Batata Movies – O Paraíso Deve Ser Aqui. Rodando O Mundo.

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Cartaz do Filme

Mais um filme que concorreu ao posto de finalista entre os candidatos ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. “O Paraíso Deve Ser Aqui” é o representante da Palestina e traz a questão palestina sob a ótica do humor. Escrito, dirigido e estrelado por Elia Suleiman, o filme tem sido comparado às películas de Jacques Tati e Charlie Chaplin, já que Suleiman nos traz situações engraçadas e seu personagem é mudo por durante quase toda a película. Para podermos falar desse filme, vamos lançar mão de spoilers.

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Um palestino procurando o seu lugar no mundo…

Do que se trata o plot? Suleiman vive em Nazaré e tem um relacionamento um tanto instável com o seu país. Um dos vizinhos se mete com o limoeiro de outro, a vizinhança não interage muito bem, a polícia israelense achaca os palestinos e por aí vai. Cansado do que vê no seu dia-a-dia em seu país, Suleiman decide sair de lá e tentar a vida, primeiro em Paris, depois em Nova York. O problema é que as metrópoles desenvolvidas também têm seus vícios. Paris está tomada pelo medo do terrorismo, com tanques andando pelas ruas e vários policiais perseguindo velhinhas com bolsas no metrô. Já nos Estados Unidos, o medo do terrorismo também se faz presente, mas a sociedade americana é retratada de forma muito mais irônica, com direito a zoação até com o Actor’s Studio. Mas uma coisa é certa: nosso Suleiman não consegue apoio para fazer seu filme nas duas cidades. Em Paris, seu projeto é delicadamente rejeitado pois ele não se encaixa nos estereótipos da questão palestina pela ótica européia ocidental, ou seja, uma comédia que poderia ser feita na Palestina ou em qualquer outro lugar (como vemos ironicamente no filme). Já em Nova York, a produtora de filmes nem dá confiança para nosso diretor, mesmo com o pistolão de Gael Garcia Bernal (que faz uma ponta na película). Sem perspectivas de encontrar um outro local no mundo para viver, resta a Suleiman retornar à Palestina.

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Medo do terrorismo na França é um personagem…

A estratégia da comédia para abordar a questão palestina não é novidade na obra de Suleiman, que já havia lançado mão do ato de fazer rir no ótimo “Intervenção Divina”, de 2002, que segue uma linha bem semelhante, onde o personagem protagonista também nada diz e fica estupefato com a verdadeira ópera do absurdo, onde a arte imita a vida. O medo do terrorismo nas duas grandes metrópoles ocidentais, assim como o choque cultural, seja em Paris, seja em Nova York, são as grandes vedetes do filme. Se o palestino estranha os absurdos do mundo ocidental, o estranhamento do mundo ocidental para com o palestino é também motivo de risos, sobretudo no caso do taxista que leva Suleiman em seu carro e fica maravilhado por ver um palestino pela primeira vez na vida e simpatizar com a causa. Dessa forma, “O Paraíso Deve Estar Aqui” é um filme onde o humorismo se mostra uma arma muito eficaz para chamar a atenção para a causa palestina, onde o estranhamento cultural é o combustível para a comédia. Foi uma boa aposta da Palestina para os finalistas ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e é um programa imperdível

Batata Movies (Especial Oscar 2020) – O Farol. Uma Experiência Expressionista Contemporânea.

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Cartaz do Filme

Quando a gente vê o trailer de “O Farol”, já dá para perceber de que se trata de uma coisa diferente. Um filme em preto e branco com Willem Dafoe e Robert Pattinson isolados numa ilha, com o primeiro aos gritos com o segundo, que responde serenamente. A curiosidade logo vem à tona. E, ai, o filme estréia e a gente vai lá conferir. Essa película concorreu ao Oscar de Melhor Fotografia, perdendo para o filme “1917”. Para podermos falar sobre essa película, vamos lançar mão de spoilers.

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Dois homens e um farol…

O plot é muito simples. Thomas Wake (interpretado por Dafoe) e seu subordinado Thomas Howard (interpretado por Pattinson) tomam conta de um farol na costa da Nova Inglaterra no final do século XIX. As condições são extremamente adversas com uma tempestade que impede a vinda de uma embarcação para levá-los de volta ao continente, o que os obriga a viver sob um forte racionamento. É claro que eles vão pirar geral na batatinha a ponto de surtarem violentamente, o que será a ruína dos dois.

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Um pesado processo de enlouquecimento…

Falando dessa forma extremamente simplória, parece que o filme não tem a menor graça. Mas é no processo paulatino de loucura dos protagonistas que a coisa mostra a sua força. Se, em alguns momentos, vemos a coisa com uma certa graça e tons de comédia, na imensa maioria das vezes o desenrolar da insanidade é altamente tenso e destrutivo, agredindo o espectador com maestria pelo inusitado e até pelo escatológico. Mas a grande e grata surpresa desse filme é que ele resgata a boa tradição dos melhores filmes expressionistas alemães da década de 20. Senão vejamos. Do ponto de vista narrativo, temos violentas explosões de paroxismo onde os personagens não poupam o desespero. Se nos filmes expressionistas mudos não se havia a oportunidade de se trabalhar muito os diálogos, aqui a coisa foi muito bem trabalhada, com falas altamente rebuscadas e complexas, beirando o barroco, um estilo artístico que usava com maestria os duplos antagônicos, assim como o romantismo e o expressionismo.

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Filme mergulha fundo nos estados da alma, com direito a muito claro/escuro…

Os dois personagens, o patrão que oprime e o empregado oprimido são também a representação desses duplos que, esteticamente aparecem nos claros e escuros da fotografia preta e branca magistral da película, ambientada sempre em ambientes mais escuros do que claros, o que contribuiu para o clima soturno da coisa. Ainda, no expressionismo era corrente o uso de alucinações dos personagens para expressar estados da alma e externar sentimentos. Aqui isso é usado com muita força, principalmente nas alucinações de Howard com as fantasias sexuais com a sereia, assim como nos pesadelos dos personagens, no fato de um assumir a identidade do outro em alguns momentos e um culpar o outro acusando-o de cometer algo que ele próprio cometeu (por exemplo, Wake destrói o barco que poderia levar à fuga da ilha mas culpa Howard por isso). Todos esses momentos delirantes abordam os estados da alma e o subjetivo, ao bom estilo expressionista.

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Alucinações expressionistas…

Dessa forma, se “O Farol” provoca todo um estranhamento pelo agressivo inusitado sobre o espectador, por outro lado podemos dizer que essa película foi a melhor experiência expressionista bem à moda antiga que tivemos nos últimos anos. Tudo isso regado à uma atuação magistral de Dafoe e Pattinson, que roubam a cena, juntamente com a belíssima fotografia. Vale muito a pena dar uma conferida.

https://www.youtube.com/watch?v=aJoGdiyvdYs

Batata Movies (Especial Oscar 2020) – Jojo Rabbit. A Guerra Do Ponto De Vista Infantil.

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Cartaz do Filme

Mais um filmaço que concorreu ao Oscar. “Jojo Rabbit”de Taika Waititi, disputou seis estatuetas (Melhor Filme, Melhor Atriz Coadjuvante para Scarlett Johansson, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Figurino, Melhor Montagem e Melhor Direção de Arte ou Design de Produção). A película ganhou uma estatueta de Melhor Roteiro Adaptado. Esse filme é baseado no romance de Christine Leunens “Caging Skies” e é mais uma película que faz parte do rol interminável de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. Para podermos falar do filme, vamos lançar mão de spoilers aqui.

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Um menininho nazista e seu “amiguinho” imaginário…

O plot se passa na Alemanha, numa pequena cidade e numa época em que os nazistas já estão perdendo a guerra. Um menininho, Jojo (interpretado por Roman Griffin Davis) faz parte da juventude nazista e está muito antenado com a ideologia do partido, ao ponto de ter o próprio Adolf Hitler como amigo imaginário (interpretado de forma magistral pelo próprio Taika Waititi). Só que ele acaba sendo humilhado pelos nazistas quando se nega a matar um inocente coelhinho, o que lhe rendeu o apelido de Jojo Rabbit. Estimulado pelo seu Hitler imaginário, ele tenta recuperar a honra, e vai à toda para uma ação militar do grupo, se explodindo com uma granada. Ao se recuperar em casa, ele passa um tempo com sua mãe Rosie (interpretada por Scarlett Johansson) e descobre, aos poucos, que ela faz parte da resistência contra os nazistas e esconde uma garota judia em casa, Elsa (interpretada por Thomasin McKenzie). Os dois iniciam uma relação um tanto conturbada que, aos poucos, vai se tornando próxima, amigável e amável, à medida que os horrores da guerra vão destruindo a visão idílica de nazismo que o menininho tinha.

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Uma mãe que lutava contra o nazismo…

Esse é um filme que desperta vários sentimentos na gente. Inicialmente, rimos muito com as troças que a película faz com a ideologia nazista, mostrando como ela é completamente imbecil e sem sentido, tudo isso regado na visão das crianças que não conseguem enxergar toda a malignidade da coisa e levam tudo isso como se fosse participar de um grande clube ou uma colônia de férias. Mas, aos poucos, o filme vai ficando mais sério, onde o nazismo começa a mostrar sua verdadeira cara, Podemos ver isso na própria sequência do coelhinho onde o instrutor nazista, antes de ridicularizar Jojo, mata friamente o coelho quebrando-lhe o pescoço. Ou no momento em que todos passam a tratar Jojo como algo feio devido às suas cicatrizes no rosto em virtude da explosão. O próprio Hitler imaginário de Jojo num primeiro momento é infantilizado, mas com o passar do tempo, se torna o Hitler agressivo que todos conhecemos. Mas o grande trauma de Jojo acaba sendo o fato dele ver sua mãe enforcada na rua com outras pessoas que lutavam na guerra. Justamente sua mãe que era símbolo de tudo o que o nazismo repudiava. Mesmo com toda essa escalada de violência, a visão infantil com pitadas de humor consegue resistir por toda a película, o que ajuda o filme a fluir com uma certa suavidade, apesar de tudo.

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Uma amiguinha judia…

Temos um baita elenco aqui. Scarlett Johansson faz jus a mais uma indicação ao Oscar (ela foi também indicada a melhor atriz por “História de um Casamento” além de ter sido indicada para o Globo de Ouro por esse mesmo filme, nossa Viúva Negra está podendo muito ultimamente). Sua mãe Rosie, que faz de tudo para tirar o seu filho das garras da ideologia nazista, mostrando-lhe um mundo lúdico e buscando superar a perda do marido e da filha, está irretocável e deliciosa, mas foi uma disputa pesada com a vencedora Laura Dern em “História de um Casamento”. Ainda temos Rebel Wilson, na pele de Fraulein Rahm, fazendo um baita papel cômico e responsável, em boa parte, de mostrar como a ideologia nazista é estúpida. E, por fim, Sam Rockwell, que interpreta o Capitão Klezendorf, o responsável pelo acampamento da juventude nazista, e que deixa de forma bem clara que é homossexual, não compactuando em nada com a ideologia nazista, fazendo também uma boa participação cômica no filme (ele irá salvar Jojo e Elsa em mais de uma ocasião).

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Logo os horrores da guerra irão aparecer…

Dessa forma, “Jojo Rabbit” foi mais um grande filme que concorreu ao Oscar esse ano e merece toda a nossa atenção. Mais um filme de Segunda Guerra Mundial, mas que aborda um tema tão pesado quanto o nazismo e o genocídio, mas do leve ponto de vista da visão infantil, sem, entretanto, mascarar os horrores da guerra. Um filme imperdível.

Batata Séries – Jornada Nas Estrelas Como Um Produto Cultural De Sua Época.

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A crise dos mísseis, na década de 60. Medo de fim do mundo…

Nas últimas semanas, os trekkers de raiz assim como os fãs mais novos têm acompanhado com atenção a série Picard na Amazon. Quando vemos uma nova série de Jornada nas Estrelas, a comparação se torna inevitável com o que vimos nas séries mais antigas. Os mais antigos falam que há uma desvirtuação em Picard, que o espírito de Jornada nas Estrelas está completamente subvertido nas séries novas (também não podemos nos esquecer de Jornada nas Estrelas Discovery), etc. Os mais novos (ou menos exigentes) dizem que Jornada nas Estrelas precisa se adequar com o novo e que a reclamação dos mais antigos seria uma “coisa de dinossauro”, para dizer o mínimo dos termos pejorativos. Permitam-me colocar uns dois centavos de opinião nessa discussão.

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E chega Jornada nas Estrelas, como escapismo para dias sombrios de Guerra Fria…

Quando Jornada nas Estrelas foi criada por Gene Roddenberry na década de 60, o mundo era bem diferente. O medo de uma guerra nuclear e do fim do mundo era mais real do que nunca. A crise dos mísseis tinha colocado o mundo no limiar da Terceira Guerra Mundial e provocou um medo danado em escala global. Uma visão utópica como escapismo àqueles dias sombrios era mais do que necessária, assim como foram os musicais americanos que aliviavam as dores da crise econômica da Grande Depressão ocorrida em 1929. Roddenberry consegue criar uma série de TV que não escapou de uma visão imperialista americana, que teve um apoio ideológico nas noções de fronteira do historiador Frederick Jackson Turner (depois da marcha para o Oeste, da influência imperialista americana na Ásia, e do então futuro desastre no Vietnã, o espaço ainda é a fronteira final), mas que também trouxe uma visão utópica e otimista de mundo, onde a humanidade consegue sobreviver à Guerra Fria e alavancar a exploração espacial, expurgando do planeta Terra a visão belicista e colocando-a nas costas de civilizações alienígenas como os klingons e os romulanos, as metáforas dos inimigos americanos na década de 60. Os terráqueos do século XXIII seriam mais assépticos no sentido da agressividade e do belicismo. A hierarquia militar apresentada dentro da Enterprise é um bom exemplo disso, onde os superiores se referem aos seus subalternos como “senhores” (Senhor Sulu, Senhor Checov, etc.). Assim, essa hierarquia militar que pode até ser questionada numa sociedade utópica, era utilizada justamente para espelhar o contexto dessa utopia. As visões de ciência, ainda que trabalhadas de uma forma um pouco espetaculosa (viagens no tempo, dobra espacial, controle de interação matéria-antimatéria, subespaço, etc.) eram exploradas e levadas ao grande público como nunca havia ocorrido na história da então nascente televisão. E foi, por isso mesmo, que a série inicialmente conquistou os estudantes e cientistas. Mas cairia também nas graças do público nas reprises do “sindication”. Ou seja, Jornada nas Estrelas logo se mostrou que não era uma série apenas para um nicho de público. A série tinha o que dizer para muitas pessoas e se tornou muito popular. Trazia uma mensagem otimista e esperançosa para o futuro, onde o melhor do ser humano era explorado, falava da questão do “outsider”, materializada em Spock, e conquistou os Estados Unidos, assim como os outros países em que passava. Claro que a série não ficou totalmente incólume aos efeitos de seu tempo. Mesmo sendo utópica, abraçando a diferença e lutando contra o preconceito latente da década de 60, ainda vimos alguns vícios da época, como o protagonismo do macho alfa (cujo maior símbolo até hoje é o Capitão Kirk) e um papel da mulher ainda deslocado, com a exploração sexual do seu corpo, à despeito da importância dada a Uhura (a ordenança Janice Rand ainda acabava caindo nos estereóripos femininos da época). Mas, ainda assim, a série tinha o grande privilégio de ser um produto cultural de massa que despertava a reflexão.

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Os inimigos dos Estados Unidos foram para o espaço…

O tempo passou, o mundo mudou, a Guerra Fria acabou. Um pouco antes disso, Jornada nas Estrelas retornava ao cinema, depois de um hiato de alguns anos, ainda trazendo um espírito otimista, apesar de um pouco contaminada pelo espírito de violência da década de 80 (vemos isso em Jornada nas Estrelas II, a Ira de Khan e Jornada nas Estrelas III, A Procura de Spock). Entretanto, o mais intrigante aparece em Jornada nas Estrelas VI, A Terra Desconhecida. O filme que levaria o fim da Guerra Fria para o Universo de Jornada nas Estrelas marcando a paz entre a Federação e os Klingons, seria marcado por uma conspiração entre os membros da Federação e os Klingons para manter as hostilidades. Ou seja, esse foi o filme em que, provavelmente, Jornada nas Estrelas flertou com a distopia de forma concreta pela primeira vez. Mas o casamento viria logo depois com Deep Space Nine, onde a Federação, numa zona onde houve uma guerra recente, precisa colocar, diplomaticamente, panos quentes em feridas ainda não cicatrizadas na querela entre cardassianos e bajorianos. Para piorar, a Federação ainda vai ter que encarar uma guerra contra o Dominion do Quadrante Gama. E a famigerada Seção 31 surge fazendo um trabalho de espionagem para lá de sujo. Muitos fãs de Jornada nas Estrelas abraçaram a causa de Deep Space Nine e aceitaram a distopia de bom grado, por gostarem muito dos roteiros dos episódios, realmente muito bem escritos em muitas ocasiões. E, quando percebemos, a distopia já estava instalada em Jornada nas Estrelas. Tanto que em Voyager, a capitã Janeway volta e meia tomava atitudes altamente questionáveis e os entusiastas da série diziam que era algo justificável em virtude do fato de a Voyager estar sozinha no Quadrante Delta, um território desconhecido e de domínio Borg. Mas a distopia não pararia por aí. Em “Insurrection”, vemos o Almirante Dougherty num plano malicioso juntamente com os so’na para retirar os ba’ku de seu planeta e da radiação natural que lhes dava a imortalidade. Coube à Enterprise se rebelar contra essa atitude pouco virtuosa de Dougherty, o braço da Federação na região.

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Em A Terra Desconhecida, os primeiros sinais de distopia…

Há, também, distopia na prequel Enterprise, onde o “Zeitgeist”, o espírito da época, teve um papel, digamos, decisivo. Isso fica muito latente no personagem Jonathan Archer, o capitão da Enterprise. Inicialmente, nosso capitão tinha o espírito do explorador e do humanista, que está ávido por estabelecer contato com novas civilizações alienígenas e levar o melhor do ser humano para essas culturas numa interação construtiva ao melhor estilo utópico. Entretanto, logo a série daria os seus sinais de distopia. Tutelados pelos vulcanos, uma espécie mais desenvolvida cientifica e logicamente, estes veem os humanos com um certo desprezo em virtude do seu estágio de desenvolvimento, o que leva a uma certa desconfiança e até a casos onde os vulcanos mentem para os humanos, algo inimaginável na série clássica. Os defensores da série logo diriam que se tratam dos vulcanos do século XXII, com uma visão de mundo diferente dos vulcanos do século XXIII. Mesmo assim, a arrogância vulcana exacerbada do século XXII acabou incomodando um pouco. Mas o divisor de águas da série foi um fator externo, os atentados de 11 de setembro de 2001, que jogaram Enterprise no colo da distopia. A espécie suliban muito se aproximava dos talibans (até na sonoridade das palavras) e Archer deixou de ser o explorador humanista bonachão para, por força das circunstâncias, adotar uma postura mais violenta, chegando até a torturar alguns de seus antagonistas. A coisa caiu muito pesada.

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Em Deep Space Nine, a distopia de instaura de vez…

Chegamos a Kelvin Time Line e a J. J. Abrams. Qualquer tentativa de se tornar a série mais reflexiva vai ralo abaixo. Jornada nas Estrelas se torna mais um filme de ação com direito a muita porrada, bomba e tiro, onde alguns fan services e easter eggs ainda amarram essa nova visão ao passado. É o novo, dizem alguns, com o intuito de se aproximar Jornada nas Estrelas das novas gerações, que parecem ter pouca paciência com a reflexão e são bem mais imediatistas, embora não possamos generalizar. Os poucos arremedos de utopia desaparecem e a distopia se encaixa de vez ao contexto, principalmente nas figuras do Almirante Marcus e Krall, além do encaixe, a princípio fora de contexto, da Seção 31. Mas isso seria somente uma prévia para a distopia marcante em Discovery e Picard, na era Alex Kurtzman, onde a coisa degringolou de vez, no que tange à preservação de algum arremedo de utopia e de uma reflexão mais profunda. Em Discovery, na sua primeira temporada, ainda houve a desculpa de que o Universo Espelho estaria metido nessa distopia.

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Janeway. Atitudes questionáveis em Voyager…

Mas ainda vemos uma Federação no mínimo estranha, que permite a tortura de um tardígrado para acionar um motor de esporos, dada a situação de guerra com o Império Klingon (eivado de um fanatismo religioso que alimentava um código de honra nem sempre respeitado). E o Universo Espelho nada tinha a ver com isso. Outro elemento que muito desagradou aos fãs mais antigos foi o fato de se construir virtudes de personagens novos em cima do desmonte de personagens mais antigos, algo visto também em outras franquias como Guerra nas Estrelas (seria uma manifestação de nosso “Zeitgeist”?). Assim, vimos a exaltação de Michael Burnham, por exemplo, enquanto que personagens clássicos como Christopher Pike e Spock eram desvalorizados, onde o primeiro era desrespeitado por alguns tripulantes em sua hierarquia, e o segundo tornava-se excessivamente emocional, quando justamente a graça da coisa eram os seus lampejos de emoção escondidos sob uma carapaça de lógica, como víamos no Spock de Nimoy. Ainda, ffalando em desrespeito ao Pike, como a hierarquia militar é desrespeitada em Discovery! Justamente essa hierarquia que ratificava uma visão utópica na série clássica da década de 60. Mas, voltando aos personagens, quem escreve agora Jornada nas Estrelas não entende que pode criar personagens novos e exaltá-los sem qualquer problema, mas isso não significa necessariamente desvalorizar os personagens mais antigos. Uma interação criativa e construtiva entre personagens mais antigos e novos é a melhor saída, até para se “passar o bastão” para a geração mais nova, criando uma identificação entre o fandom mais antigo e mais novo. Do jeito que a coisa está, temo muito pelo futuro de Jornada nas Estrelas, uma série que já sobrevive há mais de cinqüenta anos e que, por isso mesmo, deve ser muito difícil de escrever, em virtude do vasto universo de mais de 700 episódios e mais de dez filmes, isso se não contarmos livros, quadrinhos, videogames, etc.

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Jonathan Archer. De humanista a torturador. Ecos do 11 de setembro de 2001…

Nos episódios de Picard, vemos ainda uma tendência a uma distopia que consegue chegar às raias do doentio em alguns momentos. A justificativa do Zhat Vash em destruir os sintéticos em função da visão conhecida como advertência, onde nos é mostrado um futuro com os sintéticos destruindo tudo, o que provoca manifestações de horror e suicídio coletivo, ultrapassa os limites da distopia, beirando, inclusive, o mau gosto, de tão agressiva que a advertência é. E o mais interessante é que parece que os roteiristas se dão conta disso, pois eles enxertam um discurso otimista aqui ou ali, embora isso pareça muito pouco para contrabalançar o clima altamente pessimista da série, onde vemos seguidos casos de pessoas no fundo do poço como Rios ou Raffi, além dos dilemas existenciais de Soji ou os fortes abalos sofridos por Jurati pela advertência, a ponto da moça pensar em suicídio. Ou seja, se em Discovery a distopia já cavalgava livre e tresloucadamente (lembrem-se da Seção 31, da Imperatriz e do Controle), em Picard ela atingiu outro estágio de extrapolação, atingindo a alma humana com casos individuais de desencanto, depressão e tendências ao suicídio. Ou seja, temos um quadrante delta de distância entre as utópicas séries das décadas de 60 e 80 (TOS e TNG) e a distopia despropositada da era Alex Kurtzman. Volta e meia, alguns fan services buscam manter o fio tênue de um cordão umbilical que nem parece mais existir entre esses dois pólos. Como se não bastasse esse sério problema, ainda vemos o protagonista da série sendo desrespeitado sistematicamente por personagens e roteiristas o que se encaixa no esquema de valorizar personagens novos desvalorizando personagens antigos como descrito acima. Alguns dizem que é para mostrar a situação do idoso no mundo presente, igualmente desrespeitado. Mas aí fica a dúvida: será que o idoso será desrespeitado assim no século XXIV? A ficção científica realmente reflete a realidade do tempo em que é escrita, ou seja, é uma obra datada. Mas até que ponto esse reflexo é metafórico, sutil, ou é uma mera cópia descarada dos dias de hoje? Até que ponto a gente aceita um século XXIV tão com cara de século XXI, chegando ao ponto de se ver expressões de baixo calão contemporâneas em altos postos institucionais numa civilização do futuro teoricamente mais desenvolvida, algo que soaria mal até nos dias atuais? Uma boa história dá ao espectador a oportunidade de se permear nas entrelinhas e achar as referências. Quando a coisa é evidente demais, é tão jogada na nossa cara, temos o indício de algo mais pobre, trabalhado com menos desenvoltura, ou seja, com mais preguiça.

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Almirante Marcus. Distopia na Kelvin Time Line…

Por fim, outro problema na era Kurtzman. Uma ficção científica que abusa do uso do termo ficção, aproximando-se do fantástico.  A primeira coisa que nos vêm à mente é a rede micelial de Discovery. Imaginar no subespaço um tecido vivo que permite uma viagem em velocidade praticamente infinita, sendo que esse subespaço permeia não somente o Universo, mas o Multiverso, é muito forçado demais. Já que é para chutar o pau da barraca dessa forma, seria melhor colocar a Emília do Sítio do Pica-Pau Amarelo na ponte da Discovery e ela falar “pirlimpimpim”, ao invés de acionar o motor de esporos e torturar o pobre do Stametz (ou o tardígrado). É claro que a ficção mexe com o implausível, mas também sabemos que a melhor ficção científica é aquela que antecipa o futuro. É por isso que escritores como Júlio Verne e Isaac Asimov até hoje são muito celebrados. Ou seja, a ficção científica tem todo o direito de trabalhar com o implausível, mas é recomendado que não se exagere muito, pois há o risco dela cair no insólito, no ridículo até, e deixar de ser uma ficção científica (o grifo meu é importante aqui para lembrar que há alguns limites nessa ficção) para se tornar uma fantasia, onde não há qualquer limite, e cairmos no pirlimpimpim, onde tudo é possível. Outro exemplo dessa ficção científica fantasiosa apareceu em Picard, onde uma civilização antiga altamente avançada colocou oito sóis e um planeta juntos para chamar a atenção para a história pregressa dessa civilização que acabou destruída pelos próprios andróides que criou. Em primeiro lugar, é uma coisa praticamente impossível, por mais nível tecnológico que essa civilização tenha, o ato de deslocar oito estrelas artificialmente, em função do altíssimo campo gravitacional que produzem. Ainda, se é impossível a vida num planeta com duas estrelas próximas, em virtude de toda a radiação recebida, imagine em oito planetas? E mais: um planeta não conseguiria sobreviver próximo ao fortíssimo campo gravitacional de oito estrelas e se despedaçaria. Se a atração gravitacional de Júpiter já consegue fazer isso (é só a gente ver o cinturão de asteróides entre Marte e Júpiter, que pode ter sido originalmente um planeta que se não se formou em virtude da atração de Júpiter) ou de Saturno (seus anéis podem ter sido formados por uma lua ou cometa se que fragmentou em virtude da atração gravitacional do planeta), imaginem oito estrelas puxando diferencialmente o planeta para lá e para cá. Para piorar a situação, a história contada também pode ser implausível. Se os andróides afetaram drasticamente essa civilização hiperavançada, como elas conseguiram montar esse sistema depois do ataque dos andróides? Eles conseguiram se recuperar da catástrofe? Foi algo mal contado e, portanto, mal escrito. Outro problema que vemos nas séries de Kurtzman (e aqui devemos dar o braço a torcer, pois isso também foi visto em TOS) é termos uma estrela que vai se tornar uma supernova orbitada por um planeta que ainda possui uma civilização. Isso é impossível também, pois, nesse estágio de evolução estelar, a vida já é impossível no planeta há muito tempo. Uma estrela, de uma forma em simplificada, é uma esfera de gás com duas forças básicas atuando: a forte atração gravitacional que tende a comprimi-la, e as forças termonucleares, provocadas pela conversão de hidrogênio em hélio em seu núcleo, que tende a expandi-la, o que a deixa em equilíbrio. Quando as reservas de hidrogênio no núcleo começam a se esgotar, as forças gravitacionais ficam mais fortes que a expansão termonuclear e a tendência é o núcleo se contrair. Quando isso acontecer com uma estrela do tipo do Sol, sua luminosidade aumentará em 40%, o que já será suficiente para evaporar os oceanos e tornar a vida impossível na Terra. Se a estrela tem mais massa que o Sol, o núcleo de agora hélio será comprimido a ponto de produzir carbono e oxigênio. Se a estrela tiver ainda mais massa, o núcleo pode ser mais comprimido a ponto de produzir outros elementos químicos, sempre nesse processo de contração e expansão. Se a estrela tem mais de vinte massas solares, esse processo pode se tornar tão violento que a estrela acaba explodindo, configurando-se na supernova e a energia liberada é tão forte que equivale a explosão de um setilhão de bombas atômicas. Para se ter uma idéia, se a estrela Betelgeuse, uma gigante vermelha a quinhentos anos-luz de distância de nós explodir, toda a vida na Terra seria destruída com a radiação. Logo, uma estrela numa iminência de se tornar uma supernova já não tem vida aos seus arredores há muito tempo. E o que vemos em Discovery? Uma jovem Michael Burnham vendo uma estrela na iminência de se tornar uma supernova pelo telescópio, juntamente com os pais numa nave espacial nas imediações da estrela. A impressão que se dá é a de que não há qualquer preocupação com consultoria científica nas séries da época de Alex Kurtzman, preocupação essa que víamos pelo menos nas séries produzidas por Rick Berman e Michael Piller.

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Discovery. Tortura de tardígrados…

Os tempos mudam e as coisas mudam? Sem a menor sombra de dúvida. O problema é como as coisas mudam. Infelizmente, quem está responsável pela franquia Jornada nas Estrelas hoje parece que não está muito preocupado em fazer essa transição de uma forma mais suave e pouco se preocupa com um público que mantém essa franquia viva há mais de cinquenta anos. Choro de dinossauro? Pode até ser. Mas será que as novas gerações vão comprar a franquia do jeito que está hoje e sustentá-la por mais cinquenta anos? Tenho minhas dúvidas. Ainda acho que a passagem de bastão deve ser feita de forma criativa e conciliadora entre essas duas gerações. E aí, a presença de bons roteiros que unam esses dois pólos é fundamental, o que parece não estar acontecendo muito, infelizmente. Não seria o caso de se botar a mão no bolso e procurar o que os fãs escrevem no Universo Expandido, ou melhor, até contratar pessoas que escrevem esse Universo Expandido para escrever? E, principalmente, chamar showrunners que também estão comprometidos com Jornada nas Estrelas como os escritores que não são considerados cânones? Fica aqui a minha pulga atrás da orelha para vocês.

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Em Picard, a distopia chega ao desejo pelo suicídio…

Batata Movies (Especial Oscar 2020) – O Caso Richard Jewell. Salvando O Bode Expiatório.

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Cartaz do Filme

Clint Eastwood está de volta à direção de mais um filme polêmico, como só ele gosta de fazer. “O Caso Richard Jewell” é baseado numa história real de terrorismo quando atentados não eram exatamente um trauma profundo nos Estados Unidos, ou seja, durante as Olimpíadas de Atlanta em 1996. Esse filme rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante para Kathy Bates Para podermos falar um pouco dessa película, vamos lançar mão de spoilers aqui.

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Richard Jewell, um herói acusado injustamente…

O plot gira em torno do Richard Jewell em questão (interpretado por Paul Walter Hauser), que, no longínquo ano de 1986, era funcionário de almoxarifado de uma firma onde conhece o advogado Watson Bryant (interpretado pelo ótimo Sam Rockwell). Os dois começam uma amizade, mas Jewell logo deixa o emprego, pois quer trabalhar na área de segurança. Enquanto ele é o segurança de uma Universidade, quer levar o seu trabalho ao pé da letra e, por isso, entra em conflitos com o reitor da Universidade, sendo demitido por isso. Ele quer retomar a carreira de segurança para poder ser policial, o seu grande sonho, e faz um bico de segurança nos Jogos Olímpicos, onde descobre uma mochila com uma bomba durante um show de música. A bomba explode, faz muitos feridos e dois mortos, mas mesmo assim Jewell é considerado um herói, pois sua descoberta do artefato evitou as mortes de muitas pessoas. Entretanto, o FBI, responsável pela segurança, falhou em proteger as pessoas e precisava mostrar rapidez na elucidação do atentado. Assim, a polícia federal americana buscou incriminar Jewell pelo atentado, que pediu a ajuda de seu antigo amigo Bryant. A partir daí, vemos os dois lutando simplesmente contra o governo americano e com toda uma mídia, que já praticamente o tinha condenado pelo crime, crime esse passível de execução.

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Ele será defendido por um antigo conhecido, Watson Bryant, que se torna seu amigo…

Esse é um filme que desperta sentimentos muito conflitantes. Nosso personagem protagonista é representado como uma pessoa de boa índole, cumpridora de seus deveres e que respeita a hierarquia mas, ao mesmo tempo, ele é o paradigma da sociedade belicista americana, sendo um segurança que, ao querer impor a ordem a todo custo, pode abusar de sua autoridade, como foi no caso da forma em que ele tratou os alunos da Universidade. Entretanto, esse ato mais truculento de Jewell é “justificado” no filme pela falta de respeito e bullying dos estudantes contra ele. De qualquer forma, nosso simpático protagonista tem atitudes pouco virtuosas, como manter um arsenal em casa para caçar veados, por exemplo. De qualquer forma, ele é o protagonista do filme, que também sucessivamente pisa na bola, tomando atitudes que em nada contribuem para sua defesa – muito pelo contrário até – para o desespero de Bryant, seu advogado.

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Clint Eastwood em ação na direção!!!

O filme também chama a atenção para um problema que temos visto muito ultimamente por aí: o poder que a mídia possui para, simplesmente, destruir a vida de uma pessoa. Infelizmente, a mídia, volta e meia, acusa, julga e condena um “escolhido” num espaço de tempo de um telejornal ou a leitura de uma manchete nas bancas, isso sem o menor direito de defesa para o acusado. Foi o que vimos aqui e vemos muitas outras vezes no nosso dia-a-dia. Não é à toa que a mídia tem a pecha (negativa, diga-se de passagem) de “quarto poder”. É claro que a coisa ficou um pouco romantizada aqui, pois a personagem que representava toda a venalidade da mídia, a repórter Kathy Scruggs (interpretada por Olivia Wilde), se arrepende de seus atos em acusar Jewell, quando sabemos que na vida real algumas figuras da mídia podem ter um comportamento muito menos ético.

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Mais uma excelente caracterização…

Tivemos um baita staff de atores. Nem é preciso falar muito de Sam Rockwell, que já foi laureado com um Oscar de Ator Coadjuvante. O homem rouba a cena e consegue fazer um par perfeito com Paul Walter Hauser, que surpreende, e muito, nesse filme. Jewell é um personagem bem complexo e deve ter sido bem difícil de fazê-lo. Também não podemos nos esquecer de Kathy Bates, que faz a mãe de Jewell, e teve um carisma todo especial, apesar de seu papel mais periférico na história, embora ela tenha tido um destaque todo especial num momento específico do filme. 

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Kathy Bates teve atuação marcante que lhe rendeu a indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante…

Dessa forma, “O Caso Richard Jewell” é mais um bom filme de Clint Eastwood, que desperta em nós vários sentimentos. Se as intenções de nosso protagonista podem ser sinceras, ele representa um estrato social problemático da sociedade americana. Entretanto, isso não justifica a posição de bode expiatório em que ele foi colocado nem o linchamento moral promovido pelo governo e pela imprensa, que inclusive poderia condená-lo à morte. Um programa imperdível.

Batata Movies (Especial Oscar 2020) – Um Lindo Dia Na Vizinhança. Só Se Leva Dessa Vida A Vida Que Se Leva.

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Cartaz do Filme

Mais um filme que concorre ao Oscar. “Um Lindo Dia Na Vizinhaça” concorre a uma estatueta para Melhor Ator Coadjuvante com Tom Hanks. Esse é um daqueles filmes que costumam chamar a atenção para como o espectador leva a sua vida e o seu relacionamento com as pessoas que o cercam. Um daqueles filmes que nos fazem refletir, e muito. Um filme baseado numa história real e que, para podermos compreendê-lo melhor, vamos precisar de spoilers.

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Fred Rogers, a criatura mais zen do mundo…

O plot gira em torno de Fred Rogers (interpretado por Hanks), um apresentador de programas infantis, digamos, muito zen. Seu show de TV é algo extremamente delicado e lúdico, sendo muito amado por seus telespectadores. O jornalista Lloyd Vogel (interpretado por Matthew Rhys) é convocado pela revista em que trabalha para entrevistar Rogers. Vogel inicialmente estranha muito a forma como Rogers trabalha, dando uma grande atenção a todos os seus fãs a ponto de atrasar muito o cronograma de seu programa de TV. Por ser uma pessoa muito solicitada e solícita, Rogers faz com que a entrevista que ele dá para Vogel seja em doses homeopáticas, onde os dois se conhecem cada vez mais e estabelecem uma amizade. Vogel é conhecido por ser agressivo naquilo que escreve sobre seus entrevistados, mas a experiência com Rogers será bem diferente, onde o apresentador acaba entrando muito na vida pessoal do jornalista, que tem um relacionamento extremamente conturbado com o pai, devido a fortes traumas do passado (sua mãe morreu quando Vogel ainda era criança e o pai havia abandonado a família). Com o tempo, Vogel percebe, com a ajuda do relacionamento entre ele e Rogers, que é necessário rever seus conceitos e convicções sobre a vida e encarar os rancores e mágoas para superá-los e recuperar o tempo perdido nas relações com o seu pai e até com sua esposa e filho pequeno.

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Rogers ajuda Vogel a colocar a vida nos trilhos…

Esse é um filme que pode se definir em uma palavra: o lúdico. Ele se passa num ambiente todo infantil baseado no programa de Rogers, onde a paisagem é construída a partir de cenários que mais parecem uma cidade de brinquedo. Isso, aliado a uma trilha sonora muito suave, faz com que o filme tenha toda uma leveza especial, chegando aos limites do etéreo. Mas o que ajuda muito no clima suave do filme é, sem dúvida, a atuação de Tom Hanks. Seu Fred Rogers é a delicadeza em pessoa e nem uma suposta sequência constrangedora com os fantoches de seu programa numa conversa com Vogel estragam o clima. Na verdade, parece mesmo é que Vogel se comporta como um peixe fora d’água na situação. Hanks comprova mais uma vez o seu enorme talento, mostrando sua face para lá de camaleônica, onde vemos muito mais o personagem do que o ator atuando, sendo um deleite para os olhos. Aliás, Hanks é o típico ator que nos leva para o cinema, independente do tipo de filme (eu confesso que não tinha a menor idéia do plot do filme antes de chegar ao cinema e tudo se mostrou uma grata surpresa). Infelizmente a disputa para ator coadjuvante foi muito forte esse ano e Hanks não levou o prêmio, mas a indicação já foi algo de muito válido para um filme com um plot dessa natureza altamente lúdica.

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Hanks e o real Rogers. Mais uma baita caracterização…

Assim, “Um Lindo Dia Na Vizinhança” é um filme que chama a atenção pelo clima suave e lúdico contido nele, onde as miniaturas que representam a cidade dão um clima infantil para o filme. Mas a leveza se ampara muito na atuação de Tom Hanks que faz jus à indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. Além disso, é um filme que nos faz refletir como levamos nossas vidas e como nos relacionamos com o próximo. Vale muito a pena a experiência.

Batata Movies (Especial Oscar 2020) – Judy. O Ocaso De Uma Artista.

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Cartaz do Filme

Mais um filme que concorreu ao Oscar. “Judy” concorreu a duas estatuetas (Melhor Atriz para Renée Zellweger, levando esse prêmio, e Maquiagem e Cabelo) e nos conta a trajetória da diva Judy Garland, que todos nós conhecemos como a Dorothy de “O Mágico de Oz”. É um daqueles filmes que pesca o cinéfilo pelo coração desde o início. Para podermos falar sobre o filme, vamos precisar, como sempre, de spoilers.

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Renée Zellweger em interpretação fabulosa…

A película opta por focar mais no ocaso da carreira da atriz (interpretada por Renée Zellweger), quando ela está afogada em dívidas e nem lugar para morar ela tem, precisando ficar aqui e ali com seus dois filhos pequenos (Liza Minelli já está crescida e estabelecida). Isso vai fazer com que seu ex-marido Sid (interpretado por Rufus Sewell) peça a guarda dos filhos, o que vai deixar Judy Garland abalada. Sem dinheiro e sem propostas de trabalho, ela aceita a oferta de se apresentar na Inglaterra e aí o filme mostra o dia-a-dia de Judy Garland em terras inglesas, onde suas apresentações alternavam altos e baixos, sempre regados a muitos remédios e bebidas, despertando um dó danado na gente.

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Dor em não poder ficar com os filhos…

O filme também mostrou, em menor escala, momentos da juventude da atriz, onde a gente consegue compreender porque ela acabou se tornando uma pessoa tão atormentada e difícil. Sua mãe a obrigava a ser altamente profissional, não dando a ela nem o direito de se alimentar de forma satisfatória para não engordar e ainda a enchia de remédios para ficar acordada e para dormir, tornando-a dependente de todos esses medicamentos. Era uma prática comum entre os artistas tomar essas medicações para não dormir em virtude da maratona de shows e, depois, para poder evitar a insônia, tomar também medicações para dormir, numa época em que ninguém acreditava que isso fazia muito mal e detonava o organismo. Nossa Carmen Miranda também passou por essa experiência e foi isso que acabou abreviando demais as vidas tanto de Carmen quanto de Judy (a primeira morreu com 46 anos e a segunda com 47 anos).

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Com o fã, perseguido por ser homossexual. Momento marcante do filme…

Em virtude de toda essa situação, Judy metia os pés pelas mãos e, aos poucos, fechou a última porta que restava, que era a temporada inglesa. Nem as tentativas de seu novo marido, Mickey Deans (interpretado por Finn Whittlock) foram suficientes para levantar sua carreira, o que acabou com o casamento entre os dois. É realmente muito doloroso ver toda a via crucis de Judy para o inevitável caminho que todos já sabíamos. E aí, Zellweger foi fundamental nisso, pois ela convence, e muito, no papel, sendo, a meu ver, muito merecedora da estatueta de Melhor Atriz. Sua atuação é muito tocante, mostrando toda a fragilidade e agressividade de Judy nas medidas certas, monopolizando todas as  atenções.

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Vida marcada pelo sofrimento…

Apesar de todo o rosário de lamúrias que o filme provoca, nem tudo era somente sofrimento. Há uma sequência em que ela vai dar autógrafos a dois amigos depois do show e acaba decidindo sair com eles. Como não acham um restaurante aberto tarde da noite, ela vai para a casa deles, onde descobre que são um casal gay que sofrem muitas perseguições, se identificando com eles, já que toda a sua carreira sempre foi forjada com base em muitas exigências, não dando a ela um momento mínimo para viver em paz como ela mesma, dentro de suas vontades e desejos, sendo sempre reprimida quando saía um pouco do cabresto que lhe fora severamente imposto por toda a vida. E, ao final do filme, ela, já demitida, ainda entra no palco uma última vez e, ao cantar “Somewhere Over The Rainbow” e, não conseguir, em virtude de todo o peso que carregou nas costs a vida inteira, vê todo o teatro lotado cantando para ela, sendo um desfecho para o filme de dar muitas lágrimas nos olhos. Um certo alívio para tanto sofrimento de uma mulher que não conseguiu se reerguer e reconquistar a guarda dos filhos.

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Grande caracterização…

Assim, “Judy” é um programa obrigatório para qualquer cinéfilo e para qualquer espectador. Um filme que consagra Zellweger e é uma justa homenagem a Judy Garland, um enorme talento que foi triturado pelo star system. Imperdível.  

Batata Movies – Kursk, A Última Missão. Afogando Segredos Militares.

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Cartaz do Filme

Um filme polêmico. “Kursk, A Última Missão” fala do naufrágio do submarino russo ocorrido em agosto de 2000, que vitimou toda a sua tripulação. E da história de como algumas vidas poderiam ter sido poupadas se a Marinha Russa não tivesse tentado encobrir seus segredos militares no ato do salvamento dos tripulantes. Para podermos compreender melhor o filme, vamos precisar de spoilers.

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Filme dá uma identidade às vítimas…

O filme se foca na tripulação do submarino, dando vida e cara aos marujos, liderados por Mikhail Averin (interpretado por Matthias Schoenaerts). Uma grande festa apresenta os personagens e mostra muito o espírito de união do grupo. Não muito depois, já vemos o submarino saindo para a sua missão e o motivo do acidente, que foi a explosão de todos os torpedos provocada pela temperatura excessiva de um deles, que praticamente destruiu todo o submarino. Os sobreviventes foram para a popa e se trancaram lá, fazendo de tudo para retardar a inundação do compartimento e manter a carga de oxigênio. Enquanto isso, as equipes de salvamento tentavam escutar algum sinal que pudesse indicar sobreviventes. Os tripulantes batiam com um martelo na parte interna do casco do submarino a cada hora, e foram detectados. Mas o sucateamento da Marinha Russa fez com que o submarino de salvamento não pudesse se acoplar à escotilha do Kursk. O comandante da frota russa do Norte chegou a pedir auxílio da Inglaterra, mas o alto comando da Marinha não queria a presença de ocidentais na missão de salvamento e isso retardou demais o salvamento, provocando a morte de todos.

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Indo para não voltar…

O filme tem uma postura muito crítica com relação aos procedimentos da Marinha Russa, trazendo de volta o espírito da Guerra Fria. Resta a gente se perguntar se o oposto também aconteceria, ou seja, se fosse um submarino americano ou inglês que tivesse afundado e uma ajuda russa como determinante no salvamento seria igualmente rechaçada para evitar a divulgação de segredos militares. Que os leitores façam as especulações que quiserem. Entretanto, fica muito claro no filme o desenvolvimento tecnológico do Kursk e o receio que ele despertava nos militares ingleses.

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Uma explosão que vai manter marinheiros presos…

O filme tem um baita elenco. Além de Schoenaerts, temos Léa Seydoux como a esposa de Averin, Tanya, que liderou as esposas dos tripulantes, pressionando os militares da Marinha Russa por informações. Ainda, tivemos a presença de Max Von Sydow como o comandante da Marinha Russa que se investiu da posição ícone de guardião dos segredos militares e da personificação do personagem a ser odiado no filme. Colin Firth, por sua vez, fez o comodoro inglês David Russell, com uma postura bonachona pronta a oferecer assistência. Ou seja, mais uma vez as dicotomias da Guerra Fria requentadas. Ainda assim, os atores foram muito bem e trabalharam com competência a carga dramática que o filme exigia.

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Um comodoro inglês bonachão…

Dessa forma, “Kursk, A Última Missão” é um bom filme que nos contextualiza na situação dessa grande tragédia que já tem uns vinte anos (como o tempo passa rápido!), mesmo que haja um maniqueísmo residual dos anos de conflito entre as superpotências. Vale a pena dar uma conferida.