Batata Antiqualhas – Jornada Nas Estrelas. Radiografando Um Longa: A Terra Desconhecida.

             Cartaz do Filme

O filme “Jornada nas Estrelas 6, A Terra Desconhecida” seria o último longa metragem da tripulação da série clássica, não fosse “Generations”, onde Kirk, Chekov e Scott ainda dão o ar de sua graça, com a desnecessária morte de Kirk. Entretanto, o sexto filme da primeira tripulação da Enterprise deu um final digno àquela equipe, além de mostrar-se uma obra antenada com o seu tempo e os objetivos iniciais da série lá nos anos 1960. Vamos radiografar esse filme agora.

      Nossa amada tripulação em sua última missão

Só para recordarmos, Sulu é o capitão da Excelsior, uma nave que ele ficou admirando no terceiro e quarto filmes. Ficou a impressão que ele mexeu os pauzinhos certos para pegar a nave. Numa missão, ele testemunhará a explosão de Práxis, a lua klingon que é a principal fonte de energia do Império alienígena. Ao saber disso, Spock toma as rédeas das negociações de paz com os klingons e convence seus superiores a trazer para a Terra o chanceler Gorkon para as conversações.

            O grande trio ainda dando caldo

Obviamente, a Enterprise foi escolhida, pois segundo a frota espacial, os klingons não se atreveriam a gracinhas com Kirk por perto, para desespero do capitão. Contrariado com a situação, Kirk parte com a Enterprise para receber Gorkon. Mas o chanceler é assassinado depois de a Enterprise supostamente ter atirado no cruzador klingon, ter desligado a gravidade artificial e dois supostos membros da Federação terem se teletransportado para o cruzador, matando vários klingons a tiros de phaser, assim como o chanceler. Sob a mira dos torpedos fotônicos klingons, Kirk anuncia a rendição e se teletransporta junto com o Doutor  McCoy para o cruzador para oferecer assistência. Mas os dois acabam presos. O que se sucede é uma história onde a paz está ameaçada por uma conspiração envolvendo membros da federação trabalhando juntamente com klingons para manter o estado de beligerância e nossos heróis tentando resolver esse problema para trazer a paz.

           Encontro com o cruzador klingon

O que torna esse filme especial? Em primeiro lugar, a série clássica foi forjada dentro do contexto da Guerra Fria, onde todos os conflitos entre as nações haviam sido expelidos para o espaço. A noção de fronteira sempre foi um paradigma entre os americanos, segundo Frederick Jackson Turner, onde o povo saiu das treze colônias inglesas da América do Norte rumo ao oeste, expandindo as fronteiras americanas e indo além do Pacífico, pegando o Havaí, mas quebrando a cara no Vietnã. Não é à toa que o espaço é a fronteira final.

Gorkon e Kirk. Velhos guerreiros em busca da Terra Desconhecida

Como no século 23 todos os conflitos terrestres tinham sido abolidos, os inimigos agora são alienígenas como klingons e romulanos, alegorias da ameaça comunista da década de 1960. Mas em 1991, cai o Império soviético. Era necessário, então, um longa metragem com esse desfecho, sendo uma representação do fim da Guerra Fria. Nada mais claro nisso do que a conversa entre Kirk e Spock depois da reunião no QG da frota. Kirk, enfurecido, pergunta por que Spock o colocou naquela rabuda de escoltar os klingons, ao que Spock respondeu: “Há um antigo provérbio vulcano: somente Nixon poderia ir à China”. Emblemático.

Cena do julgamento. Um magnífico Plummer e o “avô de Worf”

Outra característica marcante do filme foi a necessidade de se explicar a presença de um klingon na ponte da Enterprise D (nosso estimado Worf, da “Nova Geração”). A nova série de TV, iniciada em 1987, exigia que em algum momento, a paz com os klingons fosse exibida. O fim da Guerra Fria foi o contexto ideal. Uma curiosidade a respeito é que o ator que interpreta Worf na “Nova Geração” também interpreta o advogado de defesa klingon na magnífica cena do julgamento de Kirk e McCoy (reza a lenda que o advogado seria o avô de Worf). Ainda no universo klingon do filme, temos a presença do consagrado ator Christopher Plummer, o pai ranzinza de “A Noviça Rebelde” (confesso que quando revi “A Noviça Rebelde” depois de “A Terra Desconhecida”, a primeira imagem de Plummer no filme me trouxe um “Q’aplá!”, a saudação klingon, à cabeça).

    Kirk enfrentando problemas em Rurah Penthe.

Gosto muito de ver atores consagrados trabalhando em franquias, acho que isso leva mais credibilidade a elas. A única exigência de Plummer foi que seu personagem Chang não tivesse longas cabeleiras. Mas até as cristas na testa ele aceitou. Genial! Outro detalhe notável foi associar os klingons a Shakespeare. Tudo a ver! Amantes da violência explícita! Por isso que se deve ler Shakespeare no original, ou seja, em klingon!

                  Enterprise A sem escudos!!!!

Mais um detalhe interessante: a relação entre Spock e a vulcana Valeris, que ele considerava ser sua herdeira. Nosso primeiro oficial tem uma afeição praticamente filial pela novata e sua decepção fica muito clara quando descobre que ela faz parte da conspiração e precisa fazer o elo mental nela para descobrir os membros da conspiração. Nota-se que, ao contrário do que ocorria na série clássica, ele não tem o menor pudor de esconder as emoções. Isso por dois motivos: a decepção fora enorme e por estar cercado de amigos de longa data que já sabiam de seu lado humano. De qualquer forma, sempre é bárbaro ver Spock revelando suas emoções, ainda mais numa situação de desalento como essa.

       Spock e Valeris. Afeto e mágoa

Por fim, a conspiração. Se na série clássica a Federação aparece como algo totalmente racional e asséptico a atitudes pouco virtuosas (reproduzindo um espirito talvez de inspiração positivista, totalmente falso para cabeças “menos evoluídas” do século 20), neste filme vemos membros da Federação conspirando junto com klingons para manter a guerra, algo mais palpável com nossa realidade. Esses desvios de caráter de membros da Federação são também vistos em “Deep Space Nine”. Os que conspiram são aqueles que temem um mundo de paz no futuro, a “Terra Desconhecida” que Gorkon brindou no sensacional jantar na Enterprise.

Final feliz. Pela última vez, tripulação salva o dia

Por essas e por outras, “Jornada Nas Estrelas 6, A Terra Desconhecida” é um filme de fundamental importância na franquia mais amada de todos os tempos (na minha modestíssima opinião).

Batata Antiqualhas – Jornada Nas Estrelas 4. Radiografando Um Longa: A Volta Para Casa (Parte 2).

Como e quando usar as metáforas pitorescas?

Voltamos aqui a falar de “Jornada nas Estrelas 4: A Volta para Casa”. Por que esse é o melhor dos longas-metragens? Porque ele foi o mais fiel ao espírito da série. O primeiro longa foi altamente cerebral e artístico, fazendo uma ficção científica altamente intelectualizada. O segundo e o terceiro fizeram alusões a elementos da série (Khan e os klingons), além de abordar temas filosóficos como os efeitos da passagem do tempo na vida das pessoas, ou temas de história presente (para a época que os filmes foram feitos) como a Guerra Fria. Entretanto, os dois filmes estavam embebidos no clima de violência imperante nos filmes de ação da década de 1980, algo que o próprio Gene Roddenberry repudiava.

                         Elo mental com jubarte.

E o quarto filme? Este acertou na mão, pois em primeiro lugar, foi abandonado o manto de violência. Além disso, ele tratou de ser uma ficção científica considerando temas como viagem no tempo e as qualidades e defeitos da humanidade (algo muito explorado na série clássica, principalmente quando Spock criticava os defeitos da humanidade para exaltar seu lado vulcano). Mas o principal: a história trouxe um delicioso humor muito caro à série, onde aconteciam os debates acalorados entre McCoy e Spock, sempre engraçados. O filme tem muitas passagens hilárias, como Kirk xingando o motorista que quase o atropela, o ato de colocar os óculos “no prego” na loja de penhores (“100 dólares é muito?”), o fato de Chekov, um russo, perguntar a um guarda de rua onde ficam os navios nucleares em plena Guerra Fria (nessa cena, em meio aos figurantes, passava uma moça que, despercebidamente, participou do filme e deu a dica a Chekov e Uhura de que os navios estavam do outro lado da baía!), o uso das “metáforas pitorescas” (ou palavrões) por parte de Spock em momentos impróprios, ou a ótima cena do ônibus onde Spock põe um punk para dormir, pois ele fazia muito barulho com um rádio gravador cassete (lembra? Você teve um? Eu tive!). O detalhe é que o punk é um dos produtores associados do filme e foi um dos compositores da música que saía do rádio gravador. A cena do hospital com McCoy o comparando à Inquisição Espanhola também é sensacional! O filme está cheio de situações engraçadas. Mas não de um humor simplório e sim muito inteligente e refinado.

                                 Boa viagem!!!

O choque cultural entre a tripulação do século 23 e a vida no século 20 é outro detalhe digno de atenção e que deu um sabor especial ao filme. Kirk qualifica a cultura do século 20 como “primitiva e paranoica”. Spock identifica altos níveis de poluição na atmosfera como indício de que eles haviam chegado a 1986. As notícias de negociações fracassadas de redução de armas nucleares estampadas nos jornais renderam o comentário rabugento e irônico de McCoy: “É um milagre essas pessoas sobreviverem ao século 20”. Todas essas situações de estranhamento pelos olhos do outro nos ajudavam a identificar os absurdos do mundo daquela época, principalmente num dos temas chave do filme, que era a matança e extinção das baleias. Ao acabar com elas, o homem cavava sua própria extinção, realmente uma forma muito inteligente de falar sobre a questão da ecologia, tão em voga naquela época e que mostrava como o ser humano, por também fazer parte do ecossistema, pode sofrer  consequências se começar a destruir o meio ambiente. O mais triste é que alguns dos absurdos assinalados no filme ainda permanecem muito contemporâneos.

                                      Bye Bye.

As emoções de Spock são obviamente mais uma vez enfocadas. Desta vez porque ele foi reeducado dentro dos padrões vulcanos após “ressuscitar”. Ao fazer seus testes, ele responde simultaneamente várias questões sobre várias disciplinas (como se fizesse um multi enem!)  mas, ao ser perguntado pela máquina como se sentia, ele não entendia o sentido da pergunta. Sua mãe é que irá recolocá-lo no caminho das emoções ao lembrar ao filho o sacrifício de seus amigos humanos para salvá-lo, algo que foi contra todas as implicações lógicas. As situações que aparecem ao longo do filme, como a necessidade de resgatar Chekov do hospital, também auxiliam na forma como o vulcano volta a enxergar a importância das emoções e do sentido de companheirismo, ficando junto a seus amigos na cena corte marcial.

Definitivamente, esse é o melhor filme de todos. Todas as virtudes da série assinaladas. Inteligência e humor eram as características mais marcantes da série clássica. E também essas caraterísticas apareceram em “Jornada nas Estrelas 4: A Volta para Casa”.

Batata Antiqualhas – Jornada Nas Estrelas 4. Radiografando Um Longa: A Volta Para Casa (Parte 1).

               Cartaz do Filme

E chegamos ao quarto longa da tripulação da série clássica. Sem sombra de dúvida, o melhor filme de todos, o de maior sucesso de público. Tem gente que não é fã de “Jornada nas Estrelas”, mas disse que viu “o filme das baleias”, que trazia o otimismo com relação ao futuro, inerente a Gene Roddenberry. “A Volta Para Casa” é o mais fiel longa-metragem à série, além de contar com um excelente roteiro, sendo o auge dos seis filmes produzidos. A equipe de produção disse que se divertiu muito ao fazer o filme, incluindo Leonard Nimoy, que ajudou a conceber a história, assinou a direção e ainda atuou.

     A tripulação da Enterprise agora em 1986

Após os sucessos de bilheteria de “A Ira de Khan” e “A Procura de Spock”, Nimoy recebeu uma espécie de carta branca para fazer o novo filme, ou seja, ele tinha a autorização de colocar sua visão e ele queria fazer uma história sobre viagem no tempo. Harve Bennett, o produtor, só impôs uma condição: que o filme tratasse do tempo presente daquela época, o ano de 1986. Era necessário, portanto, um motivo para a volta no tempo. Foi encontrada a saída da questão da extinção das baleias jubarte. Logo, o filme abordou um tema referente à consciência ecológica que despontava em meados da década de 1980. Foi criada a ideia de uma sonda alienígena que viria à Terra para se comunicar com as baleias, e não os humanos que, segundo Spock, na sua arrogância pensam que são a única espécie inteligente da Terra. Mas, no século 23, as baleias jubarte já estariam extintas e o sinal de comunicação da sonda alienígena interferia nas fontes de energia da Terra e das naves que cruzavam o caminho. Enquanto isso, nossa tripulação saía de seu exílio em Vulcano para retornar à Terra e encarar a corte marcial, depois do sequestro da Enterprise para salvar Spock. Voltando na Ave de Rapina, eles receberam a mensagem de não se aproximar da Terra, em virtude da sonda alienígena, que mandava seu sinal em direção ao mar. Ao receber o sinal da sonda, Kirk pediu a Uhura para verificar como ficaria o sinal dentro da água salgada do mar. O resultado foi o canto das jubartes. Devido à sua extinção, era necessário retornar ao passado para buscar as baleias e transportá-las para o século 23, com o objetivo de fazê-las entrar em contato com a sonda. A Ave de Rapina fará isso contornando o Sol em alta velocidade warp, usando ainda o forte campo gravitacional do astro para aumentar ainda mais a velocidade da nave e, assim, retornar ao passado (essa “dobra temporal” usando o campo gravitacional do Sol foi usada no excelente episódio da série clássica “Amanhã é Ontem”, escrito por D. C. Fontana, que um dia ainda falaremos aqui).

              Kirk e Spock à procura de baleias…

Nimoy quis um filme menos sério que os outros onde, além da busca da solução do problema apresentado, também  houvesse um toque de humor. Essa tarefa ficou a cargo de Nicholas Meyer, o diretor de “A Ira de Khan”, que se surpreendeu com o pedido de Nimoy, mas escreveu a parte do roteiro que tratava da tripulação perambulando pela San Francisco de 1986, enquanto que Benett ficou responsável pela parte do roteiro no século 23. O responsável pela Paramount, Ned Tannen, gostou muito do roteiro, e as filmagens começaram. Para Nimoy, foi fácil trabalhar nas filmagens, pois ele também havia trabalhado no roteiro por um ano e meio.

                              “Hello, Computer!”

Ao se trabalhar com viagens no tempo, a produção do filme esbarrou na velha questão: não se pode alterar o passado. Em vez disso, a produção optou por não ter medo de alterar o passado, desde que se avise isso antes e lançando mão de doses de humor. Vemos tal situação quando Kirk penhora no século 20 um par de óculos que McCoy lhe deu de presente no século 23. Alertado por Spock sobre isso, Kirk responde. “Sim, foi um presente de McCoy e será de novo”. Ou então na cena em que Scott dá a fórmula de alumínio transparente para o dono da fábrica no século 20, em troca das placas que usarão no tanque das baleias. McCoy disse a Scott que ao dar a fórmula, eles estarão alterando o futuro. Ao que Scott retruca: “Por que? Como sabemos se ele não foi o inventor?”. Benett disse que usou essas passagens com o intuito de resolver o problema e tirar os céticos do caminho.

No próximo artigo, continuaremos falando mais sobre esse que foi o melhor de todos os longas da série clássica. Até lá!

 

Batata Movies – Blade Runner 2049. Replicantes Indo Além.

Cartaz do Filme

E estreou o tão esperado “Blade Runner 2049”. A ousadia em dar uma sequência a esse filme antológico da História do Cinema criou uma espécie de ideia geral de que a coisa não daria certo e estaria fadada ao fracasso. Essa é a maldição que os remakes e as sequências são obrigadas a passar: elas têm que ser, no mínimo tão contundentes quanto o filme original e o clima de descrédito é quem dita as regras iniciais, ou seja, o filme já começa condenado a largar atrás nessa insólita corrida de convencimento de público e crítica. Ainda mais com um filme do quilate de “Blade Runner”.

K. e Deckard. Em busca do filho de androide…

E qual foi o resultado? Essa película quilométrica, de cerca de duas horas e quarenta minutos, surpreendeu. Hampton Fancher e Michel Green, os roteiristas, e o diretor Denis Villeneuve conseguiram pegar o espírito da coisa e fizeram uma continuação à altura, tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista narrativo. Mas, mais importante que isso, o filme tinha um clima de “Blade Runner” muito pronunciado, impactando o espectador como poucas vezes se vê hoje em dia. Para que a gente possa falar um pouquinho dessa boa continuação, os spoilers serão inevitáveis.

Sensualismo extremo de holografias nuas gigantes

Vemos aqui a história de K. (interpretado por Ryan Gosling), um androide que faz o mesmo papel que Deckard (interpretado por Harrison Ford) fazia: matar androides descontrolados. Mas, como assim? Depois do problema que os androides da Tyrell Corporation provocaram, a empresa acabou falindo, mas o espólio da empresa acabou sendo recuperado por outro megaempresário, Niander Wallace (interpretado por Jared Leto). Foram construídos novos androides obedientes aos humanos, mas os resquícios da linha anterior de androides permaneciam. Ao eliminar um deles numa fazenda, K. percebeu que havia um corpo enterrado por lá e que se tratava de uma androide fêmea, que tinha dado a luz!!! Ou seja, os replicantes conseguiram se reproduzir, algo que era incessantemente procurado por Wallace. Por uma coincidência de datas na sepultura da replicante e nos implantes de memória de K., ele passou a supor que era o tal filho perdido, embora tivesse nascido uma garota também que morreu em seguida. K., então, irá iniciar toda uma investigação para procurar o paradeiro do filho desaparecido, quem era a mãe e se o pai ainda estava vivo (o leitor mais atento já deve ter descoberto quem é esse pai e assa mãe).

Wallace. Sadismo com serenidade

O filme tem vários elementos interessantes. O principal deles é justamente a capacidade dos replicantes se reproduzirem. Ou seja, eles subiram um degrau no seu estágio de desenvolvimento e viraram a fonte de cobiça não somente de K. como também de Wallace. O mais curioso foi perceber como tal processo de reprodução ocorreu inteiramente ao acaso, sendo uma criação da natureza, ao invés de uma criação do homem, que corre atrás dela para estudá-la e procurar gerá-la artificialmente em laboratório. Esse era, pelo menos, o objetivo de Wallace, curiosamente um pesquisador cego que luta contra as limitações de sua pesquisa e de seus próprios sentidos. Por outro lado, a busca de K. já se revela em busca de identidade e de um passado perdido que pode aproximá-lo dos humanos, algo que o androide busca incessantemente, embora ele namore uma bela mulher virtual, Joi (interpretada pela lindíssima atriz cubana Ana de Armas) que também procura se tornar mais humana, o que é um sério problema, pois não há como se conseguir o prazer do toque. A introdução desses elementos novos já mostra como a agora franquia conseguiu ir além.

Claro/escuro mais expressionista que noir. Pessimismo latente

Mas foi dito acima que todo o clima de “Blade Runner” está lá. Os efeitos especiais conseguiram deixar todo o ambiente ainda mais soturno, onde a poluição e a chuva ácida davam o ar de sua (des)graça. É interessante notar que a Los Angeles de 2049 não é mais aquela metrópole homogênea que foi retratada no filme de 1982. Agora temos a cidade representada como uma espécie de enorme favela, mas há também fazendas, lixões e áreas descampadas, tudo com direitos a claros e escuros viscerais que lembravam menos o cinema “noir” (como o “Blade Runner” original lembrava) e muito mais um cinema expressionista, pelo forte contraste e pelo pessimismo latente impresso nas paisagens e imagens em geral. A coisa de se usar uma iluminação associada a um grande tanque d’água no escritório de Wallace deu um lindo efeito que potencializou o claro/escuro e aumentou o clima soturno da coisa. Ainda, dentro da estética vista em “Blade Runner 2049”, houve uma escolha muito feliz de não redesenhar a estética original. Assim, se por um lado tirou-se as japonesas dos telões de outrora e colocou-se imagens de sensacionais mulheres nuas holográficas (a tal namoradinha virtual de K.), por outro lado os anúncios da Atari e da Pan Am ainda estão lá, assim como a propaganda de uma escola de balé da União Soviética. Esse “Fan Service” ajudou em muito na aceitação do filme por parte dos fãs mais antigos de raiz (pelo menos no meu caso; e não devemos nos esquecer de que a versão de 1982 se passa no ano de 2019). Aliado a isso, não podemos nos esquecer de que algumas tomadas nesse novo filme faziam menção direta a tomadas do filme de 1982. O close do globo ocular está lá, assim como uma prostituta que lembra muito a Pris de Daryl Hannah. O convívio entre o velho e o novo também aparece vívido nessa nova versão. Assim, a modernidade dos patrocínios holográficos virtuais convive com os interiores antigos de casas, seja no apartamento de K., ou na cozinha da fazenda.

Fan Service no fotograma!!!

E os atores? A escolha de Ryan Gosling para protagonista foi boa, segundo as más línguas, pois ele faria muito bem o papel de um robô. Mas, brincadeiras à parte, sua interpretação não comprometeu, apesar de muito plana (quando ele deu uma explosão emocional, a coisa destoou um pouco do conjunto da obra). Ford também foi bem, embora fique o estigma de que um ex-protagonista já não possa fazer muito por causa da idade avançada. Foi bom rever Robin Wright, no papel da tenente Joshi, uma policial que conseguia ser uma chefe bem dura mas compreensiva com o subordinado K. Agora, na minha modesta opinião, quem deu um show de interpretação foi Jared Leto. A forma como ele conduziu seu personagem Wallace, com falas bem contidas e mansas, enquanto cometia as maiores barbaridades, foi de dar medo. É impressionante como a serenidade aliada ao sadismo produz um forte impacto. E Leto trouxe isso muito bem. Seu rosto angelical se encaixa perfeitamente bem nesses papéis mais psicóticos. E o ator parece ter plena consciência disso.

Atari de volta em 2049!!!!

É claro que todo filme tem seus problemas. Na minha modesta opinião, foram dois aqui. O primeiro foi a sua longa duração, que deixou a coisa muito maçante em alguns momentos. Um filme mais curto poderia ter contado a história com mais desenvoltura. O outro problema foi no teste que K. precisava fazer para provar a sua fidelidade de androide aos humanos. Ficar repetindo termos incessantemente não pareceu provar qualquer fidelidade aos criadores ou manter características supostamente humanas. Na versão antiga, a gente entendia quando o teste mostrava quando o androide era pego. Aqui, foi uma espécie de devaneio em que a gente não entendia como o androide era aprovado ou não, o que foi uma pena, pois essa parte no filme original era muito marcante e aqui não foi tão bem trabalhada assim. Pareceu algo jogado somente para a gente se lembrar de que havia testes na versão de 1982.

Não parece a Pris, interpretada por Daryl Hannah em 1982???

Assim, “Blade Runner 2049” é um feliz caso de continuação que deu certo. Se o filme não é perfeito em alguns pontos (como todo filme não o é), pode-se dizer que a película acertou em muitos pontos, mantendo o clima do filme original e ampliando a questão estética e narrativa. Novos elementos foram adicionados sem se esquecer do espírito do original. E essas coisas casaram muito bem. Se você é um grande fã de “Blade Runner”, esse é um programa obrigatório. E esse é o tipo do filme que eu vou comprar o DVD depois, até para poder fazer um estudo comparativo mais profundo. Não deixe de ver.

Batata Antiqualhas – Jornada Nas Estrelas. Radiografando Um Longa: A Procura De Spock (Parte 2).

 

              A Excelsior. Tecnologia de ponta

O terceiro longa da tripulação da série clássica retoma os debates filosóficos. Muito me impressiona a frase de McCoy após a explosão da Enterprise: “Você fez o que qualquer um faria, Jim: transformar a morte numa chance de vida”, ou seja, se o filme começou num tom mais pessimista, a explosão da Enterprise, um dos mais proeminentes ícones da série, traz, nas palavras de McCoy, a direção num futuro novamente esperançoso. Indo ainda na argumentação de um futuro de esperança, alguns veem a ressurreição de Spock carregada de simbologia religiosa, algo que praticamente não era visto na série clássica. Todo o ritual de transferência do Katra, o “fal tor pan”, realizado pela sacerdotisa T’Lar (magnificamente interpretada por Judith Anderson, de 87 anos na época e há 14 anos sem atuar, no alto de seus 1,42 m!!!!) nos remete a representações de profunda religiosidade, assim como o fato de se mencionar que Spock possuía um Katra (alma). Talvez o que mais tenha chegado próximo na série clássica tenha sido o ritual do Pon Farr de Spock, que todos os vulcanos homens têm de sete em sete anos, uma espécie de ritual de acasalamento. Logo, a ideia principal do filme, segundo Nimoy (o sacrifício de um amigo por outro) tem camufladas conotações religiosas, incomuns no universo de Jornada nas Estrelas até então.

Saavik. Vulcana presente na “ressurreição” de Spock

O torpedo Gênese retorna na discussão ética. Agora, o projeto de terraformação é mais visto como uma arma, consequência de um “mito de Frankenstein”, onde o homem, ao irresponsavelmente brincar de Deus e tentar criar vida, traz apenas desgraças e sofrimentos. O filho de Kirk, David, usa protomatéria instável para o torpedo gênese, o que cria um planeta de vida curta que logo se destruirá. Ou seja, o mesmo planeta que ressuscita e regenera o corpo de Spock, acelera seu envelhecimento e pode, inclusive, acabar com ele. Além disso, klingons e Federação disputam a posse do torpedo, que se torna uma verdadeira alegoria das armas nucleares da guerra fria. Assim, essa visão de Gênese alertada por McCoy no filme anterior indica limites ao possibilismo humano, que leva o homem, de forma arrogante, a crer que pode fazer qualquer coisa, brincando de Deus.

A morte de David também é algo importante no filme. Como vemos perdas aqui, não? Esse foi o primeiro longa de Jornada nas Estrelas que vi no cinema e muito me chamou a atenção de ver o Spock morto, o filho de Kirk sendo assassinado, a Enterprise explodindo! Eu, que acabara de chegar ao universo de Jornada nas Estrelas (antes disso, só tinha lembranças difusas de episódios da série clássica e elogios de meu pai a saga lá no início da década de 1970) fiquei chocado. Poxa, mal cheguei e estão acabando com tudo? Talvez a perda mais traumática de um mocinho que eu tenha presenciado antes tenha sido Obi Wan Kenobi, no episódio quatro, alguns anos antes. Mas eu nunca havia presenciado mocinhos sofrerem tantas perdas de uma vez! De qualquer forma, a perda de David, com Kirk caindo sentado no chão mostrou o duro golpe que o aparentemente indestrutível almirante sofrera. E mostra o surgimento de seu ódio mortal pelos klingons, somente superado em “A Terra Desconhecida”.

Os efeitos visuais merecem destaque. Além da já citada Ave de Rapina klingon, a doca espacial adicionou um elemento de grandiosidade, mostrando a Enterprise como parte integrante de algo maior, a Federação Unida de Planetas. A explosão da Enterprise também foi algo muito marcante, sendo um segredo escondido a sete chaves durante as filmagens, em virtude da previsibilidade da ressurreição de Spock, mas infelizmente tornou-se um spoiler mais tarde. A nova nave Excelsior também chama a atenção, com seu número de série NX-2000 (o X indica que ela ainda era um protótipo pronto para testes; vejam que na série “Enterprise”, o número de série é NX-01) e velocidade transdobra (transwarp), com o intuito de ser a nave mais rápida da Federação. Aliás, vamos aproveitar aqui para falar da origem do prefixo NCC 1701. Reza a lenda que esse prefixo foi inspirado em um dos registros internacionais de aviões dos Estados Unidos, NC (só para lembrarmos, a aviação foi uma das inúmeras coisas que Gene Roddenberry fez em vida). Um segundo C teria sido colocado para diferenciação. O 1701 significa que era o 17º desenho de cruzador espacial, sendo o primeiro daquela série.

             Judith Anderson, a dama do teatro

Um outro detalhe importante nos efeitos especiais é a coerência científica da imagem da Enterprise em velocidade de dobra, algo que já havia aparecido em “A Ira de Khan”.. Vemos riscos luminosos vermelhos e azuis saindo dela. Aquilo tem uma motivação fisica, o efeito doppler. Quando um carro vem em nossa direção numa estrada, suas ondas sonoras são comprimidas entre ele e o nosso ouvido, tornando o comprimento de onda (a distância entre duas cristas) menor, fazendo o som mais agudo. Quando o carro passa por nós, a fonte de som (o carro) passa a se afastar e o comprimento de onda aumenta, tornando o som mais grave. É por isso que temos aquela distorção no som do carro quando ele passa por nós. No caso da Enterprise à velocidade da luz, algo semelhante ocorre, mas aí a diminuição do comprimento de onda da imagem da nave que se aproxima está mais próxima da cor azul, dando o aspecto azulado à dianteira da nave (as luzinhas azuis estão mais à frente), enquanto que o aumento do comprimento de onda quando ela se afasta está mais próximo da cor vermelha (as luzinhas vermelhas estão mais na parte traseira da nave). Esse fenômeno, chamado de desvio para o azul (aproximação) e desvio para o vermelho (afastamento) é utilizado em astronomia para calcular velocidades de afastamento e aproximação de corpos celestes (geralmente um sistema binário de estrelas) com relação a nós.

Dobra espacial respeitando o efeito doppler

Alguns fãs não acham “A Procura de Spock” um bom filme (o próprio Roddenberry criticava a violência excessiva contida nele, contaminado pela febre de filmes violentos da década de 1980), mas como tudo o que existe na vida, há coisas boas e ruins, sem falar que o filme teve também boa recepção de público e crítica na época. De qualquer forma, esse longa manteve o fôlego da franquia e adicionou elementos novos como a religiosidade e uma visão mais detalhada dos klingons.

Batata Antiqualhas – Jornada Nas Estrelas. Radiografando Um Longa: A Procura De Spock. (Parte 1)

                   Cartaz do Filme

Falemos do terceiro longa da franquia. Como vimos nos artigos de “A Ira de Khan”, o desejo de se continuar as aventuras da tripulação da Enterprise era premente ao final das filmagens, principalmente porque se percebeu que financeiramente a Paramount estaria dando um tiro no pé caso encerrasse a franquia naquele contexto. Para corroborar essa impressão, o filme havia ido bem nas bilheterias. Nimoy parecia mais por cima da carne seca do que nunca. Tanto que ele pediu a direção do filme, no que foi prontamente aceito (Meyer, o diretor de “A Ira de Khan”, não aceitou dirigir a sequência, pois ficou chateado com as alterações no final do filme; para ele, Spock deveria ter morrido e ponto final). Entretanto, seguiram-se longas semanas de silêncio e nada do projeto ser tocado adiante. Ao ligar para o chefão da Paramount, Michael Eisner, Nimoy foi surpreendido com a alegação de que ele não poderia dirigir o filme, pois ele não gostava do personagem Spock e que a ideia de matá-lo seria do próprio Nimoy, algo que foi desmentido imediatamente pelo intérprete do vulcano. Desfeitos os desentendimentos, as filmagens foram adiante.

                                            Elenco

Só para rapidamente relembrarmos, o filme começa com todas as cenas da morte de Spock em “A Ira de Khan”, para se retomar o gancho. Kirk retorna à Terra com grande parte da tripulação de novatos transferida e ainda sentindo a perda do amigo. Assim, o tom otimista do final do filme anterior se desvanece por completo. McCoy, por sua vez, comporta-se de forma estranha e invade os aposentos de Spock, falando como ele e pedindo para ser levado ao Monte Seleia em Vulcano. Inicialmente, Kirk acha bizarra aquela atitude de McCoy, mas logo entenderá o que está acontecendo quando o embaixador Sarek, pai de Spock, vai à sua casa. Ele interpela Kirk porque o almirante não levou o Katra (alma) de Spock para Vulcano. Kirk disse que Spock não lhe passou o Katra. E aí, observando os arquivos da nave, Kirk conclui que Spock passou seu Katra para McCoy através do elo mental (“Lembre-se”). Assim, os corpos de Spock e McCoy teriam de ir a Vulcano para o cerimonial que daria um fim digno a Spock. Mas o corpo de Spock estava no planeta Gênese, região com acesso restrito imposto pela Federação, onde somente David, o filho de Kirk e a vulcana Saavik estudavam o processo de terraformação. Além disso, a Enterprise, muito danificada e velha, iria para o ferro velho. Kirk, então, terá que violar todas as regras para ir a Gênese e recuperar o corpo de Spock. Mas uma Ave de Rapina Klingon, liderada pelo capitão Kruge (interpretado pelo competente Christopher Lloyd) está no caminho para atrapalhar os planos do almirante. Kruge quer o projeto Gênese para usá-lo como arma. Caberá a Kirk recuperar Spock, que se regenerou ao ser sepultado em Gênese, devido ao processo de terraformação, e enfrentar Kruge.

                                            Kruge

Apesar de não ter sido um filme tão bom quanto “A Ira de Khan”, “A Procura de Spock” tem seus méritos. Em primeiro lugar, deu mais espaço para os klingons nos longas, criando todo um universo para essa espécie alienígena, utilizado inclusive nas séries que viriam. Os inimigos da Terra haviam aparecido apenas no início de “Jornada nas Estrelas, o filme”, onde o capitão da nave era Mark Lenard (o pai de Spock) e os poucos diálogos em Klingon foram feitos por… James Doohan! Isso mesmo, o sr. Scott!!! Em “A Procura de Spock”, foi contratado um linguista para desenvolver o idioma klingon, o mesmo que havia feito o rápido diálogo em vulcano de Spock e Saavik para o segundo filme. A Ave de Rapina, originalmente concebida para os Romulanos, (daí as penas em relevo na carcaça da nave) causou muito espanto, pois lembrava os ombros de um homem musculoso (essa foi a ideia), sem falar que as asas eram móveis. Reza a lenda que Nimoy preferiu usar Klingons a Romulanos, pois os primeiros eram mais teatrais e adequados para trabalhar com uma situação de beligerância que remetia à Guerra Fria (olha ela aí de novo!). Mas a Ave de Rapina permaneceu, é dito, por questões de economia. E, cá para nós, ficou muito bom o design da bichinha! Ainda sobre os Klingons, não podemos nos esquecer do desenvolvimento da maquiagem por Robert Fletcher, que diminuiu as cristas na testa dos Klingons (no primeiro filme elas obscureciam muito os rostos dos atores), mas manteve o estilo. Segundo Fletcher, Gene Roddenberry não gostava dessa maquiagem, pois ele achava que os Klingons deveriam se parecer mais com os humanos, como o era na série clássica. Outras referências, por sua vez, diziam que essas cristas pronunciadas na testa sempre fizeram parte dos anseios de Roddenberry ainda na série clássica. Para finalizar sobre os Klingons, não podemos nos esquecer da excelente e dramática atuação de Christopher Lloyd como Kruge, expressando muito bem o espírito da cultura Klingon e se esforçando para reproduzir as entonações do idioma alienígena recém-criado.

                       Batalhas com klingons

Como “Jornada nas Estrelas” sempre implica em discussões muito vastas, nos vemos na segunda parte desse artigo. Até lá!

Batata Antiqualhas – Jornada Nas Estrelas. Radiografando Um Longa. A Ira De Khan (Parte 2).

 

              Tripulação da Enterprise de volta

Como Khan voltou nesse longa? A U.S.S. Reliant fazia uma expedição para encontrar um planeta totalmente sem vida para lançar o torpedo Gênese, um dispositivo criado pela Dra. Carol Marcus (interpretada por Bibi Besch), um antigo caso de Kirk, que conseguia fazer a terraformação num planeta sem vida. Chekov estava na missão da Reliant. Ao chegar a Ceti Alfa 5, Chekov se depara com Khan, que estava muito revoltado com Kirk, já que o então capitão (e agora almirante) não havia voltado para verificar os progressos de Khan e seus comandados. Seis meses depois de Khan ser deixado lá, o planeta vizinho Ceti Alfa 6 explodiu e transformou Ceti Alfa 5 num lugar totalmente inóspito, onde a companheira de Khan acabou morrendo. Khan, em sua sede de vingança, rapta a Reliant e toma o torpedo Gênese. Como Chekov, sob o efeito de um verme instalado em seu córtex cerebral por Khan, disse a Dra. Marcus que Kirk confiscaria o torpedo, a Dra. entra em contato com o almirante para tomar satisfações. Mas o mal sinal da transmissão e a consequente má comunicação fazem com que Kirk vá para Regula 1 (o planeta em que a Dra. Marcus faz as experiências com Gênese). Lá, a Enterprise encontrará a Reliant, onde haverá uma batalha entre o almirante e o produto desenvolvido por engenharia genética do fim do século XX.

              Khan, um vilão à altura de Kirk

Quais são os destaques desse longa? Em primeiro lugar, algumas discussões sobre as implicações morais de certos avanços tecnológicos. Ao saber do projeto Gênese, o Dr. McCoy o vê mais como uma “arma do fim do mundo”, pois se o torpedo Gênese é utilizado num planeta com vida, ele “apaga” a vida existente para colocar uma nova vida em seu lugar. Já Spock vê Gênese como uma ferramenta que pode criar novos locais habitáveis, a menos que caia “em mãos erradas”. Ao que McCoy retruca: “o que são exatamente mãos erradas?”. Outro avanço tecnológico posto em questionamento é justamente a engenharia genética, que cria espécies consideradas “superiores” a outras, podendo levar a guerras e destruições. A discussão das implicações morais da engenharia genética é um tema bem atual, principalmente quando nos lembramos dos questionamentos envolvidos em clonagens e usos de células-tronco. É notável perceber como uma série de ficção científica da década de 1960 já abordava esses temas, trazendo-os de volta à tona em 1982, quando o longa foi realizado.

           Filme com perdas, até para o Sr. Scott

Em segundo lugar, o filme faz um debate filosófico sobre a vida e a morte. A trapaça que Kirk fez no teste da nave Kobayashi Maru, onde os futuros capitães lidarão com a situação de morte de forma inevitável, mostra a não aceitação do almirante em encarar situações de morte e derrota, que inevitavelmente acontecem. Daí o seu dilema com a passagem do tempo e o grande trauma com a morte de Spock, onde o próprio Kirk reconhece que foi uma lição à sua presunção de sempre enganar a morte. Mas a necessidade de se fazer uma sequência de “Jornada nas Estrelas” acaba redimindo Kirk, pois ele fica ungido de novas esperanças, manifestas na explosão de vida de Gênese e nas palavras otimistas de Spock quanto ao futuro (“sempre existem possibilidades”) nas quais Kirk se agarra. Outro destaque que redime Kirk é a reconciliação com seu filho David (interpretado por Merritt Butrick).

         Com esse berro, nem precisa de rádio!

A presença de Ricardo Montalban no longa também é digna de destaque. Ele chega aos Estados Unidos como um dos ícones latinos da “política de boa vizinhança” promovida pelos americanos durante a Segunda Guerra Mundial, onde astros da América Latina como Cesar Romero e a nossa Carmen Miranda também fizeram parte. Os números de dança de Montalban de sombrero mexicano numa justa roupa verde escura são antológicos! E a sua grande presença como Khan no episódio “Semente do Espaço”, como um inimigo à altura de Kirk também chama muito a atenção. O mais curioso é que, na época, Montalban era o senhor Rourke da série “Ilha da Fantasia”, onde ele usava um terno branco, juntamente com o anão Tatu, e sua postura era muito solene e discreta para com os visitantes da ilha. Para ele retomar Khan, interpretado por ele mais de dez anos antes, foi necessário rever o episódio da série clássica várias vezes para recuperar o espírito selvagem do personagem. Outro detalhe que marcou foram os peitões de Fafá de Belém de Montalban no filme, que segundo Nicholas Meyer, o diretor, eram de verdade. Me lembro na época que a transformação de Montalban de senhor Rourke para Khan (água para vinho) chegaram a chocar. Os diálogos entre Khan e Kirk, onde um procura atingir e magoar o outro (nas palavras do próprio Khan) também são memoráveis. Um personagem realmente consegue tirar o outro do sério. O berro que Kirk dá no rádio (“KHAN!!!!!!”) cheio de fúria nem precisava daquele rádio, Khan já poderia escutá-lo do outro lado do planetóide. Só pareceu um pouco incoerente Khan, que era um sujeito tão inteligente, cair nas pilhas de Kirk de forma tão fácil e previsível. O mais interessante é que os dois personagens não se encontram pessoalmente e o duelo da astúcia dos dois se dá no interior da nebulosa Mutara, onde as duas naves fazem um voo cego e sem escudos, dada a interferência da nuvem nos equipamentos das naves.

      Bom duelo de naves na Nebulosa Mutara

Por fim, a morte de Spock. As cenas dos últimos momentos do vulcano com Kirk são bem convincentes e emocionantes, assim como a cerimônia fúnebre, com Spock sendo lançado ao espaço num torpedo fotônico. Kirk e Shatner pareceram realmente ser uma pessoa só naquele momento de muita dor com a morte de um ente querido. Mas Spock foi lógico até o fim, pois “a carência da maioria sobrepuja a carência da minoria… ou a de um só”.

                             Funeral de Spock

Muitos fãs adoram esse longa que, como pudemos ver, é cheio de elementos que já o diferenciam do primeiro longa, “Jornada nas Estrelas, O Filme”. Questões morais e filosóficas, um bom vilão, um desfecho de morte para um dos principais protagonistas (senão o principal), tornam “A Ira de Khan” uma referência no universo de “Jornada nas Estrelas”.

Batata Antiqualhas – Jornada Nas Estrelas. Radiografando Um Longa. A Ira De Khan (Parte 1)

                 Cartaz do Filme

O segundo longa-metragem da tripulação da série clássica trouxe novos e curiosos elementos para a saga de “Jornada nas Estrelas”. Mas, inicialmente, vamos falar como se deu a produção desse filme. Harve Bennett, responsável por escrever a história do longa, viu toda a série clássica em películas de 16 mm num intervalo de três meses. O que lhe chamou mais a atenção foi o episódio “Semente do Espaço”, onde a tripulação da Enterprise encontra uma antiga nave da Terra, de nome Botany Bay.

                     Harve Bennett com Nimoy

O que sucede em seguida? Nessa nave, encontram-se, em estado criogênico, seres humanos produzidos por engenharia genética na segunda metade do século XX, que são uma espécie de “super-homens”, altamente fortes e inteligentes, que passaram a dominar o mundo e entraram em guerra (as guerras eugênicas). Alguns deles, liderados por Khan, fugiram e se colocaram em estado criogênico, sendo descobertos pela Enterprise em pleno século XXIII. Inicialmente, Khan irá se mostrar um cordial hóspede, mas com o tempo, ele tentará dominar a Enterprise. Obviamente, a tripulação não permitirá que isso aconteça, mas também não acabará com o inimigo, que será enviado para o planeta Ceti Alfa 5 para viver num mundo selvagem que será ideal para sua sede de conquista de Khan. E assim, se plantou a semente do espaço, com um inimigo que não foi derrotado de todo pela Enterprise. Ao fim, Kirk e Spock especulam sobre qual seria o resultado daquela semente plantada. Assim, Harve Bennett teve a ideia de desenvolver essa história no segundo longa. Leonard Nimoy, nosso Spock, foi chamado mais uma vez para fazer o filme e novamente ele negou, havendo especulações de que ele fazia esse charme todo para obter uma vantagem financeira a mais.

                  Khan em “Semente do Espaço”

Foi passado a ele que Spock morreria no filme, dando um desfecho glorioso para o personagem, o que chamou sua atenção. Mas inicialmente ele não gostou do roteiro, pois Spock morreria no início do filme. Coube a Nicholas Meyer, o diretor, reescrever todo o roteiro em doze dias, para espanto de todos, pois além de fazer isso em tempo recorde (segundo William Shatner, o capitão Kirk, ninguém reescreve um roteiro em doze dias), a história ficou boa. Mas, à medida que as filmagens caminhavam para seu desfecho, havia um ar de arrependimento com relação à morte de Spock, principalmente pelo fato de que se extinguiria uma franquia que dava tão certo financeiramente. A exibição para o público teste foi um desastre, pois o filme terminava com o corpo de Spock sendo lançado no espaço, o que provocou um tom fúnebre na plateia, uma noção arrasadora de que “Jornada nas Estrelas” havia chegado ao fim. Decidiu-se, então, dar um novo desfecho (a contragosto de Meyer) em que houvesse mais esperança de uma continuação. Foi pedido a Nimoy que, na cena de sua morte, ele colocasse um gancho que poderia levar a uma sequência. Foi aí que Nimoy inventou o elo mental com o Dr. McCoy inconsciente, falando a palavra “Lembre-se”. Essa cena era vaga o suficiente para se criar qualquer argumento que justificasse um novo filme. Outros elementos interessantes surgiram ao final, como um Kirk mais esperançoso no futuro (seu desânimo com a passagem do tempo e a velhice foi notório ao longo da trama) e a frase de Spock citada por Kirk: “Sempre existem possibilidades”. O epíteto “Espaço, a fronteira final”, etc., narrado por Spock ao fim do filme, nos dá a certeza de que haverá uma continuação e, apesar de ter sido “cafona” (nas palavras do próprio Harve Bennett), tinha que ser daquele jeito, onde até a crítica especializada da época acabou concordando que era a coisa certa a fazer.

Morte de Spock. Grande desfecho e                     arrependimento

No próximo artigo, vamos destrinchar as principais qualidades desse filme para o universo de “Jornada nas Estrelas”. Até lá!