O
Cine Joia de Copacabana promoveu, no mês de agosto, uma exibição gratuita do
filme “Mangue Bangue”, com a presença de seu diretor, Neville D’Almeida. Considerado
o cineasta mais interditado, boicotado e censurado do país, Neville, ao fazer “Mangue
Bangue”, já tinha sofrido com a censura da ditadura militar e tomou uma decisão
drástica: fez um filme do jeito que quis e não o submeteu à censura, levando-o
para fora do país de forma clandestina para ser finalizado por lá. Nas idas e
vindas da vida, o filme acabou no MoMA de Nova York, e ficou por lá muitos anos
esquecido, até ser finalmente resgatado. Essa exibição recente promovida pelo
Cine Joia tem um quê histórico, pois foi a primeira vez que o filme, produzido
no início da década de 70, teve uma exibição pública no Rio de Janeiro.
O próprio Neville D’Almeira faz parte do elenco.
E o que podemos falar desse filme? Neville, em suas próprias palavras, definiu o cinema como a arte da hipocrisia, onde visões de ordem mais moral, artística e estética ditam as regras. O cineasta, então, procurou fazer um filme mais ligado à realidade nua e crua cotidiana, vista com repulsa por parâmetros mais moralistas e autoritários. Assim, Neville retrata em seu filme a pobreza, a nudez, o consumo de drogas, a luta pela sobrevivência, a decadência humana, mas não com a intenção de agredir o espectador e sim naturalizar e humanizar a realidade cotidiana. O diretor tem a feliz escolha de fazer um filme mudo, onde a linguagem se ampara quase que totalmente na materialidade das imagens, sendo que não temos uma narrativa tradicional de uma história coesa com início, meio e fim, mas sim a explanação de várias situações e ideias, onde as associações entre as imagens dão as cartas.
Antológica participação de Paulo Villaça (de terno)
Temos, por exemplo, cenas de consumo de drogas intercaladas com uma rinha de galos, esta última vista como uma alegoria da luta pela sobrevivência, ou a cena de uma mãe amamentando o filho. É impossível não se lembrar da repercussão, muito atual, e vista como negativa por parte de algumas mentes mais conservadoras, sobre as mães que amamentam seus filhos publicamente. Assim, essas imagens que são alegorias de ideias se aproximam muito, por exemplo de um Mário Peixoto, tal como vimos em sua obra “Limite”. Outro detalhe interessante foi a escolha da trilha sonora, com direito a suaves chorinhos ou até um Beethoven, usados, segundo o diretor, para humanizar imagens muito alvejadas por preconceitos impostos por visões mais conservadoras. Assim, a trilha sonora consegue a façanha de tornar idílicas as imagens de um grupo de travestis mergulhados na miséria, por exemplo.
Participação de Maria Gladys.
O único arremedo mais coeso de narrativa estava na história de decadência de um personagem interpretado por Paulo Villaça. Corretor na Bolsa de Valores, ele começa a se sentir mal dentro do pregão (uma alegoria da venalidade do sistema capitalista) e sai de lá, expelindo pela boca jatos e jatos de vômito, terminando por se jogar na rua e numa poça de lama e esgoto, que nada tinha de cenográfica. Na rua, encontra a personagem interpretada por Maria Gladys, que rouba para sobreviver e se droga para ainda viver. É nesse momento que o sorriso volta à Villaça, como se o estilo de vida mais simples (e, por que não, prosaico?) dos menos favorecidos mostrasse a existência de um outro mundo diferente do que ele conhecia.
Travestis e rinhas. Luta pela sobrevivência…
A jornada do personagem de Villaça prosseguiu até o estado mais anímico possível onde, com a ajuda dos dedos, ele sentia o cheiro de sua cavidade anal e genitália (nas palavras do próprio Neville, no documentário de Mario Abbade, “Quem nunca enfiou o dedo no cu e cheirou?”), terminando por vermos o personagem defecando no mato, se limpando no rio e sumindo no interior da floresta. Ou seja, o humano reprimido pelas convenções do capitalismo e do moralismo conservador se liberta, em todo o seu processo de decadência, tornando-se instinto puro.
Filme busca humanizar os excluídos.
Para quem ainda considera Neville, de uma forma bem reducionista, imoral, indecente e asqueroso, “Mangue Bangue” mostra justamente o contrário lá nas entrelinhas. Neville é visceral, sem hipocrisia, podendo ser até agressivo aos mais sensíveis. Mas ele humaniza os excluídos, naturaliza o que é rechaçado pelo conservadorismo moralista, mostrando tudo o que o cinema mais tradicional não tem coragem de mostrar. Sistematicamente atacado e silenciado, Neville não abaixou a cabeça e continuou acreditando em sua arte e visão de mundo. Um cineasta cruelmente relegado ao esquecimento pelo establishment. Esperemos que tal injustiça histórica seja corrigida no futuro e ainda em vida.
Neville D’Almeida. Um cineasta que precisa ser visto e ouvido
Vamos hoje recordar mais uma vez das sessões do Cineclube Sci Fi do Conselho Jedi do Rio de Janeiro realizadas no Planetário da Gávea. Certa vez, foi exibido o importante filme “Contato”, estrelado por Jodie Foster e Matthew McConaughey. E por que essa produção de 1997 dirigida por Robert Zemeckis é tão cheia de relevância? Justamente porque se trata de um filme de ficção científica com F maiúsculo, tratando o tema da busca por inteligência extraterrestre de forma sóbria e refinada, sem arroubos de ação ou aventura, como vemos na maioria dos filmes que tratam desse tema. A história dessa película é inspirada no livro homônimo do astrônomo Carl Sagan, famoso na década de 1980 por trabalhar com divulgação científica, produzindo e protagonizando a série de TV “Cosmos”, exibida por aqui pela Rede Globo.
Jodie Foster interpreta a astrônoma Eleanor Arroway
No que consiste a história? Temos a astrônoma Eleanor Arroway (interpretada por Jodie Foster), que tem como objetivo principal em sua carreira buscar inteligência extraterrestre analisando os sinais de rádio emitidos pelos corpos celestes. Ela tem o hábito da comunicação por rádio desde criança, quando operava um rádio amador de sua casa, estimulada pelo pai Ted (interpretado por David Morse), que recebera a recomendação de estimular as aptidões da menina para matemática, física e ciências, após esta passar por um teste vocacional. Mas Eleanor vai sofrer todos os preconceitos da comunidade científica, principalmente na figura de David Drumlin (interpretado por Tom Skerritt), que vê o projeto de Eleanor com ceticismo e até zombaria, cortando todos os apoios financeiros e governamentais que pode e não pode. Mas, um belo dia, no Very Large Array, um conjunto de Radiotelescópios instalados no Novo México, Eleanor finalmente detecta sinal de vida inteligente, situada na estrela Vega, a 26 anos-luz de distância da Terra. Inicialmente, era um sinal que continha uma sequência de números primos, mas que possuía outras informações também. Havia a primeira transmissão de TV feita pelo homem, um discurso de Adolf Hitler na abertura dos Jogos Olímpicos de 1936, que essa inteligência alienígena captou e retransmitiu para a Terra com um ruído implícito, que era constituído de esquemas tridimensionais para se montar uma máquina que fizesse viagens pelo espaço através de “buracos de minhoca”, que são “atalhos” na estrutura espaço-temporal.
Joss, um homem da religião
Obviamente, a essa altura do campeonato, Drumlin esqueceu seu ceticismo e, com seu poder e influência, tomou as rédeas do projeto, colocando Eleanor para escanteio. Mexendo seus pauzinhos e, usando um discurso que agradava a gregos e troianos, convenceu uma comissão de que ele era a pessoa mais indicada para fazer a viagem. Só que um fanático religioso cometeu um atentado terrorista e explodiu toda a máquina, provocando a morte de Drumlin. Tudo estaria perdido não fosse a intervenção do grande magnata Hadden (interpretado magistralmente por John Hurt), que já vinha dando amparo financeiro a Eleanor e que tinha construído outra máquina igual na ilha de Hokkaido com a ajuda de empresas japonesas, devidamente compradas por ele. E aí, nossa Eleanor, a descobridora do sinal e que fora colocada à margem do projeto por querelas políticas, vai fazer a viagem para encontrar a espécie alienígena em questão.
Buscando inteligência extraterrestre com grandes antenas…
Ufa! Que história, não? Só essa pequena sinopse já mostra que o filme vale a pena. Mas a película tem outras grandes virtudes. Não falamos do personagem de Matthew McConaughey ainda. Ele é Joss, um homem de formação religiosa, que é uma espécie de conselheiro espiritual do presidente Bill Clinton. E iniciará um “affair” com Eleanor, uma mulher de ciência que não crê em Deus. Logo podemos perceber o velho embate ciência X religião nesse casal e ao longo do filme. Mas essa discussão, ao contrário do que pode parecer, não é feita de forma dicotômica e simplória. Ela é cheia de matizes, pois Joss representa a visão do religioso com suas convicções a respeito de Deus, mas tolerante com o discurso científico, ao contrário do fanático religioso que explodiu a máquina por rechaçar totalmente a ciência (aliás, esse fanático religioso estava a cara do ator alemão Klaus Kinski, que fazia apresentações teatrais dizendo que era Jesus Cristo e que respondia enfurecido às provocações da plateia que o questionava se ele era mesmo Jesus ou não, sendo um grande sucesso, mas isso é outra história). É bem claro que a notícia do conhecimento da existência da inteligência extraterrestre provocou uma polvorosa e tanto. E aí, ficou a questão de quem seria a pessoa mais adequada para fazer a viagem. Eleanor era uma das candidatas, mas foi reprovada, pois não acreditava em Deus, algo em que 95% da população mundial acreditava, não sendo considerada, portanto, uma boa representante da raça humana
Fazendo uma viagem fantástica!!!
Só para colocar um pouco mais de pimenta na discussão, Joss fazia parte da comissão e fez a Eleanor a pergunta de se ela acreditava em Deus, que foi decisiva para sua eliminação. Mas Joss fez tal pergunta, pois ele amava Eleanor e temia que ela jamais voltasse. Aliás, Joss ficou assustado com a entrega de Eleanor ao projeto, chegando ao ponto de aceitar a possibilidade de sacrificar a própria vida em prol da ciência. Aqui, esse comportamento extremo de Eleanor também é visto em alguns grupos fundamentalistas religiosos, só para percebermos como a discussão do filme é rica nesse ponto
Encontro com o “pai” alienígena
Mas como era dito naquela antiga propaganda de facas na tv, “e não é só isso!”. O filme vai mais além nessa questão. Eleanor faz a viagem, vê todos os buracos de minhoca do mundo, vai para Vega e além dos limites da galáxia, onde se encontra com uma suposta entidade alienígena travestida de seu pai, numa reprodução de uma praia em Pensacola, Flórida, com quem ela tinha tido um contato de rádio amador quando criança. Toda essa montagem foi feita, segundo o “pai alienígena” para tornar a coisa mais familiar. Para Eleanor, a experiência, além de científica, foi também pessoal, pois o pai havia morrido quando ela era apenas uma garotinha e ela tentava se comunicar com o pai morto no radio amador. O grande problema foi que toda a estação de comando da máquina não viu nada disso e Eleanor não trouxe provas concretas de sua viagem, já que sua câmara e sistema de áudio só trouxeram estática gravada. Assim, ficou o discurso dela contra o discurso de quem testemunhou a viagem “de fora”. E aí, a situação se inverteu: assim como Eleanor antes não acreditava em Deus, depois da viagem muitos não acreditavam no que Eleanor dizia. Mas ainda assim, parte do povo acreditou na cientista e passou até a vê-la como uma figura messiânica, como ficou registrado na comovente sequência após o depoimento de Eleanor no Congresso, onde uma multidão a aguardava, com direito até a crianças com doenças graves a esperando para receber uma espécie de “benção”, para a perplexidade total da cientista. Nessa hora, ficaram as sábias palavras de Joss, onde ele disse à mídia que não tinha as mesmas visões de mundo de Eleanor (a científica), mas tanto ciência quanto religião buscavam a verdade e que ele acreditava nas palavras de Eleanor, dando um bonito desfecho para a película. Uma outra curiosidade foi a participação de medalhões da imprensa no filme como o apresentador Jay Leno ou o Repórter Bernard Shaw, que cobriu a guerra do Iraque, o que deu um certo tom de realismo e autenticidade à história. O próprio presidente dos Estados Unidos na época, Bill Clinton, gravou algumas sequências discursando para o filme, assim como teve sua imagem implantada em CGI com alguns membros do elenco. Aliás, falando em CGI, algo que muito chamou atenção na época em que o filme foi feito foi a sequência inicial, onde “saímos” do planeta Terra juntamente com os sinais transmitidos pelos humanos indo até para fora de nossa galáxia. À medida que nos afastamos do planeta, os sinais falam de situações que estão cada vez mais no passado (os sinais mais antigos já viajaram uma distância maior), até que eles emudecem, após o discurso de Hitler nos Jogos Olímpicos de Berlim, o primeiro sinal a sair da Terra em 1936 e que já viajou a maior distância. A única crítica que pode ser feita a essa belíssima sequência inicial é a respeito dos sinais da década de 1960 que eram escutados no filme nas proximidades de Júpiter e Saturno, quando sabemos que tais sinais só demoram algumas horas para chegar a esses planetas. De qualquer forma, nada disso alterou a beleza e plasticidade da coisa.
Leonard Nomoy. Como seria a comunicação entre humanos e alienígenas???
Uma questão pode ser levantada aqui. Como seria uma comunicação entre extraterrestres e nós? Tal situação de comunicação descrita no filme seria verossímil? Leonard Nimoy (sempre ele) ao elaborar a história de “Jornada nas Estrelas IV, A Volta Para Casa”, discutiu com alguns cientistas especializados em pensar tais questões como seria uma suposta comunicação entre humanos e ETs. Um deles lhe disse que essa comunicação poderia ser impossível, já que o desenvolvimento de uma espécie alienígena poderia ser tão diferente da nossa que as visões de mundo, as redes neurais, os sistemas de linguagem seriam tão dispares que impossibilitariam qualquer comunicação. E os alienígenas do filme se comunicam por números primos, que faz parte de uma linguagem matemática desenvolvida na Terra. Após a exibição do filme no cineclube, houve um debate com o astrônomo Alexandre Cherman, que defendeu a ideia de que uma comunicação entre alienígenas e terrestres com números primos é algo altamente plausível, dada a peculiaridade desses números (só são divisíveis por eles mesmos e por um) e que essa ideia vale para qualquer lugar do Universo, sendo um sistema de comunicação altamente inteligível e eficiente. Luísa Clasen, a outra palestrante, especializada em Cinema e Vídeo, levantou uma hipótese interessante: mesmo sendo uma espécie alienígena altamente diferente da nossa, ela pode ter estudado os sinais terrestres e entendido um pouco mais as nossas formas de pensar e se comunicar. Após essas linhas, podemos perceber a grande qualidade que o filme “Contato” tem. A melhor expressão do bom cinema, do filme que faz pensar sobre questões tão atuais, mesmo tendo sido feito há quase vinte anos. Quem ainda não conhece essa película já tem bons motivos para procurá-la. Um excelente programa para quem gosta do cinema como pura expressão de arte.
Uma arrebatadora
co-produção França/Bélgica/Geórgia. “Filhas do Sol” fala sobre mulheres. Mas
não de forma simplória. Estamos aqui no contexto de uma guerra civil, no
fragmentado conflito do Oriente Médio, onde populações inteiras matam e morrem
por quinhões secos de terra que são seus países. Mas a luta vai a um nível mais
profundo. Vemos também a busca pela reconstrução impossível em sua plenitude,
de um passado perdido. Vamos precisar de spoilers aqui.
Bahar, uma lutadora incansável…
O cenário é o norte do Curdistão. As pessoas daquele país estão em guerra com o Estado Islâmico. Banhos de sangue e carnificinas fazem parte da rotina diária. Uma advogada, Bahar (interpretada pela belíssima e insuperável Golshifteh Farahani), é surpreendida numa festa de sua família pelos membros do Estado Islâmico, que executam todos os seus homens (inclusive o seu marido), sequestram o seu filho pequeno para a causa e ainda mantém a moça, juntamente com várias outras mulheres como escravas sexuais. Bahar vê na TV, enquanto está no cativeiro, que uma antiga professora universitária sua participa de um movimento que liberta essas mulheres e anota um número de telefone que sua professora passa pelo programa de TV. Ela consegue fugir com a ajuda de sua professora e entra na resistência curda contra o Estado Islâmico, liderando um batalhão feminino conhecido como “Filhas do Sol”, composto somente de mulheres que passaram por uma situação igual à dela, lutando na linha de frente. Bahar irá conhecer uma jornalista francesa, Mathilde (interpretada por Emmanuelle Bercot), que irá testemunhar e registrar a ação do grupo. Bahar também tem a esperança de, no meio de todas essas batalhas sangrentas, recuperar o filho sequestrado.
Liderando um batalhão de mulheres…
O filme mescla cenas
de batalha das Filhas do Sol contra o Estado Islâmico e flash-backs que ajudam
a gente a entender a trajetória pregressa de Bahar, desde os seus dias
confortáveis de advogada com família estável, passando pelo pesadelo de ser
capturada pelo Estado Islâmico, a fuga e a entrada no movimento guerrilheiro. O
mais curioso aqui é que o Estado Islâmico considera a morte em batalha uma ida
para o paraíso, mas isso não ocorre se o soldado for morto por uma mulher.
Logo, a carga simbólica do movimento armado feminino já é uma luta contra o
machismo e a misoginia desde o início. E as mulheres ainda têm a oportunidade
de “largar o aço” nos seus estupradores e escravizadores. Mesmo lutando
ferozmente e combativamente, as guerrilheiras não perdem a ternura, havendo uma
forte ligação emocional entre elas, celebradas em cantorias à beira das fogueiras,
ao bom estilo da cultura árabe e beduína. Elas também não rechaçam a sua origem
muçulmana, apesar de todo o fanatismo do ISIS. E são mais impetuosas e
corajosas que os homens. Bahar tem desentendimentos com o comandante do
exército masculino que ajuda seu grupo e, muitas vezes, as mulheres combatem
sem qualquer ajuda masculina, o que ajuda ainda mais a aumentar o mito em cima
de seu heroísmo. E pensar que vemos aqui um filme baseado em fatos reais, com
nomes sendo trocados para garantir a segurança das pessoas que ainda estão por
lá, lutando no front. Só da gente pensar nisso, já é de arrepiar.
Mathilde, com as marcas da guerra, testemunha aluta das mulheres…
Agora, o
desfecho é que pareceu falso, pois Bahar conseguiu encontrar o seu filho. E aí,
eu me pergunto: será que isso aconteceu mesmo na vida real, com a vida imitando
a arte? Espero que sim. Só deixaria as coisas mais espetaculares ainda.
Sempre na linha de frente…
Dessa forma, “Filhas
do Sol” é um programa imperdível e obrigatório, pois fala de um batalhão de
mulheres que não se deixou vitimizar num mundo extremamente misógino e
machista, indo literalmente à luta. Um filme onde o senso de companheirismo e
carinho não se deixa desvanecer nas agruras do campo de batalha. Um filme de
Bercot, mas, principalmente, de Farahani essa atriz bela e adorável. Não deixe
de ver.
E temos o “Coringa”, estrelado por Joaquin Phoenix. Era um filme muito esperado, envolto em bastante polêmica, pois ele trabalha o tema do psicopata assassino que é menosprezado pela sociedade e sai descarregando sua ira deixando um rastro de sangue, tal como vemos em muitos casos verídicos de serial killers nos Estados Unidos. Assim, parentes de vítimas desses assassinatos em série se manifestaram contra o filme, enquanto que algumas salas de cinema americanas disseram que não iam exibir “Coringa”. Tudo isso acabou gerando mais marketing para o lançamento da película e aumentou em muito a expectativa. Vamos agora falar aqui desse filme, lançando mão dos spoilers, que são necessários para uma análise mais profunda da coisa.
Joaquin Phoenix. Redefinindo o conceito de magnífico…
Arthur Fleck (interpretado por Joaquin Phoenix) é um homem atormentado, que tem um sério distúrbio. Ele dá gargalhadas violentas e severas, mas elas não expressam necessariamente que ele está feliz, muito pelo contrário até. Arthur sempre foi um homem que teve uma vida muito sofrida em virtude de seu distúrbio. Ele trabalha numa espécie de agência de palhaços que são contratados para divulgar lojas. Fleck é perseguido pelo seu patrão e por seus amigos, sempre sendo sacaneado por todos. Enquanto isso, Gotham City passa por uma verdadeira convulsão social. Sua elite trata o povo com enorme descaso, os lixeiros fazem greve, a cidade está infestada de ratos. Nesse contexto sombrio, Thomas Wayne (interpretado por Brett Cullen) aparece como um salvador da pátria e candidato a prefeito da cidade. Mas Wayne é um ricaço que tem desprezo pela classe mais pobre.
Riso e choro em um único desespero…
Ah, sim, Thomas Wayne é pai de Bruce, não podemos nos esquecer desse detalhe. A mãe de Arthur, Penny (interpretada por Frances Conroy) manda várias cartas para Thomas Wayne. Arthur irá descobrir que a mãe teve um caso com Thomas e Arthur seria filho dele. Mas depois Arthur vai descobrir que a mãe era louca e abusava dele durante a infância. Arthur, que já havia matado três homens das empresas Wayne, que importunavam uma moça no metrô e depois começaram a espancá-lo, acaba matando também a mãe. A morte dos três homens ricos no metrô por um homem vestido de palhaço levanta um movimento contra os ricos na cidade e as pessoas fazem manifestações com máscaras de palhaço. Arthur, que não toma mais suas medicações, pois o programa de assistência do governo foi cancelado, caminha a passos largos para a psicopatia total e tem um plano um tanto sinistro quando é chamado para ser entrevistado num talk show, pois um vídeo feito de uma apresentação sua foi parar na TV e o apresentador Murray Franklin (interpretado por Robert De Niro) fará a entrevista com o objetivo de zoar com a cara de Arthur. Mas…
Robert De Niro dessa vez foi coadjuvante. Vocês acreditam???
O que mais chama a atenção nesse filme logo de cara? O temor de se justificar as ações dos serial killers é até compreensível, embora eu creia que não se deva silenciar a discussão desse tema, já que esses assassinatos em série são uma conseqüência realmente de um problema mais amplo do que um caso individual isolado. Há uma sociedade violenta que estimula os assassinatos em série quando uma pessoa é maltratada pela sociedade. E isso tem que ser discutido, até para se encontrar uma solução para o problema. Mas o filme foi além disso. Ele foi no âmago de um problema social, onde uma elite rica não tem qualquer apreço ou respeito pelas camadas mais populares, mergulhando Gotham City numa verdadeira convulsão. Sabemos que a cidade de Nova York, lá pelos idos da década de 70 era um local extremamente problemático e violento.
A linguagem corporal também foi decisiva…
Quando vemos a logo antiga da Warner no início do filme e nos situamos numa Gotham mais retrô, vemos que há uma intenção de associar a cidade fictícia do Batman com essa Nova York caótica da década de 70. E o homicídio de três homens ricos que não tem qualquer caráter por um homem vestido de palhaço é a senha para uma revolta generalizada contra a elite rica. Logo, o Coringa desse filme não é o líder de uma quadrilha, mas uma espécie de bandeira contra a forma atroz que a elite trata as camadas menos favorecidas. O Coringa é menos o serial killer psicopata que mata a torto e a direito do que a personificação de uma revolta social. E isso aparece em sua fala quando ele sente que deixa de ser um João ninguém para ser ouvido pelos mais pobres nos seus atos violentos contra a elite. Há momentos dessa interação entre Coringa e as massas, seja na sequência do metrô onde ele foge da polícia e os policiais são detidos pelos passageiros do trem todos com máscaras de palhaço, seja no momento em que ele é retirado ferido do carro de polícia que o levava para a prisão e que foi abalroado por uma ambulância para poder libertar Arthur. Nesse momento, ele se ergue triunfante e é aplaudido pelas massas nas ruas, justamente depois dele assassinar (ao vivo) Murray na TV. Assim, a história de Coringa não é a do individual psicopata que comete crimes pelas loucuras que sofre da sociedade, mas sim a história de um homem que acaba personificando a indignação de todo um segmento social massacrado, tornando-se assim muito mais perigoso para o establisment.
E, finalmente, o personagem encarnado…
É claro que esse não é um filme de super-herói como conhecemos. Mas já é disparado a melhor coisa que o casamento DC-Warner fez, sem a menor sombra de dúvida. Esse filme é tão especial que ele deve ser considerado algo à parte, ou seja, não vai cair bem um Coringa interpretado pelo Joaquin Phoenix lutando contra o Batman ou a Mulher Maravilha num futuro filme. Outra coisa que deve ser dita é a força da atuação de Joaquin Phoenix. Às vezes, quando vejo uma obra de um ator ou diretor no cinema, me chega uma espécie de convicção de que aquele ator ou diretor chegou ao seu auge. E que, a partir dali, ele não conseguirá um trabalho tão bom. Eles ainda serão excelentes, mas jamais chegarão à qualidade daquele ápice. Eu senti isso, por exemplo, com Pedro Almodóvar em “Fale Com Ela”. Ali ele chegou ao seu auge e esse filme será insuperável em qualidade. As demais películas de Almodóvar jamais chegarão aos pés de “Fale Com Ela”, onde o diretor explodiu todas as escalas de qualidade. Falo isso agora para Joaquin Phoenix. Na minha modesta opinião, ele chegou ao seu auge com “Coringa”. Phoenix estourou todas as escalas. Sua gargalhada era com um sofrimento explícito, onde o ator conseguia misturar com maestria riso e choro, levando-nos a um sentimento muito angustiante. O esforço que ele fez para compor o personagem, emagrecendo horrores e fazendo uma dança poligonal e esquálida impressionou demais também. A coisa foi tão boa que nem a sua vestimenta de Coringa a la Cesar Romero ficou caricata. Sua atuação no talk show foi perfeita, assustadora e, principalmente, esfuziante, quando ele desabafou perante toda a sociedade os anos e anos de ódio acumulado por ter sido maltratado por tudo e por todos. Sua sanha assassina é direta, sincera e, acima de tudo, contagiante. Papel digno de Oscar, embora a película já tenha conseguido muito mais do que isso, pois ganhou o prêmio de melhor filme no Festival de Veneza. Isso sim é uma coisa impressionante: um “filme americano de super herói” ganhar o prêmio máximo num festival europeu.
Em Veneza. Prêmio merecidíssimo…
Dessa forma, “Coringa” é um programa imperdível, um filme obrigatório, por trabalhar o Universo dos filmes de super-herói de uma forma adulta e muito contundente, despertando uma reflexão que sai do campo do individual para o campo do social. E tem a atuação mais primorosa da carreira de um artista de renome, que é Joaquin Phoenix. Não deixe de assistir a esse filme que te agride e que não te deixa indiferente.
Um
curioso filme brasileiro. “Hebe, A Estrela do Brasil” traça a trajetória da
apresentadora Hebe Camargo nos difíceis anos da redemocratização brasileira,
quando a censura ainda dava o ar da sua (des) graça e a sociedade machista da
época não engolia de jeito nenhum as atitudes altamente afrontosas e
provocativas da celebridade televisiva, que não tinha papas na língua e fazia
de tudo para se impor, custe o que custasse. Para podermos entender o filme,
vamos precisar de spoilers aqui.
Andréa Beltrão como Hebe Camargo.
Em primeiro lugar, foi elencado um recorte temporal, que mostra os anos de Hebe na TV Bandeirantes e, posteriormente, os primeiros anos de seu programa no SBT. Assim, podemos esquecer, pelo menos por aqui, sua infância e velhice. O filme realmente se debruçou mais nas querelas que ela teve com a censura, onde os censores não engoliam a participação de performers ou transexuais em seu programa (a apresentadora já utilizava esses termos na época, numa prova de que ela estava realmente à frente de seu tempo). Hebe (magistralmente interpretada por Andréa Beltrão) tinha discussões fortes com Walter Clark, pois este último tinha que pisar em ovos com os censores enquanto que a apresentadora conduzia seu programa como queria na TV. A gota d’água foi um programa onde Dercy Gonçalves e Roberta Close apareceram juntas e a atriz veterana mostrou os seus seios ao vivo. Cansada de tantas pressões, Hebe pediu demissão em pleno programa, causando comoção geral. Mas, em pouco tempo, ela seria contratada por Silvio Santos (interpretado de forma surpreendente por Daniel Boaventura) e voltou aos holofotes, não sem provocar novos problemas, agora criticando “alguns” políticos do Congresso Nacional, o que quase lhe custou uma prisão.
Extremamente polêmica, fazia as coisas como queria, entrevistando Dercy Gonçalves e Roberta Close…
Uma coisa tem que ser dita aqui com todas as letras. Esse talvez tenha sido o melhor trabalho da carreira de Andréa Beltrão. Nós, os velhos dinossauros, sempre tivemos um carinho enorme por essa atriz em virtude de sua personagem Zelda Scott em “Armação Ilimitada”. Mais recentemente, ela se destacou como a Marilda de “A Grande Família”. Mas seu talento explodiu todas as escalas em “Hebe”. Dá para perceber como a atriz estudou a fundo sua personagem. Tão a fundo que a gente via a Hebe na nossa frente em todos os seus trejeitos, mesmo com Andréa Beltrão não se parecendo em nada com ela fisicamente. Foi algo semelhante ao que aconteceu com Rami Malek em “Bohemian Rhapsody”, mas muito, muito melhor. Beltrão conseguiu mostrar com perfeição os dois lados de Hebe Camargo: aquele lado que a gente conhece, da mulher comunicativa, extremamente simpática e combativa, desafiando a tudo e a todos e se impondo em toda a sua plenitude; e um lado extremamente frágil, onde ela poderia ter crises de choro ao ver uma crítica negativa sua na televisão ou ser tratada com violência pelo seu marido em crise de ciúmes (também magistralmente interpretado por Marco Ricca, um ator que funciona enormemente bem no cinema). Ou seja, é um filme que foi além da celebridade, que abordou também a figura humana, com todas as suas fraquezas.
Otávio Augusto fez Chacrinha…
Apesar da película mostrar uma Hebe combativa e perseguida pela censura, o filme não fugiu da polêmica e lembrou do apoio da apresentadora a Paulo Maluf, conhecido pelas acusações de corrupção. Nesse momento a gente não pode se esquecer de falar da ótima atuação de Caio Horowicz como Marcelo, o filho de Hebe, sempre uma companhia afetiva e próxima da mãe, que não concordou com esse apoio dela a Maluf e abandona o jantar em que a mãe estava com o político para passar o natal com os empregados da casa a quem tratava com muita amizade, amor e carinho, sendo esse um aspecto muito legal do filme, embora o filho de Hebe tenha dito que não fazia festa com os empregados, apesar de ser próximo deles. Não podemos nos esquecer também da boa atuação de Danton Mello, que fazia o sobrinho de Hebe, uma espécie de braço direito da apresentadora.
Daniel Boaventura como Silvio Santos.
Assim,
“Hebe, A Estrela do Brasil” é um programa imperdível que nos ajuda a desmistificar
e entender um pouco mais parte da trajetória dessa grande celebridade da mídia
que tivemos e que agora podemos conhecer um pouco mais. Vale muito a pena dar
uma conferida, principalmente pelo trabalho majestoso de Andréa Beltrão.
Um importante documentário brasileiro para nossos tempos sombrios. “Torre das Donzelas”, de Susanna Lira, fala do cotidiano de um presídio feminino conhecido como “Torre das Donzelas” durante a época da Ditadura Militar. Quarenta anos depois, as ex-presas políticas se reencontram num cenário que reproduzia o cárcere tal como elas contaram para a produção do filme, o que causou muita emoção. Vale ressaltar aqui que uma das ex-presas políticas é a ex-presidente Dilma Rousseff, que também deu vários depoimentos.
Dilma Rousseff, ex-prisioneira política e ex-presidente da república. Depoimento valioso.
E, como não podia deixar de ser, a primeira coisa a ser dita por elas depois do reencontro no “cárcere” foram as bárbaras torturas que sofreram além da forma extremamente machista e misógina com que os torturadores tratavam as presas. Havia, inclusive, filhos de presas que eram torturados para que as mães pudessem fornecer os nomes de quem eles procuravam, o que significava a morte certa dos delatados. Dilma, inclusive, relatava a semelhança dos porões das torturas com campos de concentração, num lugar ironicamente chamado de “Paraíso”. Ela também disse que o negócio não era pensar como um herói e aguentar a tortura por um dia, mas sempre em doses homeopáticas: posso aguentar cinco minutos, depois mais quatro, mais três, e por aí vai.
As donzelas…
O relacionamento entre as prisioneiras também é relatado no filme. Elas limparam as celas que estavam num estado fétido, reorganizaram o espaço para ficar uma coisa mais humana e que pudesse aumentar mais a união entre elas, conseguiram um fogão para cozinhar, faziam crochê, exercícios físicos. Valia tudo para poder passar por todo o tormento de se estar na prisão. Um detalhe que chamou a atenção foi durante a Copa de 70, quando elas tiveram acesso a um aparelho de TV para ver os jogos da seleção brasileira, mas no noticiário, havia o tormento de saber que alguns companheiros da guerrilha haviam caído em combate, o que poderia ter sido resultado de delações de quem não aguentou a tortura, o que era algo muito difícil pois quem delatava ou não tinha forças para aguentar a tortura era rechaçado pelo movimento do qual fazia parte.
Um espaço recriado…
A prisão também foi um espaço de formação intelectual. Dilma, por exemplo, conseguiu ter acesso a muitos livros de forma clandestina e aproveitou o tempo na prisão para ler e se formar politicamente. Seu grupo, a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, exigia que seus integrantes estudassem, e foi o que ela fez na prisão, até para se esquecer um pouco de que estava lá. Mas uma vez chegou para as prisioneiras um baú cheio de vestidos de luxo vindos da mãe de uma prisioneira. Como resultado, elas começaram um desfile de moda dentro da cela e um dos responsáveis pela prisão, ao ver isso, decidiu dar a elas o direito a um banho de sol, pois, segundo as prisioneiras, ele já devia achar que as moças estavam pirando com tanto confinamento e torturas. Ou seja, se o documentário fala de temas altamente escabrosos como a tortura e a repressão, também há um espaço para pequenos momentos engraçados.
Dilma e suas companheiras de prisão…
Dessa
forma, “Torre das Donzelas” é mais um programa obrigatório, pois relata um período
sombrio de nossa história e é mais um relato que vai contra a opinião daqueles
que acham que não houve crimes na ditadura e que um estado de exceção é a
melhor resposta para tempos de crise. Um documento importantíssimo que deve ter
muita voz.
Mais um bom documentário brasileiro. “Uruguai na Vanguarda”, de Marco Antônio Pereira, faz uma radiografia do país vizinho e nos mostra como a América do Sul conseguiu produzir uma pequena joia de democracia e tolerância, apesar das intempéries conservadoras e autoritárias que varrem o continente desde sempre. Um país que já tem uma agenda progressista desde o início do século passado e que nem mesmo os anos de ditadura militar conseguiram arrefecer.
Pepe Mujica, o presidente mais fofo de todos os tempos!!!
O ápice dessa onda progressista no Uruguai parece, pelo menos até agora, ter sido no governo do presidente José “Pepe” Mujica, um ex-preso político que doava 90% do seu salário de presidente para a caridade, morava numa casinha bem modesta, e que, durante o seu governo, houve grandes avanços, como o direito ao consumo controlado de maconha, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e o direito ao aborto. Temos as entrevistas de muitas personalidades, dentre eles ativistas, professores, políticos, artistas, etc. Vemos até a manifestação de uma cultura africana no Uruguai, expressa pelo candombe, algo que não é muito divulgado por aí e que esse documentário reserva um tempo considerável. Só é pena que “Pepe” Mujica não tenha sido entrevistado exclusivamente para o documentário, que se limitou a mostrar imagens de arquivo dele juntamente com áudios de algumas de suas falas. Seria um depoimento obrigatório e inestimável para a película.
O candombe. Raízes africanas no azul celeste…
A grande impressão que temos quando vemos esse filme é que lá a democracia conseguiu dar certo na América Latina. Mesmo que, em todos os lugares tenhamos problemas sociais (o que aparece no filme também), o Uruguai conseguiu se colocar numa posição realmente de vanguarda, sendo não somente um exemplo para a América Latina, mas para o mundo também, nadando completamente contra a maré do conservadorismo reinante no mundo hoje. A diferença fica ainda mais gritante quando comparamos o país vizinho ao nosso e, confesso, dá até uma invejinha (no bom sentido do termo, é claro) de nossos hermanos celestes. Mas esse filme tem uma grande vantagem. Ele mostra que, quando a sociedade se mobiliza e luta pelo que quer e seus direitos, não há governo que possa segurar a vontade do povo, caso contrário ele está fadado a ser retirado do poder. O nível de consciência e engajamento político do povo uruguaio é gritante na película e mostra que é altamente possível a mobilização e a conquista de direitos sociais, dando à gente, que tem vivido em trevas absolutas, um pequeno sopro de esperança.
Uma sociedade muito mobilizada…
Dessa forma, “Uruguai na Vanguarda” é um filme obrigatório e um documento importantíssimo, pois mostra como a democracia e o progressismo são frutos de uma vontade política de uma sociedade mobilizada. Vale como exemplo para a nossa sociedade retrógrada, conservadora e letárgica.
Uma
co-produção Japão/Uzbequistão/Qatar dirigida por Kiyoshi Kurosawa. “O Fim da
Viagem, O Começo de Tudo” é um filme, no mínimo sufocante. Uma história de dar
dó. E uma história que espelha bem a situação de choque cultural. Vamos lançar
mão de spoilers aqui.
Yoko. Na frente das câmaras, ela precisa mostrar energia e alegria…
O
plot é muito simples. Uma equipe da tv japonesa está no Uzbequistão e faz uma
série de reportagens sobre o país. Quem protagoniza tudo isso é a jornalista
Yoko (interpretada por Atsuko Maeda), uma moça pequenininha e tão frágil que
parece que vai quebrar na menor brisa. Mas ela é muito profissional e cai no
seu trabalho de cabeça. A moça produz, junto com a equipe, vários temas
exóticos: tentar pescar um peixe de dois metros, experimentar a exótica culinária
local com direito a arroz cru, andar num violento brinquedo de um parque de diversões,
se aventurar pelo bazar local e se perder numa estranha cidade, e por aí vai. O
choque cultural é muito forte, pois a população local sempre toma atitudes
muito duras e inflexíveis com relação a tudo. Se, na frente da câmara, Yoko tem
que mostrar muita alegria e energia, por trás ela desaba, pois está longe do
namorado, tem um cotidiano muito penoso na viagem e sente que se distancia de
seu verdadeiro sonho que é se dedicar à carreira de cantora. E assim, nossa Yoko
leva as suas tarefas com muita coragem e profissionalismo, mesmo que isso
corresponda a, praticamente, uma espécie de autoimolação.
Mas, na verdade, a coisa é bem diferente…
Se o diretor Kiyoshi Kurosawa queria que a gente se compadecesse e sentisse pena da pequena Yoko, ele conseguiu. A rotina massacrante que a pequena jornalista enfrentava era praticamente uma tortura para ela. E logo a gente se solidariza e estabelece um elo com a personagem. Definitivamente, o momento mais agônico do filme está no violento brinquedo do parque de diversões onde ela é obrigada a ir três vezes consecutivas, mesmo sob os alertas do dono do brinquedo, que achava que a repórter tinha uma estatura de criança e que não poderia sobreviver ao forte impacto no corpo que o brinquedo provocava. Os gritos de Yoko chegavam a dar desespero. Foi uma coisa um tanto bizarra e até meio doentia ver tudo aquilo. Ponto para a atriz Atsuko Maeda, que, podemos dizer com convicção, é a estrela central onde toda a história do filme orbita.
Conhecendo um país belo, mas muito estranho…
As
situações de choque cultural também eram bem marcantes. O povo uzbeque, com sua
língua e seus hábitos muito diferentes, chegavam a aterrorizar Yoko, que, volta
e meia, saía correndo pela cidade e tinha o incrível talento de se enfiar nos
lugares mais ermos e escuros. É sintomática a situação em que ela, tomando
imagens da cidade, é cercada por guardas que falam um idioma totalmente
estranho e querem lhe tomar a câmara. Nesse momento, seu profissionalismo fala
mais alto e ela foge, sendo perseguida e presa pela polícia. Não fosse a ajuda
do intérprete, ela não teria como sair sozinha daquela situação, até por estar
totalmente amedrontada. Como se tudo isso ainda não bastasse, ela ainda soube
de um incêndio numa refinaria em Tóquio onde seu namorado (que é bombeiro)
poderia estar e ter morrido, deixando-a sozinha, pois ela não falava com sua família.
É muita judiação para uma japonesinha só!!!
Situações de medo extremo…
Mas o filme tem momentos lúdicos. Um grande momento é quando o intérprete da equipe de TV sugere que eles façam uma reportagem no teatro da capital, que foi erguido por prisioneiros japoneses da Segunda Guerra Mundial. Um teatro em que Yoko esteve e onde se imaginou cantando. Só é pena que o diretor da equipe não tenha aceitado a ideia pois não seria atraente para o público do programa. Mas o mais lúdico foi o desfecho. Vemos Yoko cantando no alto de uma montanha, com uma linda paisagem ao fundo. Apesar de ter sido muito piegas, é até compreensível, uma espécie de prêmio de consolação para a moça, que sofreu tanto no filme. Isso sem falar que Maeda é uma artista pop nipônica.
… mas ela era extremamente profissional…
Assim,
“O Fim da Viagem, O Começo de Tudo”, é uma película que, apesar da tortura,
vale a pena ser vista, principalmente em função da doce personagem Yoko,
martirizada toda a vida, mas com quem a gente rapidamente se simpatiza e se
solidariza. Experiência agônica, mas reflexiva.