Batata Movies – Eva Não dorme. Cadáver E Fragmentos.

Cartaz do Filme

Uma co-produção França, Argentina e Espanha paira em nossas telonas. “Eva Não Dorme” é um filme que busca desmistificar um mito. E quanto mais ele tanta fazê-lo, mais o mito fica forte. É a história de um corpo, muitas vezes amado e violado, que passou décadas a fio numa jornada de martírio até encontrar o seu merecido descanso eterno.

Embalsamando um corpo

E qual é o corpo em questão? O leitor mais atento já deve ter verificado no título que se trata de Eva Perón, uma espécie de mãe dos menos favorecidos na Argentina e verdadeiro símbolo nacional. Até hoje, quando passeamos nas ruas de Buenos Aires, sentimos a sua presença muito forte e viva, nos prédios, bancas de jornal e em qualquer lugar que você vá, sobretudo no cemitério da Recoleta, ponto turístico e cuja sepultura é muito visitada. O filme é muito bem dividido em três atos. O primeiro mostra a morte de Evita, o funeral e o embalsamamento. Se num primeiro momento, há uma enorme morbidez envolvida, a coisa descamba posteriormente para um certo momento de placidez, sobretudo quando o médico responsável pela preservação do corpo da ex-primeira dama modela o rosto do cadáver a seu bel-prazer, retirando-lhe a tensão e restaurando parcialmente seu sorriso. O segundo ato mostra um coronel trasladando o corpo para a Europa, numa operação altamente secreta e que conta com a ajuda de um soldado novato que não sabe o que o caminhão em que estão transporta. Aqui há todo um duelo psicológico entre os dois personagens que atinge as raias do altamente angustiante. Já a terceira história avança ainda mais no tempo e mostra o sequestro de um general por um grupo guerrilheiro de esquerda que pretende repatriar o corpo de Evita, obrigando o general a dar informações de como recuperar o cadáver sob a pena de matar o militar. As tentativas mal sucedidas do general em obter informações também são muito tensas.

Cenários escuros e claustrofóbicos

A escolha em se dividir o filme em três pequenas histórias fragmenta a narrativa, tirando o espectador de sua zona de conforto. Mas o filme tem uma característica ainda mais forte. Ele é altamente soturno e claustrofóbico, tal como se todo o sofrimento infringido ao cadáver jogasse uma espécie de maldição sobre todos. Os cenários das três histórias são apertados e escuros (uma sala onde ocorre o embalsamamento, o interior da caçamba de um caminhão, uma prisão num aparelho de um grupo guerrilheiro). As frontes dos personagens são fantasmagóricas, onde cada história (talvez com exceção da primeira) exibe uma tensão crescente que termina numa explosão de violência. A escuridão da tela se irmana com a escuridão da sala de cinema e traz para o espectador uma sensação de sufocamento. Não dá para ficar indiferente a essa película.

Denis Lavant, o melhor do filme

E os atores? Gael Garcia Bernal, o grande medalhão do elenco apenas “passeia” no início e fim do filme, aparecendo pouquíssimo e, talvez, demasiadamente jovem para interpretar um militar golpista. Daniel Fanego, o general Aramburu, sequestrado pelos guerrilheiros, surpreendeu colocando frieza num personagem que estava numa situação desesperadora à beira da morte. Mas o grande nome do filme, sem a menor sombra de dúvida, foi Denis Lavant, interpretando o coronel da segunda história. O homem arrasou com sua interpretação de um militar rude e grosseiro, um cara que dava medo, principalmente por sua face altamente rugosa e cavernosa que a iluminação muito débil hipervalorizou em tons de claro e escuro assustadores. Nem lembrava o personagem (ou personagens) que interpretou no filme super doido Holy Motors. Sua atuação já vale o preço do ingresso.

Boas imagens de arquivo

Assim, “Eva Não Dorme” é um filme que, apesar de falar um pouco do que aconteceu com o corpo de Evita, e de acabar reforçando o seu mito ao invés de desmistificá-lo (muitas imagens de arquivo e sons de seus discursos são usados), traz outros elementos, como a construção das três histórias num clima altamente angustiante e sufocante, e ainda traz a soberba atuação de Denis Lavant como a cereja do bolo. Vale a pena dar uma conferida neste.

Batata Movies – Planeta Dos Macacos, A Guerra. Um Digno Desfecho.

                                       Cartaz do Filme

Estreou “Planeta dos Macacos, A Guerra”, encerrando a saga de César e de seus companheiros símios. Confesso que conheço pouco dos filmes originais e séries lá das décadas de 60 e 70 mas, depois de ver todos os filmes da nova safra, pode-se dizer que as películas referentes à história de César são muito instigantes e, acima de um mero filme de ação, trazem também um convite à reflexão, algo pouco usual para um blockbuster, mostrando que a história pode ser encarada como uma ficção científica bem respeitável.

           César, entre a compaixão e o ódio…

Mas, no que consiste a trama? César (interpretado por Andy Serkis) e seu grupo estão escondidos nas matas e rechaçam qualquer ataque do coronel que lidera os humanos (interpretado por Woody Harrelson). Entretanto, os símios estão submetidos a uma pressão cada vez maior dos humanos até que, num ataque surpresa, o coronel mata a esposa e o filho mais velho de César. O líder dos macacos decide retirar o grupo da floresta mas ele não o lidera, buscando vingança contra o coronel, não sem ser seguido por alguns de seus amigos.

Infelizmente, para fazer uma análise mais razoável do filme, alguns spoilers serão necessários aqui. Antes de mais nada, a película ensina a velha lição de que a vingança não leva a lugar nenhum, muito pelo contrário. Ao procurar caçar o coronal e esquecer o seu povo, César é severamente punido pelas circunstâncias, chegando a ser acusado de emotivo pelo coronel (no qual o humano está coberto de razão). É muito interessante notar as referências ao personagem Koba, que no filme anterior (“Planeta dos Macacos, A Revolta”) nutria um ódio sem fim pelos humanos e queria destruí-los, ao contrário de César que, apesar de sua profunda bronca contra os humanos, ainda tinha alguma esperança de coexistência pacífica. No presente filme, César é mais tomado pelo ódio e faz movimentos cíclicos de aproximação e afastamento de Koba que o assombra em visões e pesadelos, ora com ódio extremo aos humanos e, principalmente, ao coronel, ora com algum sentimento de compaixão e noção de que a vingança não leva a nada, já que seu amigo Maurice, interpretado por Karin Konoval (!), adotou uma menininha humana que havia ficado sozinha. Essa garotinha, Nova (interpretada por Amiah Miller), vai despertar surpresa em um César tomado pelo ódio ao cair em prantos perante a morte de um integrante do grupo de macacos. Assim, o personagem principal do filme oscila entre esses dois pólos: o da guerra e o da paz, o do ódio e o da compaixão.

                     Um coronel enlouquecido

Lamentavelmente, a tão prometida guerra final entre humanos e macacos não acontece. Houve muitas batalhas sangrentas, mas não houve um desfecho épico de guerra entre humanos e macacos. Nesse ponto, o filme pareceu tropeçar no próprio título e trocar gato por lebre. Mesmo assim, tivemos uma boa sequência final de ação, muito empolgante.

Nova, símbolo de redenção…

A arrogância humana em se querer brincar de Deus é também lembrada, por incrível que pareça, pelo próprio coronel. Houve uma preocupação em se justificar algo que acontecia nos filmes mais antigos. No “Planeta dos Macacos” original, os humanos nao falavam e se comportavam como animais irracionais. Na nossa presente película, esse estado animal dos humanos é provocado pela mutação do vírus que já atacou a raça humana nos filmes anteriores do século 21, o que fez o coronel “pirar na batatinha” e exterminar também os humanos infectados. Essa mutação seria um castigo à arrogância humana, nas palavras do próprio coronel.

Assim, “Planeta dos Macacos, a Guerra”, nos dá um digno desfecho à saga de César e de seus companheiros, pois é um interessante filme de ação que lançou reflexões sobre o sentimento de vingança e a arrogância humana. Apesar de não haver um conflito final propriamente dito entre humanos e macacos, a história optou por outras direções que não deixaram o desfecho menos interessante. E, além disso, tivemos boas atuações de Andy Serkis, (mesmo “virtualizado” pelo CGI) e Woody Harrelson. Vale a pena dar uma conferida.

https://www.youtube.com/watch?v=XvpSBIrrOxc

Batata Movies – Era o Hotel Cambridge. Cosmos No Microcosmos.

Cartaz do Filme

Um filme brasileiro, dirigido por Eliane Caffé, resistiu bravamente em nossas telonas. Confesso que, pela vida atribulada de todos os dias, não estava tendo uma oportunidade de assistir “Era o Hotel Cambridge”. Mas ele resistiu bravamente no circuito e permaneceu nas salas do Estação Botafogo até este humilde articulista ter condições de assisti-lo. E a resistência do filme em permanecer nas telonas se assemelha à resistência que também vemos no filme. Uma resistência que mostra as mazelas da desigualdade social em nosso país.

José Dummont, grande destaque do filme

Vemos aqui a saga de um grupo de sem-teto que ocupou um prédio em plena cidade de São Paulo em busca de moradia. Nesse grupo, temos de tudo: desabrigados, retirantes nordestinos, refugiados estrangeiros vindos da Palestina e do Congo, etc. Todos eles vivem o dia a dia de lutar contra as más condições de infraestrutura de um prédio outrora abandonado e, ao mesmo tempo encarar as ameaças de despejo e reintegração de posse determinadas pela justiça e feitas de forma truculenta pela polícia, num reflexo das disparidades que acontecem no Brasil: de um lado, temos donos de grandes imóveis que os mantêm abandonados, em estado degradante, cheios de lixo; e, de outro lado, temos toda uma multidão de pessoas que não tem para onde ir, não tem condições de bancar um aluguel, muito menos comprar um imóvel, cujos preços extrapolam a realidade de qualquer brasileiro médio (nem digo na linha de pobreza!) e que precisam, desesperadamente, de um lugar para morar. Agrava-se a isso a situação de imigrantes estrangeiros que fogem da guerra em seus países e que não tem qualquer ajuda do governo por aqui, governo esse que, diga-se de passagem, não atende nem os brasileiros e resolve os problemas sociais como se fossem caso de polícia, como dizia o antigo politico da República Velha Washington Luís.

Sem-teto: grande diversidade

O filme conta com dois grandes trunfos; Temos a grande presença de Suely Franco, que faz uma idosa meio maluquinha, mas muito amorosa e atenciosa. A atriz conseguiu transbordar simpatia com a personagem. Mas o grande nome do filme é o ultraversátil e polivalente José Dummont, o cara! Ele fazia um ator sonhador, que comandava um grupo de teatro no prédio ocupado, e roubava a ação com toda a sua grandiosidade quando aparecia na tela. Sem a menor sombra de dúvida, a película perderia muito sem a presença desses magníficos atores que a grande mídia parece não dar muita bola, mas que ainda têm muito talento para desfilar em filmes, peças, novelas, etc.

Suely Franco (esquerda). Outro grande trunfo da película

O filme tem o grande mérito de alternar as filmagens da história com cenas reais de ações de despejo promovidas pela polícia, numa busca de se entrelaçar a realidade com a ficção, num filme que nada tem a ver com a ficção, talvez somente uma liberdade poética que todo cinema tem.

A diretora Eliane Caffé

Assim, “Era o Hotel Cambridge” é mais um filme essencial, que denuncia uma situação social grave e faz um convite à reflexão. Ou seja, além dos problemas de desigualdade que já existem por aqui, a coisa se complica mais com a questão de refugiados políticos estrangeiros, pois eles engrossam a fileira de miseráveis que existe em nosso país e que são tratados pelo poder público como lixos que devem ser varridos para debaixo do tapete. Um filme essencial que resistiu bravamente no circuitão, assim como os inúmeros sem-teto do país que lutam pela dignidade mínima da moradia. Não deixe de assistir, agora no home vídeo.

Batata Movies – A Múmia. Ação E Sensualidade.

                   Cartaz do Filme

Tom Cruise está de volta, desta vez mexendo com uma ideia aparentemente já esgotada: as antigas múmias do Egito e o terror que elas trazem. As últimas tentativas foram há um punhado de anos, que renderam alguns filmes estrelados por Brendan Fraser e Rachel Weisz, que traziam muita ação, efeitos especiais um tanto primários até para a época e muita, muita galhofa. Se Tom Cruise embarcasse nessa, a coisa não vingaria. E ele não embarcou, o que rendeu um filme suficientemente bom, apesar de alguns problemas, como todo filme tem.

                                Cruise de volta!!!

A história tem como protagonista Nick (interpretado por Cruise), um caçador de tesouros sem qualquer escrúpulo, acompanhado de seu amigo Chris (interpretado por Jake Johnson). Durante uma incursão no Oriente Médio, em pleno Iraque, onde no passado viveu a civilização da Mesopotâmia, Nick e Chris se envolveram numa tremenda enrascada e se viram indefesos perante um ataque de iraquianos. Nick pediu um ataque aéreo, o que colocou os iraquianos em fuga e abriu uma tremenda cratera no chão, que revelou ruínas… egípcias (!). O exército americano veio prestar assistência e, com ele veio a arqueóloga Jenny (interpretada por Annabelle Wallis), que havia sido roubada por Nick. O produto do roubo era um mapa que poderia levar a grandes achados. Assim, os dois exploram a tal cratera que tem um sarcófago escondido. Esse sarcófago continha a múmia de uma princesa maligna, que trará o mal de volta à Terra e que tem uma ligação com Nick em suas encarnações anteriores. Agora, caberá a Nick fugir do encalço da múmia maligna.

Dá para perceber que o enredo é um tanto simplório e serve apenas como um pano de fundo para as famosas cenas de ação de porrada, bomba e tiro. Pelo menos, houve uma preocupação de se apresentar de forma detalhada a vida da princesa que se virou para o lado do mal e acabou mumificada viva por isso. Aliás, a ideia de uma múmia mulher foi bem interessante no filme, com direito ao envolvimento com o mocinho protagonista. E que múmia era aquela! A atriz Sofia Boutella (que rima com aquele chocolate que todo mundo gosta), que interpretou a princesa, era linda de morrer, colocando no chinelo a mocinha, uma lourinha muito da sem graça.

                                Que múmia!!!!

Agora, uma coisa que ficou um tanto exótica e desnecessária foi a forma como Russell Crowe foi utilizado no filme. Ele era uma espécie de pesquisador que procurava manifestações malignas na Terra para detê-las. Seu sugestivo nome de Dr. Jekyll trazia suspeitas e temores que logo seriam confirmados: o homem se transformava numa espécie de  monstro, bem ao estilo de Mr. Hyde, algo totalmente fora de propósito num filme referente a uma… múmia. Uma pena, pois a presença de Crowe estava muito boa no filme, até surgir esse, digamos, equívoco. Pelo menos, Cruise não decepcionou e os momentos com Boutella foram muito bons, principalmente no que se referia à sua vida pregressa no Egito. No mais, as cenas de ação de sempre, com direito a uma pequena homenagem aos filmes da época de Brendan Fraser, com uma nuvem ameaçadora de poeira com a carinha de nossa vilã. Pelo menos, não se caiu na cilada de se fazer um desfecho à la happy end, o que deu um pouquinho mais de credibilidade ao filme e um gancho para uma possível continuação.

    Personagem de Russell Crowe. Nada a ver…

Assim, “A Múmia” leva o gênero mais à sério, ao contrário dos últimos filmes. Entretanto, a película pecou por uma história relativamente simplória que colocou as cenas de ação em primeiríssimo plano e que fez um mau uso de Russell Crowe. Um divertimento moderado e um filme bem descartável, daqueles que a gente vai esquecer logo.

https://www.youtube.com/watch?v=5w7eXmp6qp8

Batata Movies – Dunkirk. Inimigo Oculto.

                 Cartaz do Filme

Um verdadeiro filmaço paira em nossas telonas. “Dunkirk”, escrito e dirigido pelo grande Christopher Nolan, que dispensa apresentações (“Batman”, “Interestelar”, entre outros) é mais um daqueles filmes que abordam a ampla e rica temática da Segunda Guerra Mundial, uma verdadeira fonte inesgotável de películas. Mas esse filme não se trata do heroísmo pela vitória dos “mocinhos” em cima dos “bandidos”. Apesar de existir o claro maniqueísmo, essa é uma película onde o heroísmo está na sobrevivência de uma retirada. Escapar vivo de uma situação adversa é o grande objetivo. São tempos de medo e de incertezas de se você estará vivo ou morto em um ou dois segundos, quando se está praticamente indefeso e sem condições de lutar.

Kenneth Branagh, um oficial que tem que evacuar milhares de soldados

O palco é a cidade de Dunquerque, na França, em maio de 1940, onde tropas aliadas inglesas, francesas e belgas foram encurraladas pelos famosos tanques Panzers alemães. Restou aos soldados ingleses evacuarem e eles esperavam nas praias a vinda de embarcações inglesas para atravessar o Canal da Mancha e retornarem a seu país. Foram evacuados 300 mil soldados, um número muito acima do esperado, na chamada Operação Dínamo. Mas a evacuação foi muito difícil, pois os nazistas imprimiram violentos ataques aéreos e de torpedos, afundando muitos barcos ingleses e provocando muitas mortes.

              Tom Hardy em batalhas aéreas

O filme irá abordar justamente como foi essa retirada, onde as tropas eram massacradas pelos ataques alemães enquanto esperavam indefesas nas praias. O filme teve o mérito de se dividir em várias pequenas histórias que iam se correlacionando no desenrolar da exibição. Para que isso aconteça, duas coisas são muito exigidas logo de cara: um bom roteiro e uma boa montagem, quesitos em que o filme tem grandes virtudes. Deve-se ter o cuidado de se dar a mesma atenção a todas as histórias que ocorrem concomitantemente, para que uma história não fique mais importante que outra, assim como os nodos onde as histórias se encontram precisam estar muito bem situados na estrutura narrativa para que não aconteçam atropelos. E nesse ponto, o filme foi muito bem, criando uma ótima trama que prendia nossas atenções o tempo todo. Nas pequenas histórias, tínhamos várias situações: o soldado inglês que precisava arrumar um meio de escapar, o soldado francês que era proibido de escapar em local reservado aos ingleses, os oficiais ingleses que eram responsáveis pela evacuação, o pai e o filho civis que levam sua pequena embarcação para resgatar soldados, os aviadores da RAF que travavam verdadeiras batalhas aéreas contra os aviões da Luftwaffe. Cada história tinha a sua especificidade e seu grau de dramaticidade, dando-nos uma interessante ideia do que aconteceu no litoral francês naqueles sombrios dias de maio de 1940, quando o avanço nazista estava em plena ascensão.

    Mark Rylance, um civil pronto para o resgate…

O elenco traz entre os protagonistas um grupo de atores pouco conhecidos. Entretanto, há três nomes de peso: Mark Rylance, Oscar de melhor ator coadjuvante ano passado por “A Ponte dos espiões”, no papel do pai que conduzia a embarcação civil para salvar os soldados, o “Mad Max” Tom Hardy, na pele de um dos aviadores, e o grande Kenneth Branagh fazendo um dos oficiais que coordenava a evacuação. Só com esses “coadjuvantes” o filme já merece uma conferida.

É muito curioso perceber aqui como os nazistas eram praticamente não apareciam, constituindo-se num verdadeiro inimigo oculto, sem rosto. Não vemos um instante sequer a face de um soldado alemão. Essa forma de se retratar o oponente na guerra cai como uma luva na propaganda que se fazia do inimigo em dias de guerra real, onde o país adversário era colocado como o verdadeiro demônio a ser batido e a ameaça iminente à soberania e ao nacionalismo de seu país. O inimigo não tem cara, família, cultura. É a entidade maligna que ameaça sua esposa, seus filhos, seus pais, a sua forma de ser e de viver. Essa propaganda negativa de uma nação beligerante contra a outra talvez seja um dos traços mais cruéis de uma guerra, pois colocam culturas inteiras em rotas de colisão e de destruição.

Assim, “Dunkirk” é um programa imperdível. Mais um excelente filme de guerra, muito bem escrito e montado, com efeitos especiais altamente realísticos e um ótimo elenco de apoio. Não deixe de ver.

https://www.youtube.com/watch?v=b7v_6hIa5Ok

Batata Movies – Além da Ilusão. Vendo O Que Não É Visto.

                 Cartaz do Filme

Um interessante filme passou em nossas telonas. “Além da Ilusão” pode ser considerada uma película altamente perturbadora. Um drama altamente pessoal e um tanto psicológico, dirigido por Rebecca Zlotowski ambientado em dias que antecederiam os horrores da Segunda Guerra Mundial.

Duas irmãs muito unidas

Vemos aqui a história de duas irmãs, Laura (interpretada por Natalie Portman) e Kate (interpretada por Lily-Rose Depp). Elas fazem números de mediunidade em bares pela Europa e, com o êxito de suas apresentações, elas marcam sessões privadas, ganhando sua vida dessa forma. Um dia, André (interpretado por Emmanuel Salinger) assiste à apresentação das duas e fica maravilhado com a força da mediunidade. Ele é um empresário do ramo de cinema que passa pela turbulência da transição do cinema mudo para o falado e, ao mesmo tempo, vê o cinema francês perder terreno para o cinema americano. Assim, ele quer algo inovador para a indústria cinematográfica francesa e aposta nas duas irmãs para fazer filmes ligados à paranormalidade, com a intenção explícita de conseguir registrar com a câmara uma alma vagando durante as filmagens. André irá acolher as irmãs em sua casa, fazer sessões privadas, transformar Laura numa estrela. Isso fará com que o empresário e as moças desenvolvam uma relação cada vez mais profunda onde os sentimentos se confundirão muito. Mas nem tudo será um mar de rosas nessa vida a três, já que tempos sombrios se aproximam.

Atuação primorosa de Emmanuel Salinger

Afora a questão da perseguição dos nazistas aos judeus, tema já extremamente batido no cinema, essa película se centra mais no relacionamento entre as irmãs e André. E aí, mais uma vez o filme se ampara na interpretação dos atores. Natalie Portman foi muito bem mais uma vez, aliás, bem melhor que o seu papel em “Jackie”, cuja personagem, apesar de se mostrar forte em alguns momentos, transpirava futilidade em outros. Aqui a personagem Laura tem que ter, simultaneamente, o cuidado de manter a trupe com a irmã caçula e, ao mesmo tempo, protegê-la. Mas a entrada de André na vida das duas atrapalharia um pouco as coisas nesse sentido. E a maturidade e segurança da personagem ficaria comprometida, primeiro pelo deslumbramento em se entrar para o star system, segundo pela insegurança em ver André e sua irmã num relacionamento cada vez mais próximo. Lily-Rose Depp, por sua vez, não decepcionou, embora ela tenha sido um pouco mais eclipsada pelos outros dois protagonistas, o que foi uma pena, já que sua personagem também tinha relevância na história. O que incomodou um pouco foi a discrepância entre a idade da personagem, aparentemente mais nova que a aparência da idade da atriz. Lily-Rose Depp já tem uma cara de adulta e Kate a princípio é adolescente, já que na película se ressaltou a importância da moça continuar seus estudos e sair da vida de apresentações de mediunidade. Agora, quem mais chamou a atenção foi Emmanuel Salinger, com seu personagem André. Sua atuação exerceu grande fascínio e era altamente magnética, prendendo muito a atenção do espectador. Muito ajudou o fato de André ser um personagem altamente sonhador e atrás de ideias inovadoras, o que nem sempre pode ser adequado para um dono de empresa. Mas foi muito cativante sua visão de mundo e, sobretudo, a ternura e carinho com as quais o homem tratava as duas irmãs. A atuação de Salinger foi a grande virtude do filme e ela já se mostrava ainda no trailer, chamando o espectador para assistir à película.

O elenco principal do filme e a diretora Rebecca Zlotowski (de verde) na pré estreia do filme em Veneza.

Assim, “Além da Ilusão” é mais um filme que vale a pena ser visto. Embora de cadência um tanto lenta, vale pela peculiaridade da história e pela força da interpretação de seus atores. Uma boa chance para Portman mostrar seu talento, uma porta de entrada interessante para Depp e uma atuação coroada de Salinger. Vale a pena dar uma conferida.

Batata Movies – Crônica da Demolição. Construir E Destruir.

                                  Cartaz do Filme

Um bom documentário brasileiro em nossas telas. “Crônica da Demolição”, de Eduardo Ades, fala de um tema que é caro a muitas pessoas: o espaço urbano carioca. Mas vai falar desse espaço urbano de uma perspectiva nada romântica ou animadora. Aqui, o espaço urbano é tratado não como preservador de uma memória, mas sim o contrário: de como a nossa memória é sistematicamente apagada e simplesmente enterramos o nosso passado em escombros que são literalmente jogados no lixo, ou vendidos a preços de banana.

                             O Palácio Monroe

O apagamento da memória em questão se refere à destruição do Palácio Monroe, a sede do senado federal quando o Rio de Janeiro era a capital do país e, com a transferência da capital para Brasília, ficou ocioso. Durante o governo do presidente Ernesto Geisel, ou seja, em plena ditadura militar, decidiu-se demolir o palácio. A alegação inicial era de que a demolição era necessária para se realizar a obra do metrô, mas os trilhos passaram ao largo do terreno onde estava o palácio. Falou-se muito em especulação imobiliária, pois como o Rio de Janeiro é uma cidade espremida entre o mar e as montanhas, o preço dos terrenos aqui é muito alto. Mas nada de muito importante foi construído no lugar do palácio. Temos apenas um chafariz tristonho por lá e sem água, além de um estacionamento subterrâneo que só foi construído muitos anos depois da demolição. Assim, ficou a incógnita: por que o palácio foi destruído? Dizia-se, também, que, por ser uma obra eclética e antiga, ele era visto como um verdadeiro “trambolho” que tornava a cidade mais feia, indo na contramão de adeptos de uma arquitetura mais moderna como Le Corbusier e Lúcio Costa. Vemos aqui como também houve o discurso do embate entre a tradição e a modernidade na questão da demolição do palácio. De qualquer forma, fica bem evidente que a destruição do palácio foi uma decisão tomada de cima para baixo, sem qualquer preocupação com a preservação e o patrimônio. O próprio palácio, ao ser demolido, estava abandonado e empoeirado, numa mostra do descaso total com a memória de nosso país. Todas essas ideias são exibidas no documentário por vários especialistas em arquitetura e planejamento urbano, recheadas com muitas cenas de arquivo, que nos ajudavam a ter uma noção exata do que aconteceu do ponto de vista factual.

                                    A demolição

Mas o documentarista não optou por fazer um filme voltado a uma opinião própria e ele deu voz a pontos de vista contra e a favor da demolição. Talvez a maior prova disso (alerta de “spoiler”) seja a imagem final do documentário, onde vemos o espaço do antigo palácio tomado por um gramado cheio de pombos comendo milho, que foi estrategicamente espalhado formando um grande ponto de interrogação, espelhando a verdadeira incógnita por trás dos verdadeiros motivos pelos quais o palácio foi demolido.

                                 Um chafariz seco…

Assim, “Crônica da Demolição” é um documentário altamente recomendável para quem gosta da História da Cidade do Rio de Janeiro e de como seu espaço urbano e tratado ao longo do tempo. É um filme que aborda a delicada temática da preservação da memória, do embate entre a tradição e a modernidade e de como o autoritarismo latente de nossas autoridades simplesmente faz o que quer, pouco se importando com a opinião pública. Um filme muito importante, ainda mais para os tempos autoritários pelos quais nós temos passado.

Batata Movies – Clash. Do Camburão.

                  Cartaz do Filme

Um filme egípcio que é uma verdadeira porrada na cara passou em nossas telonas. “Clash” é um filme que fala de como a condição humana é testada até todos os seus limites. E de como o ser humano, ao fim das contas, tem apenas a si mesmo, por maior que sejam as discordâncias e adversidades entre os grupos sociais.

Qual é o cenário da história? Estamos aqui na famosa “Primavera Árabe”, quando vários países dessa etnia se levantaram contra seus governos autoritários. O maior ícone desse movimento é a sangrenta Guerra na Síria, que continua em curso e já matou milhares de pessoas, inclusive com ataques de armas químicas, que chegam a beirar o corriqueiro. Mas um dos primeiros países onde aconteceram as revoltas foi no Egito, que teve um longo governo militar. Depois de muitos levantes, o governo militar foi substituído por um governo civil liderado por um partido muçulmano. Dois anos depois, os militares retomaram o poder, não sem haver muita turbulência política, com o Egito dividido entre partidários da Irmandade Muçulmana, partido que foi demovido do poder, e partidários dos militares. O momento em que aconteceu esse golpe foi marcado por manifestações de rua de ambos os lados, regados a muita violência policial e um clima de guerra civil no país. É nesse contexto em que se passa o filme, cujo cenário é um… camburão de um caminhão da polícia (!). O filme começa com dois jornalistas sendo presos no tal camburão, que estava vazio. Mas aos poucos, o camburão vai enchendo. Partidários dos militares (!!) também são enfiados lá, confundidos com outra manifestação. Mais tarde, são os partidários da Irmandade Muçulmana que são presos dentro do caminhão. E aí temos um microcosmos da convulsão social do Egito dentro daquele camburão, com dois grupos que se odeiam vivendo dentro de um espaço ínfimo e aprendendo a se relacionar sem se matar. No início, a impressão é a de que haveria um verdadeiro massacre, mas todo mundo se acalmou quando a polícia ameaçou matar todo mundo (!!!). Situação bem pesada.

               Situações para lá de escabrosas

Esse é o tipo do filme que prende muito a atenção, dada a peculiaridade da situação e a denúncia que o filme faz do contexto da vida egípcia dos últimos anos, algo que beira o absurdo. Se ficamos escandalizados com o que acontece nas manifestações aqui no Brasil, no Egito a coisa é bem mais violenta, com direito a policiais alvejados por tiros de metralhadora de manifestantes ou a chuva de pedras de dezenas de manifestantes em viadutos, onde os morteiros também são muito comuns. Mas isso era o que acontecia fora do camburão. O mais importante no filme era justamente a situação de todos que estavam dentro do caminhão. A animosidade violenta do início foi dando lugar, aos poucos, a um sentimento de leve aproximação que depois chegou até a uma amizade, tudo isso ocorrendo em virtude da adversidade e opressão que assolava igualmente a todos. E, para sobreviver a tal pressão, a única saída ali era a solidariedade entre as pessoas, independentemente de qual segmento politico elas pertenciam. Um filme muito importante para se passar por aqui, que está num contexto de animosidade nem tão semelhante quanto ao do Egito, mas nem por isso menos grave.

            Diferentes grupos num microcosmos

Esse, também, é um filme que levanta uma dúvida e um medo com relação ao futuro de nosso país: até que ponto aquele clima de animosidade e de guerra civil que víamos na película pode se reproduzir por aqui? Ou será que isso já não está acontecendo e não é noticiado, dada a extensão do Brasil, e as inúmeras situações de conflito social? Vemos a violência nas ruas quando há manifestações? Mas, e nas comunidades urbanas menos favorecidas, onde o poder público (e a imprensa) não entram? Ou então, a violência no campo, que temos parcas notícias? Para onde toda essa convulsão social nos levará?

                       Muita violência nas ruas

Assim, “Clash” é um filme obrigatório, pois fala de violência, repressão, solidariedade. Um filme que nos faz refletir sobre o futuro que construímos para nós mesmos quando a intolerância e o autoritarismo imperam. Um filme que nos obriga a ficar frente a frente com problemas que não queremos encarar. Não deixe de ver.