Batata Antiqualhas – Jiraiya, O Incrível Ninja (Parte 1)

Toha, que se transforma em Jiraiya, sem efeitos especiais, simplesmente vestindo a armadura.

Vamos hoje fazer aqui um pequeno retorno a segunda metade da década de 1980, quando a extinta TV Manchete se especializou em exibir seriados japoneses. Todos os que vivenciaram esse período estão lembrados de séries como Changeman, Jaspion, Jiban, Flashman, etc., etc. Até a Globo se rendeu ao “espírito da época”, exibindo séries como Maskman. Mas teve uma série que talvez tenha feito mais sucesso que as outras. Uma série que tinha elementos diferentes da regra geral dos seriados japoneses. Estamos falando aqui de “Jiraiya, O Incrível Ninja”.

Uma família ninja

Quais são os motivos de tanto sucesso de Jiraiya? Em primeiro lugar, era uma série muito vinculada à cultura japonesa, algo que não acontecia com as outras. A febre da arte ninja no Brasil havia ganhado muita força com a série americana “O Mestre”, estrelada pelo Hollywoodiano Lee Van Cleef, na Globo durante uma das férias de verão da década de 1980. Assim, uma série japonesa sobre os ninjas soaria como um grande must. Em segundo lugar, reza a lenda que, dentre os heróis nipônicos da época, Jiraiya era o único que não tinha superpoderes.

Tetsuzan Yamashi, representante da 34ª geração de Togakuri. Na vida real, é traumatologista e divulga a arte ninja. Ou seja, quebra todo mundo e depois cuida na clínica dele.

Toda a sua força vinha de seu rigoroso treinamento para ser ninja, comandado por seu pai adotivo, Tetsuzan Yamashi. Toha Yamashi (nosso Jiraiya) inicialmente reclamava muito da severidade do pai, e da forma complacente como ele tratava seus filhos biológicos, Key e Manabu. Aliás, Toha era tratado como uma espécie de empregado doméstico, sendo obrigado a fazer a comida, lavar e passar a roupa para o pai e para os irmãos. Para piorar a situação, eles não tinham um poder aquisitivo muito alto, sendo obrigados a manter a sua academia ninja num enorme condomínio, recebendo até reclamações da síndica. Toha, inclusive, vivia numa tremenda pindaíba financeira, sendo obrigado a fazer mil bicos e até a fazer aulas de aeróbica na academia, para desespero de Tetsuzan.

Key, irmã de Jiraiya, a ninja Himenin Emiha.

Essas características da série não existiam em nenhuma outra da época e muitas pessoas devem ter se identificado com essas situações cotidianas como fazer as tarefas domésticas e estar com a grana curta. Um grande barato que havia também em Jiraiya era que a série era centrada em torno de uma família. Então, se Toha se sentia discriminado pelo pai e pelos irmãos, vemos, com o desenrolar dos episódios, que o duro tratamento pela família ao nosso herói tinha o propósito de torná-lo mais forte contra seus inimigos e que, bem lá no fundo, todos o amavam profundamente. A relação entre Toha e sua irmã Key é bem tocante. Há um episódio em que Key ajuda uma menininha de um estrato social mais alto a escapar de umas “pit-girls” que faziam “bullying” contra a pobre mocinha. Key foi lá e, como boa ninja, meteu o braço em todo o mundo. A menina então, que não tinha amigas, convidou Key para ir à sua casa. Toha fica sabendo disso e passa a seguir Key pelas ruas, até que a flagra em frente a uma loja onde havia um lindo vestido na vitrine. Quando a irmã vai embora, Toha vai a vitrine e vê o alto preço do vestido. Nosso herói então começa a fazer mil contas e bicos para juntar o dinheiro para comprar o vestido e o deixa em cima da cama de Key, que fica muito emocionada com o esforço do irmão. Devemos nos lembrar que isso acontecia numa série de TV dedicada ao público infanto-juvenil, enquanto que as outras séries eram, em sua maioria, de grupos de adolescentes que lutavam contra monstros de outros planetas. Também havia nelas uma ou outra demonstração de afetuosidade. Mas em “Jiraiya” essas demonstrações ocorriam de forma diferente, eram bem mais intensas.

Manabu, o irmão, que usava um estilingue com bolinhas que soltavam fumaça na cara do inimigo…

Como o assunto é muito vasto, falaremos mais de “Jiraiya” no próximo artigo. Até lá!!! Por agora, veja a abertura de Jiraiya tal como ela passava na Manchete lá na década de 80…

https://www.youtube.com/watch?v=7uNc4nOd0fs

Batata Antiqualhas – Spectreman, A Mais Esculhambada Série Japonesa.

Um homem de lata enferrujada…

 

Vamos hoje nos lembrar de uma antiga série japonesa que passava no SBT, quer dizer, TVS, “Spectreman”. Quem vivenciou os primeiros anos da emissora de Sílvio Santos, teve a oportunidade de testemunhar uma das séries mais exóticas da TV em todos os tempos! Inicialmente exibida na Record, nos anos de 1981 e 1982, a série teve mais destaque quando foi exibida de 1983 a 1990 na TVS.

Enfrentando monstros feitos de poluição. Consciência ecológica

Vemos aqui a história de um androide alienígena, que fora enviado pelos Dominantes, habitantes de Nebula 71, uma espécie de asteroide que vaga pelo Universo. Eles ficavam numa navezinha que parecia dois hambúrgeres acoplados. Essa espécie era altamente desenvolvida e tinha como missão proteger planetas subdesenvolvidos (ou seja, nós) de destruições provocadas por causas internas ou externas. Por outro lado, havia a espécie simióide (ou homens-macaco), que vivia no planeta Épsilon, há quarenta mil anos-luz da Terra, na constelação de Sagitário. O cientista mais inteligente dessa espécie era o Dr. Gori, que queria usar a avançada tecnologia de Épsilon para conquistar novos mundos, ao invés dos projetos pacíficos de sua civilização. Mas seu plano foi descoberto e, com a ajuda de Karas, o chefe da guarda, fugiu de Épsilon numa nave e chegou à Terra com seu capanga troglodita (Karas era um gorilão; o Dr. Gori era um macaco de cabeça branca e roupa lilás) depois de passar por uma tempestade eletromagnética. Ao ver a destruição que o homem causava no planeta com a poluição, o Dr. Gori fica indignado e decide conquistar a Terra, criando gigantescos monstros com os poluentes criados pelo próprio homem. Assim, Spectreman luta contra esses monstros ecologicamente corretos, pois eles são feitos de lixo reciclado, com o objetivo de proteger a espécie humana da destruição e das garras de Gori.

Dr. Gori. O macaco tá certo!!!

Essa foi uma série japonesa que não só tinha o objetivo de entreter, mas também de conscientizar as pessoas com relação aos problemas da poluição (a série foi produzida bem no início da década de 1970, ou seja, os anos de 1971 e 1972). Uma característica marcante era o baixíssimo orçamento, onde podíamos presenciar Spectreman e os monstros destruindo maquetes de prédios de isopor e explosões feitas com álcool, além de raios desenhados nos próprios fotogramas, quadro a quadro. Os monstros eram altamente exóticos também. Tivemos, por exemplo, uma baleia voadora, uma barata gigante e até um rato de duas cabeças, sem falar de muitos outros monstros das mais variadas cores e formatos, passando uma senhora repugnância, pois eram feitos de poluição.

Karas. Disfarçado para passar despercebido pelos humanos.

Para tornar a coisa mais escrachada ainda, a dublagem feita pela própria TVS era simplesmente o fim da picada. A coisa era muito avacalhada. Em certo episódio, Spectreman sequestra (isso mesmo!) Karas, que é entregue ao Dr. Gori depois de uma negociação. Ao ver a atitude nobre de Dr. Gori, Spectreman pensa algo do tipo: “Mesmo aqueles com uma mente perversa ainda têm alguma bondade no coração”. Mas logo após, aparece o Dr. Gori dando um baita esporro em Karas, dizendo que ele tem um “cérebro de pudim de goiaba” (queria saber como é pudim de goiaba em japonês). Em outra situação, surgiu um tal de Capitão Meteoro, uma espécie de zorro envolto em papel alumínio, que lutava contra uma espécie alienígena com a cara toda marrom, sem olhos ou boca. Lá pelas tantas, os vilões mandaram o Capitão Meteoro se render e ele soltou um tremendo “De jeito maneira!!”. Quando os amigos de Spectreman falavam com ele por um rádio, parecia que o dublador estava com um balde enfiado na cabeça, pois o som saía abafado, não especificamente com a sonoridade de um rádio. Vários dos dubladores da série seriam dubladores do Chaves e Chapolin Colorado anos depois. Dr. Gori, por exemplo, era dublado por Carlos Seidl, o mesmo dublador do Seu Madruga, e que, ao fim do episódio, falava de forma tresloucada, “Não percam o próximo episódio deeeeeeeeeeee….”, chegando até a dar uma desafinada em algumas oportunidades. Carlos Seidl e os tradutores não perdoavam e ainda colocavam Dr. Gori chamando Spectreman pejorativamente de “homem de lata”. Ultraseven e Ultraman já haviam sido vítimas do mesmo adjetivo pelo povão.

O rato de duas cabeças

Spectreman obviamente ele tinha uma forma humana e uma identidade secreta, Kenji (interpretado pelo ator e carateca Tetsuo Narikawa, falecido em 2010, com 65 anos). Kenji entrou numa divisão de combate à poluição para estar mais perto dos problemas ambientais e, consequentemente, dos planos de Dr. Gori. Certa vez, um dos amigos de Spectreman perguntou a Kenji a mesma coisa que Lois Lane perguntava a Clark Kent: “Kenji, por que você sempre some quando o Spctreman aparece?”. Mas, ao contrário de Lois Lane, que não tinha ligações sinápticas suficientes para responder a pergunta, esse amigo do Spectreman (era um barbudinho para quem se lembra da série) gritou: “Já sei! Você é o Spectreman!”, ao que Kenji retrucou com um sonoro “Eu não!”, como se ser Spectreman fosse uma doença contagiosa.

O ator Tetsuo Nakikawa, o Spectreman!!!

Outra boa lembrança desta série era a trilha sonora. Era exibida por aqui a versão americana, que tinha um rock de batida bem nervosa com efeitos de teclados eletrônicos. Até hoje, a gente encontra essa música tocando nos varandões da saudade da década de 1980 da vida.

Assim, Spectreman não sai de nossas memórias por ser uma série japonesa muito mal feita, mas até por causa disso, muito engraçada, onde a dublagem exótica da TVS só nos fazia rir mais ainda. Apesar de todo o escracho, a mensagem de alerta contra a poluição tornava essa série diferente das outras, digna de ser recordada aqui na Batata Espacial. e não deixem de ver abaixo a antológica abertura de Spectreman no SBT!!!

Batata Antiqualhas – Furyo, Em Nome Da Honra. Multiculturalismo Em Campo De Prisioneiros.

Cartaz do Filme
Cartaz do Filme

Falemos sobre os filmes de Nagisa Oshima, um diretor japonês que ficou muito conhecido aqui em meados da década de 70, 80, com a película erótica “Império dos Sentidos”. Hoje vamos analisar a ótima película “Furyo, em Nome da Honra” (“Merry Christmas, Mr. Lawrence”), realizada em 1983. Vemos uma crítica ácida de Oshima à sociedade japonesa, tomando como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. A história conta a rotina de prisioneiros ingleses num campo de trabalhos forçados japonês na Ilha de Java em pleno ano de 1942.

Celliers. Postura desafiadora
Celliers. Postura desafiadora

Um dos prisioneiros, o coronel John Lawrence (interpretado por Tom Conti), é um admirador da cultura japonesa e mantém relações, digamos, cordiais, com seus detentores, sendo uma espécie de intérprete entre os japoneses e os prisioneiros. Ele é chamado pelos japoneses para tomar conhecimento de uma relação homossexual entre um soldado japonês e um soldado holandês. O soldado japonês deverá cometer harakiri (suicídio através de uma espada enfiada dentro do ventre) para não viver na vergonha. O quartel é comandado pelo capitão Yonoi (interpretado por Ryuichi Sakamoto) com mão de ferro. Mas o comportamento do capitão sofrerá drásticas alterações quando chega um novo prisioneiro, o major inglês Jack Celliers (interpretado por ninguém mais, ninguém menos que David Bowie). Yonoi se sentirá fortemente atraído por esse oficial inglês que também tem tendências homossexuais. Mas Celliers é altamente insolente e atrevido, lançando mão de uma postura muito desafiadora contra os japoneses, o que vai lhe render muitas punições. E Celliers sabe dos interesses de Yonoi para com ele, o que vai provocar situações um tanto inusitadas no decorrer da história.

Lawrence,o amante da cultura japonesa
Lawrence,o amante da cultura japonesa

O grande atrativo desse filme, apesar do papel protagonista de David Bowie, recai no personagem John Lawrence, que funciona como uma espécie de ponte entre as culturas japonesa e inglesa. Por causa desse fato, ele é incompreendido tanto do lado dos ingleses quanto do lado dos japoneses. A questão dos motivos que levam ao culto suicida do harakiri é apresentada e relativizada. Mas, ao mesmo tempo, existe uma crítica à cultura japonesa no que tange à devoção excessiva ao Imperador e aos antigos deuses dessa cultura, e isso pareceu uma incursão agressiva de Oshima contra os hábitos ancestrais japoneses. Embora o personagem de Lawrence seja de grande relevância para a história, em alguns momentos a coisa pareceu uma forçada de barra, pois, mesmo com seu bom relacionamento entre os japoneses, ele tomava umas bambuzadas. E, depois, ele criticava abertamente algumas atitudes dos japoneses, até com uma dose de sarcasmo, e não tomava nem uma pauladinha. De qualquer forma, essa visão multiculturalista num local tão improvável disso acontecer quanto um campo de trabalhos forçados japonês na Segunda Guerra Mundial foi altamente válida, mesmo que a cultura japonesa tenha sido vista com relativa vilania.

Yonoi, um sádico capitão
Yonoi, um sádico capitão

Igualmente válido foi abordar a questão do homossexualismo no campo de prisioneiros. Se o capitão Yonoi, num primeiro momento, ordena que seu subordinado homossexual cometa Harakiri para não viver na vergonha, o próprio capitão também tinha atitudes homossexuais escondidas, sendo um alvo fácil para as investidas de Celliers, outro homossexual. E aí, o preconceito contra a cultura japonesa ficou meio que latente, já que Celliers era visto pelos japoneses como uma alma maligna que enfeitiçava seu valoroso capitão, tal como uma cultura “primitiva” que endeusa homens.

Beijo em Yonoi. Tilt geral...
Beijo em Yonoi. Tilt geral…

E o que falar da atuação de David Bowie? Plana? Caricata? Talvez… Foi hilária a  sequência em que ele literalmente comia flores para desafiar as ordens de Yonoi, que colocou todos os prisioneiros ingleses em 48 horas de jejum. Seu olhar desafiador para o capitão japonês despertou mais risos do que espanto. Mas o momento em que talvez Bowie precisasse ser mais intenso foi justamente a hora em que sua interpretação ficou mais contida, que foi a cena dos dois beijos que ele deu nas bochechas de Yonoi, perante todos os prisioneiros ingleses e soldados japoneses, onde estes últimos encararam Celliers como um mau espírito que envenenava Yonoi. O beijo de Celliers em Yonoi provocou uma espécie de “tilt” em todo mundo e, talvez aqui, Bowie pudesse ter sido um pouco mais dramático. Mesmo assim, a presença de Bowie não deixa de ser uma curiosidade e atrai mais atenção do público para a película. E não devemos ser muito exigentes com o astro do rock, que não está inserido em sua verdadeira área quando atua para o cinema e tem a coragem (ou cara de pau?) suficiente para encarar tal empreitada…

Eating flowers!!!!
Eating flowers!!!!

Assim, “Furyo, Em Nome da Honra”, é mais um filme altamente recomendável de Nagisa Oshima, pois nos traz a presença de David Bowie em seu elenco e, principalmente, busca fazer uma discussão multiculturalista entre as culturas japonesa e ocidental, ainda que caia, muito provavelmente de forma proposital, em alguns preconceitos contra elementos culturais japoneses. E aí, o dedo de Oshima está bem presente. Não deixe de ver o trailer abaixo.

Batata Antiqualhas – Fome de Viver. Terror Com Requinte.

Por Carlos Lohse

Cartaz do Filme
Cartaz do Filme

Imagine um filme de terror com Catherine Deneuve, David Bowie e Susan Sarandon. Pois é, isso aconteceu lá no início dos anos 80 (mais especificamente 1983) onde as atrizes estavam fulgurantes e muito joviais. Um contraste com o ambiente sombrio e pesado apresentado na trama. “Fome de Viver”, de Tony Scott, é uma estranha e estimulante combinação. Vamos analisá-la aqui.

Um elegante casal
Um elegante casal

A história nos conta a vida de um casal, John Blaylock (interpretado por Bowie) e Miriam Blaylock (interpretada por Deneuve), que aparentemente gosta de noitadas, arrumando outro casal nas danceterias da vida, para a prática de swing. Mas o que parecia uma noite de prazer termina com o assassinato das vítimas atraídas, com direito a muito sangue e consumo dele. Com o tempo, descobrimos que este casal tem uma espécie de vida imortal e que precisa se alimentar com o sangue das pessoas. A imortalidade aparece evidente no lar dos dois, com uma mobília recheada de móveis e objetos antiquíssimos e originais. Inclusive o pingente do colar de Miriam é um símbolo egípcio original da imortalidade, usado justamente como arma para ceifar as vidas de suas vítimas. Miriam, na verdade, é a que detém a imortalidade. Ao escolher seus amantes, ela, vampirescamente, dá uma mordidinha no corpo do eleito (ou eleita) e contamina o sangue da pessoa com o seu, criando um vínculo e lhe prometendo vida eterna.

Sangue e homossexualismo
Sangue e homossexualismo

Mas essa vida é obtida às custas de um envelhecimento muito rápido e o moribundo, totalmente deformado pela velhice, não morre. Nesse momento, Miriam descarta seu amante e o coloca num caixão, depositando o pobre infame vivo num sótão onde há outros caixões com outros antigos casos amorosos na mesma condição, num verdadeiro museu de amantes esquecidos. Isso aconteceu com John, mas antes ele procurou a doutora Sarah Roberts (interpretada por Susan Sarandon), que realizava pesquisas médicas para reduzir os efeitos de uma estranha doença que provocava rápido envelhecimento (por sinal, a mesma doença que acometia John). Por intermédio de John, Sarah conhece Miriam, que a escolhe como próxima amante. A partir daí, cria-se todo um ambiente de tensão no ar, onde veremos ou não se Miriam consegue atingir suas mórbidas intenções.

Maquiagem rudimentar para hoje
Maquiagem rudimentar para hoje

O filme tem detalhes muito interessantes. Um início numa danceteria algo gótica, algo dark, prenunciando o clima sombrio da trama. Logo após, vemos a casa do casal, num ambiente leve, aristocrático e agradável, cheia de antiguidades, espelhando a longevidade dos personagens. Cenas de amor muito suaves e tocantes, contrastando com assassinatos muito violentos e sanguinários, inclusive um infanticídio. Contraste esse realçado na cena de amor entre Miriam e Sarah, onde o homossexualismo é colocado de forma leve e não contundente (pudera, estamos em 1983, o que já deve ter sido muito desafiador para a época!), com cenas muito delicadas, contrabalançadas por uma violência, ainda que leve, de mordidas em braços que arrancam sangue. Aliás, Miriam e Sarah são o que de melhor tem o filme. Duas belezas angelicais que simbolizam o diabólico e o racional. Deneuve já apresentando os traços da idade, mas lindíssima e poderosíssima, ainda mais quando soltava seus longos cabelos louros. Sarandon com uma beleza de menina, embora aquele penteado curto não ajudasse muito. A gente se delicia muito com a beleza e delicadeza daquelas duas. Mulher e cinema são, decididamente, duas artes que se combinam e se completam.

Museu de amantes esquecidos
Museu de amantes esquecidos

E o Bowie? Bom, dentro de seu aspecto multimídia, ele também buscou uma carreira cinematográfica, interpretando papéis também em filmes como “Labirinto” e “Basquiat”. Quanto à “Fome de Viver”, não sei, pode ser que eu esteja de implicância, mas suas falas me pareceram planas e áridas, desprovidas de emoção como um deserto sem vento e dunas. É aquela velha piada: como ator, Bowie é um ótimo cantor. Um último comentário deve ser feito quanto à maquiagem dos moribundos. O que achávamos um barato na década de 80 hoje parece algo muito artificial e pesado. Ao presenciarmos os cadáveres vivos e deformados, é impossível não nos lembrarmos de “Thriller”, de Michael Jackson, de “A Hora do Espanto” e coisas mais obscuras como “A Volta dos Mortos Vivos”. Uma pena, pois o que, ao meu ver, até ficou um bom filme de arte, acabou se contaminando um pouco com as características de um blockbuster de circuitão por causa da maquiagem. Mas, paciência, eram as limitações da época.

Bowie. Mais cantor do que ator
Bowie. Mais cantor do que ator

Por essas razões, “Fome de Viver” é um filme muito interessante, que estimula nossa curiosidade e aguça nossos sentidos, seja pelas situações de terror, seja pela delicadeza e beleza das atrizes. E não deixem de ver o trailer abaixo.

Batata Antiqualhas – Falcões Da Noite. Visões Do Terrorismo De Décadas Atrás.

Cartaz do Filme
Cartaz do Filme

Imagine um filme com Sylvester Stallone, Rutger Hauer, Billy Dee Williams (nosso Lando Calrissian), Lindsay Wagner (a lendária Mulher Biônica da década de 1970) e Persis Khambatta (a Ilia de “Jornada nas Estrelas, o Filme”). Pois é, caro leitor, isso aconteceu! Mais especificamente, no longínquo ano de 1981, no filme “Falcões da Noite” (“Nighthawks”), um delicioso thriller de ação policial. Vamos recordar aqui essa interessante história.

DaSilva e Fox. Policiais casca grossa
DaSilva e Fox. Policiais casca grossa

A trama fala de dupla de policiais Deke DaSilva (interpretado por Stallone) e Fox (interpretado por Williams). A atividade deles consistia em fazer tocaias para bandidos na rua. O plano, por sinal muito exótico, era o seguinte: DaSilva se disfarçava de pessoas acima de qualquer suspeita: um senhor respeitável de terno e gravata, uma senhora (?!?!), etc., e se metia nos piores buracos de Nova York, atraindo os bandidos. Mas Fox estava à espreita e DaSilva, obviamente, preparado para a tocaia. No início do filme, em sua versão legendada, chega a ser hilário o que DaSilva fala ao bandido depois de tirar seu disfarce de uma respeitável senhora: “Vem me atacar, He-Man!!!”. Bem antenado com o zeitgeist (“espírito da época”). E assim, entre muitas armadilhas, bocas de fumo estouradas e muita, muita porrada, nossos estimados policiais vão vivendo. Infelizmente, isso traz problemas para nosso DaSilva, pois sua antiga namorada, Irene (interpretada pela “biônica” Lindsay Wagner) quer que ele saia daquela vidinha complicada. Um belo dia, os dois são recrutados para participar de uma divisão antiterrorismo, pois um terrorista internacional muito perigoso, Heymar “Wulfgar” Reinhardt (interpretado por Hauer) chega à Nova York depois de se indispor com todos os grupos terroristas e revolucionários, já que suas técnicas eram extremamente violentas. Ou seja, nosso terrorista pirou na batatinha e decidiu agir por conta própria, de forma free-lancer. Na verdade, ele tinha a ajuda da perigosa Shakka Holand (interpretada por Khambatta). No início, DaSilva e Fox não aguentavam as exaustivas aulas. E DaSilva se desentendeu com o instrutor, pois não queria abrir fogo contra o terrorista em situações em que inocentes estivessem em perigo, já que DaSilva, assim como Fox, eram veteranos de guerra do Vietnã (um embrião do Rambo?), ficando implícitos os traumas de guerra no protagonista.

Wulfgar, o terrorista maluquinho...
Wulfgar, o terrorista maluquinho…

Wulfgar tinha por hábito se envolver com moças para transformar seus apartamentos em uma espécie de base para ele. Feito isso, ele as assassinava, sempre dizendo “você vai para um lugar melhor”. Assim, temos várias cenas onde Wulfgar procurava suas presas em discotecas, onde podemos atestar os ritmos musicais da época. Em alguns momentos, parece que estamos vendo “Os Embalos de Sábado à Noite” e John Travolta aparecerá do nada para dançar. Aliás, a trilha sonora do filme, composta por Keith Emerson, é show! Uma batida instrumental cheia de tensão, com o devido espírito da época! Algo que soa muito diferente do que se ouve por aí hoje em dia.

uma terrorista fria...
Shakka, uma terrorista fria…

Rutger Hauer conseguiu fazer um grande vilão, o primeiro de sua carreira, estourando em “Blade Runner” pouco tempo depois. O mais irônico de tudo é que ele era considerado um terrorista internacional muito perigoso e as supostas técnicas dos policiais de rua de Nova York não seriam suficientes para capturá-lo. Entretanto, foi com tais técnicas ultrapassadas que DaSilva pegou Wulfgar. E adivinhem qual foi? Isso mesmo, caro leitor, DaSilva se vestiu de mulher!!!! Wulfgar foi à casa de Irene, o amor de DaSilva, para matá-la. Ele via a moça de costas com um vestido rosa e sua longa cabeleira loura. Quando ele se aproximou com a faca para dar cabo de Irene, ela se vira e vemos um Stallone barbado com peruca loura e vestido rosa apontando a arma para ele (aaaarrrrrgghhhhh!!!!). Wulfgar ficou tão traumatizado que demorou uns dois minutos para processar aquela grotesca informação em seu cérebro. Quando ele decidiu atacar, foi prontamente fuzilado por DaSilva.

DaSilva e Irene. Relação complicada
DaSilva e Irene. Relação complicada

Apesar de ser um filme de ação trivial, não podemos deixar de perceber alguns lances interessantes. Os personagens de Stallone e de Fox conseguiam ser duas vacas bravas, mas, ao mesmo tempo, ter alguma serenidade, não sendo tão caricatos. Foi legal ver Stallone numa interpretação não tão exótica assim, como o foi em muitos de seus filmes. Ou seja, sua paralisia facial ainda não era a estética dominante de sua interpretação. E ele deu conta do recado. Billy Dee Williams mostrou que não é somente Lando Calrissian, fazendo o fiel escudeiro Fox, que se indignava profundamente com o traficante da boca de fumo que lhe oferecia dinheiro, mas ao mesmo tempo era uma voz de temperança para DaSilva, ao convencê-lo a não abandonar a unidade antiterrorista. Persis Khambatta poderia ter sido mais aproveitada, mas ainda sim sua participação foi maior que a de Lindsay Wagner. Essa sim apareceu muito pouco no filme, o que é de se lamentar bastante.

aaaaaaarrrrrrggggghhhhhh!!!!!
aaaaaaarrrrrrggggghhhhhh!!!!!

Outra virtude da película é atestarmos as visões de terrorismo da época, ainda muito vinculadas a movimentos revolucionários. Wulfgar se vangloriava de defender uma causa. Ele se acreditava um defensor e libertador dos oprimidos, numa visão um tanto romântica e tresloucada da coisa. Ao escutar isso, DaSilva só falava, em tom de questionamento e com sarcasmo: “Você acha, é?”, ao que Wulfgar retrucava: “Isso te fascina”. Se o policial questionava o terrorista em tom de pouco caso, até porque, na visão do policial, Wulfgar era um louco e era bom não contrariar, vemos um traço de romantismo e ideologia no terrorista, até porque, naquela época, os Estados Unidos ainda patrocinavam muitas ditaduras no mundo ocidental, sobretudo na América Latina. É inclusive citado que a América do Sul estava cheia de revolucionários. Logo, a existência de muitos grupos revolucionários no mundo ocidental era algo que fazia parte da realidade daquele tempo. Hoje em dia, os terroristas não têm rosto e vêm de mais longe, mais especificamente do Oriente Médio, não havendo nacionalidades definidas e sim grupos armados que são extremamente demonizados pela mídia. É um terrorismo mais violento, cruel e aparentemente sem romantismos, embora as ideologias ainda estejam lá escondidas. E o cinema, geralmente, auxilia no processo de demonização. Wulfgar tinha rosto, se reportava à mídia em telefones públicos próximos ao local dos atentados, ou seja, cometia erros que os terroristas de hoje jamais cometeriam. Podemos atestar, então, nas produções cinematográficas ao longo do tempo, um processo que vai de um terrorismo mais “romântico” e menos planejado no passado para um terrorismo de hoje mais frio e calculista.

Assim, “Falcões da Noite” é um interessante filme das antigas por mostrar a nós como determinados conceitos e formas de comportamento se alteram ao longo do tempo. E é um filme muito fácil de se obter em DVD. Dê uma garimpadinha por aí, que vale a pena. Por enquanto, veja a versão dublada e completa do filme abaixo

https://youtu.be/XRLT4IyCsWs