecia na tela. Sem a menor sombra de dúvida, a película perderia muito sem a presença desses magníficos atores que a grande mídia parece não dar muita bola, mas que ainda têm muito talento para desfilar em filmes, peças, novelas, etc.

Suely Franco (esquerda). Outro grande trunfo da película

O filme tem o grande mérito de alternar as filmagens da história com cenas reais de ações de despejo promovidas pela polícia, numa busca de se entrelaçar a realidade com a ficção, num filme que nada tem a ver com a ficção, talvez somente uma liberdade poética que todo cinema tem.

A diretora Eliane Caffé

Assim, “Era o Hotel Cambridge” é mais um filme essencial, que denuncia uma situação social grave e faz um convite à reflexão. Ou seja, além dos problemas de desigualdade que já existem por aqui, a coisa se complica mais com a questão de refugiados políticos estrangeiros, pois eles engrossam a fileira de miseráveis que existe em nosso país e que são tratados pelo poder público como lixos que devem ser varridos para debaixo do tapete. Um filme essencial que resistiu bravamente no circuitão, assim como os inúmeros sem-teto do país que lutam pela dignidade mínima da moradia. Não deixe de assistir, agora no home vídeo.

Batata Movies – Crônica da Demolição. Construir E Destruir.

                                  Cartaz do Filme

Um bom documentário brasileiro em nossas telas. “Crônica da Demolição”, de Eduardo Ades, fala de um tema que é caro a muitas pessoas: o espaço urbano carioca. Mas vai falar desse espaço urbano de uma perspectiva nada romântica ou animadora. Aqui, o espaço urbano é tratado não como preservador de uma memória, mas sim o contrário: de como a nossa memória é sistematicamente apagada e simplesmente enterramos o nosso passado em escombros que são literalmente jogados no lixo, ou vendidos a preços de banana.

                             O Palácio Monroe

O apagamento da memória em questão se refere à destruição do Palácio Monroe, a sede do senado federal quando o Rio de Janeiro era a capital do país e, com a transferência da capital para Brasília, ficou ocioso. Durante o governo do presidente Ernesto Geisel, ou seja, em plena ditadura militar, decidiu-se demolir o palácio. A alegação inicial era de que a demolição era necessária para se realizar a obra do metrô, mas os trilhos passaram ao largo do terreno onde estava o palácio. Falou-se muito em especulação imobiliária, pois como o Rio de Janeiro é uma cidade espremida entre o mar e as montanhas, o preço dos terrenos aqui é muito alto. Mas nada de muito importante foi construído no lugar do palácio. Temos apenas um chafariz tristonho por lá e sem água, além de um estacionamento subterrâneo que só foi construído muitos anos depois da demolição. Assim, ficou a incógnita: por que o palácio foi destruído? Dizia-se, também, que, por ser uma obra eclética e antiga, ele era visto como um verdadeiro “trambolho” que tornava a cidade mais feia, indo na contramão de adeptos de uma arquitetura mais moderna como Le Corbusier e Lúcio Costa. Vemos aqui como também houve o discurso do embate entre a tradição e a modernidade na questão da demolição do palácio. De qualquer forma, fica bem evidente que a destruição do palácio foi uma decisão tomada de cima para baixo, sem qualquer preocupação com a preservação e o patrimônio. O próprio palácio, ao ser demolido, estava abandonado e empoeirado, numa mostra do descaso total com a memória de nosso país. Todas essas ideias são exibidas no documentário por vários especialistas em arquitetura e planejamento urbano, recheadas com muitas cenas de arquivo, que nos ajudavam a ter uma noção exata do que aconteceu do ponto de vista factual.

                                    A demolição

Mas o documentarista não optou por fazer um filme voltado a uma opinião própria e ele deu voz a pontos de vista contra e a favor da demolição. Talvez a maior prova disso (alerta de “spoiler”) seja a imagem final do documentário, onde vemos o espaço do antigo palácio tomado por um gramado cheio de pombos comendo milho, que foi estrategicamente espalhado formando um grande ponto de interrogação, espelhando a verdadeira incógnita por trás dos verdadeiros motivos pelos quais o palácio foi demolido.

                                 Um chafariz seco…

Assim, “Crônica da Demolição” é um documentário altamente recomendável para quem gosta da História da Cidade do Rio de Janeiro e de como seu espaço urbano e tratado ao longo do tempo. É um filme que aborda a delicada temática da preservação da memória, do embate entre a tradição e a modernidade e de como o autoritarismo latente de nossas autoridades simplesmente faz o que quer, pouco se importando com a opinião pública. Um filme muito importante, ainda mais para os tempos autoritários pelos quais nós temos passado.

Batata Movies – Clash. Do Camburão.

                  Cartaz do Filme

Um filme egípcio que é uma verdadeira porrada na cara passou em nossas telonas. “Clash” é um filme que fala de como a condição humana é testada até todos os seus limites. E de como o ser humano, ao fim das contas, tem apenas a si mesmo, por maior que sejam as discordâncias e adversidades entre os grupos sociais.

Qual é o cenário da história? Estamos aqui na famosa “Primavera Árabe”, quando vários países dessa etnia se levantaram contra seus governos autoritários. O maior ícone desse movimento é a sangrenta Guerra na Síria, que continua em curso e já matou milhares de pessoas, inclusive com ataques de armas químicas, que chegam a beirar o corriqueiro. Mas um dos primeiros países onde aconteceram as revoltas foi no Egito, que teve um longo governo militar. Depois de muitos levantes, o governo militar foi substituído por um governo civil liderado por um partido muçulmano. Dois anos depois, os militares retomaram o poder, não sem haver muita turbulência política, com o Egito dividido entre partidários da Irmandade Muçulmana, partido que foi demovido do poder, e partidários dos militares. O momento em que aconteceu esse golpe foi marcado por manifestações de rua de ambos os lados, regados a muita violência policial e um clima de guerra civil no país. É nesse contexto em que se passa o filme, cujo cenário é um… camburão de um caminhão da polícia (!). O filme começa com dois jornalistas sendo presos no tal camburão, que estava vazio. Mas aos poucos, o camburão vai enchendo. Partidários dos militares (!!) também são enfiados lá, confundidos com outra manifestação. Mais tarde, são os partidários da Irmandade Muçulmana que são presos dentro do caminhão. E aí temos um microcosmos da convulsão social do Egito dentro daquele camburão, com dois grupos que se odeiam vivendo dentro de um espaço ínfimo e aprendendo a se relacionar sem se matar. No início, a impressão é a de que haveria um verdadeiro massacre, mas todo mundo se acalmou quando a polícia ameaçou matar todo mundo (!!!). Situação bem pesada.

               Situações para lá de escabrosas

Esse é o tipo do filme que prende muito a atenção, dada a peculiaridade da situação e a denúncia que o filme faz do contexto da vida egípcia dos últimos anos, algo que beira o absurdo. Se ficamos escandalizados com o que acontece nas manifestações aqui no Brasil, no Egito a coisa é bem mais violenta, com direito a policiais alvejados por tiros de metralhadora de manifestantes ou a chuva de pedras de dezenas de manifestantes em viadutos, onde os morteiros também são muito comuns. Mas isso era o que acontecia fora do camburão. O mais importante no filme era justamente a situação de todos que estavam dentro do caminhão. A animosidade violenta do início foi dando lugar, aos poucos, a um sentimento de leve aproximação que depois chegou até a uma amizade, tudo isso ocorrendo em virtude da adversidade e opressão que assolava igualmente a todos. E, para sobreviver a tal pressão, a única saída ali era a solidariedade entre as pessoas, independentemente de qual segmento politico elas pertenciam. Um filme muito importante para se passar por aqui, que está num contexto de animosidade nem tão semelhante quanto ao do Egito, mas nem por isso menos grave.

            Diferentes grupos num microcosmos

Esse, também, é um filme que levanta uma dúvida e um medo com relação ao futuro de nosso país: até que ponto aquele clima de animosidade e de guerra civil que víamos na película pode se reproduzir por aqui? Ou será que isso já não está acontecendo e não é noticiado, dada a extensão do Brasil, e as inúmeras situações de conflito social? Vemos a violência nas ruas quando há manifestações? Mas, e nas comunidades urbanas menos favorecidas, onde o poder público (e a imprensa) não entram? Ou então, a violência no campo, que temos parcas notícias? Para onde toda essa convulsão social nos levará?

                       Muita violência nas ruas

Assim, “Clash” é um filme obrigatório, pois fala de violência, repressão, solidariedade. Um filme que nos faz refletir sobre o futuro que construímos para nós mesmos quando a intolerância e o autoritarismo imperam. Um filme que nos obriga a ficar frente a frente com problemas que não queremos encarar. Não deixe de ver.

 

Batata Movies – Neve Negra. Drama Psicológico Com Verniz De Suspense.

Cartaz do filme

Ricardo Darín apareceu novamente no cinema argentino. Entretanto, a gente acaba lamentando aqui a sua pouca presença em sua nova película, mesmo que seu nome puxe os créditos. Uma pena, pois “Neve Negra” se revela um bom filme de drama psicológico, com uma pitada de suspense, embora o filme tenha sido vendido da forma completamente oposta.

Vemos aqui a história de Salvador (interpretado por Darín), um homem que vive recluso nas gélidas florestas da Patagônia. Ele vive de sua caça, pois está a quilômetros e quilômetros de distância de qualquer coisa civilizada. Salvador tem um irmão, Marcos (interpretado por Leonardo Sbaraglia), que vem a sua cabana com a esposa Laura (interpretada por Laia Costa). O assunto que levam os dois à casa de Salvador é a venda da propriedade da família e a consequente retirada de Salvador do terreno. Mas isso não é o único motivo de conflito entre os irmãos. O irmão caçula havia sido morto no passado por um tiro numa saída para a caça e a culpa de tudo ficou atribuída a Salvador, o que teria sido um “acidente”. Mas essa história estava muito mal contada e, aos poucos vamos descobrindo que a verdade é muito diferente do que foi mostrado no início da película.

Salvador, um verdadeiro eremita

Como a história é demasiadamente cativante, vou parar aqui com os “spoilers”. Além do roteiro bem escrito, a gente também pode mencionar uma primorosa montagem, pois a tensão do tempo presente no filme precisa ser alimentada por uma sucessão de “flash-backs” que devem entrar nos momentos certos, numa constante interação entre presente e passado. Isso tem que ser feito de forma bem engenhosa para não criar confusão na mente do espectador, assim como a narrativa não pode ficar mais concentrada no presente ou no passado, precisando ficar bem distribuída, como aconteceu no filme. Outra virtude da película foi o clima altamente soturno que permeia toda a história, que foi vendida mais como um filme de suspense. A fotografia e a música da película sufocam o espectador com essa impressão de suspense e o clima pesado não arreda o pé da história um instante sequer. Mas creio que a principal característica do filme é a do drama psicológico, pois o passado dos irmãos foi manchado por violentos traumas, onde o isolamento dos filhos feito por um pai opressor provoca uma sucessão de pequenas tragédias que culminam na morte do filho caçula.

Marcos terá que convencer o irmão a sair da propriedade da família

Com relação aos personagens, essa é uma história mais centrada no casal Marcos e Laura. Salvador fica numa posição mais periférica e sua natureza rude e introspectiva causava uma má impressão inicial em seu personagem. Sua pouca participação no filme foi outro problema, pois não deu voz ao personagem ao longo da trama e tempo para desenvolver sua história, o que é um desperdício em se tratando de Darín e de um filme onde ele encabeça o elenco nos créditos. Ficou uma má impressão de que o ator ficou muito mal aproveitado.

Uma coisa que ficou um pouco complicada foi o desfecho, onde apareceu uma situação meio “Mandrake”, ou seja, mesmo que o cinema possa lançar mão de toda uma licença poética, a solução de todo mistério e de todo o passado nebuloso veio de forma extremamente fácil, já ao apagar das luzes da história. Teria sido muito mais saboroso se esse mistério tivesse sido desvelado aos poucos (e até o foi), mas sem um desfecho tão abrupto e pouco plausível. De qualquer forma, a história de “Neve Negra” ainda pode ser considerada muito boa e com notáveis reviravoltas.

Laura. Participação importante na trama

Assim, vale muito a pena ver Darín novamente atuando, embora tenha sido muito pouco para quem é fã de verdade desse grande ator argentino. Que bom que, pelo menos as atuações de Leonardo Sbaraglia e Laia Costa também tenham sido boas, já que o filme foi mais centrado nesses atores. Apesar de algumas situações inusitadas, “Neve Negra” é um bom filme de drama psicológico, regado a um clima soturno de suspense. Vale muito a pena dar uma conferida quando sair nas locadoras.