Por Carlos Lohse
A Marvel dá mais uma de suas boas cartadas. Estreou no cinema o esperado “Doutor Estranho”, estrelado por Benedict Cumberbatch, e que tem Mads Mikkelsen fazendo o papel do vilão. Somente esses pequenos detalhes já justificam a ida ao cinema, antes de mais nada. Mas o filme tem mais, muito mais, pois ele consegue abordar temas muito interessantes. Só quero fazer uma observação aqui. Esse artigo terá “spoilers”. Espero que você já tenha visto o filme. Caso contrário, volte mais tarde.
Vemos aqui a história do Doutor Stephen Strange (interpretado por Cumberbatch), um competente neurologista com uma carreira de muito sucesso. Isso faz com que Strange tenha um comportamento extremamente arrogante, provocando a antipatia de muita gente. A única pessoa que ainda consegue aturá-lo é outra neurologista, Christine Palmer (interpretada por Rachel McAdams), colega de profissão e ex-namorada. Um belo dia, Strange, que é um cara muito bem de vida financeiramente e é cercado de bens materiais, está em seu possante carro falando ao celular sobre qual cirurgia ele fará, e acabou sofrendo um grave acidente por isso, que destrói suas hábeis mãos para cirurgias muito delicadas. Desesperado por não poder mais conseguir exercer seu ofício, ele descobre com seu fisioterapeuta um paraplégico que conseguiu voltar a andar. Ao falar com ele, este lhe indicou um endereço no Nepal. Lá, Strange conhece a anciã (interpretada por Tilda Swinton), que vai lhe revelar os segredos do misticismo e a existência do multiverso. Mas um antigo aluno da anciã, Kaecilius (interpretado por Mads Mikkelsen), quer permitir que uma entidade cósmica maligna invada a Terra sob a promessa de vida eterna. Strange, então ainda um aprendiz, vai ter que evitar que os planos de Kaecilius se concretizem para salvar o planeta.
Dá para perceber que o enredo é bem interessante. A coisa aparentemente cai num lugar comum da velha história do materialista fútil e arrogante que descobre a elevação espiritual no misticismo. Mas a película não fica apenas nessa boa lição. A medicina, área de atuação de Strange, e representante da ciência no filme, não fica relegada a um segundo plano e aparece recorrentemente como um recurso necessário ao longo da história, como se a sabedoria do misticismo se aliasse à sabedoria da ciência. Mas o mais incrível aqui é a ideia de que há um multiverso, ou seja, a existência de vários universos possíveis, além de portais que vão de um lugar para outro. Essas ideias são muito relacionadas à mecânica quântica e à física da relatividade geral. Os portais lembram muito a noção de buracos de minhoca, onde corpos com muita massa e muito densos (os conhecidos buracos negros) distorcem a estrutura do espaço-tempo de tal forma que poderiam provocar “atalhos” entre duas regiões do Universo. No filme, entretanto, esses buracos de minhoca seriam provocados pelo misticismo e magia dos aprendizes da anciã. Já a ideia de multiverso é associada à mecânica quântica, mais especificamente ao Princípio da Incerteza de Heisenberg. Esse princípio diz que, para conhecermos o movimento de um átomo ou outra partícula qualquer, devemos conhecer simultaneamente sua posição e velocidade. O problema é que não conseguimos essa determinação simultânea. Só podemos conhecer ou a posição ou a velocidade, nunca as duas ao mesmo tempo. E isso é uma limitação imposta pela própria natureza. Assim, para cada posição que determinamos, temos infinitas possibilidades de velocidade, e, para cada velocidade que determinamos, temos infinitas possibilidades de posição. E o que tudo isso quer dizer? Que este Universo em que vivemos é apenas um de muitos prováveis, ou seja, somos todos ondas de probabilidade. Eu poderia até entrar em questões mais complexas e polêmicas do tipo: se tudo agora é probabilidade, como fica Deus, algo altamente determinístico, num contexto desses, mas vamos parar por aqui, já que temos um filme a analisar. Então, a existência na película de um multiverso, onde há uma infinidade de universos possíveis, tem tudo a ver com o Princípio da Incerteza cunhado pelo físico atômico Werner Heisenberg. O mais legal foi ver essas associações entre a física relativística e a mecânica quântica com o misticismo. Os físicos e astrofísicos que não me ouçam, mas essas formas científicas de conhecimento sempre tiveram um quê místico aos olhos do grande público, sobretudo a mecânica quântica, um assunto muito hermético para a grande maioria das pessoas. Ver isso em “Doutor Estranho” só confirma tal hermetismo e mito que associam saberes tão diferentes (ciência e misticismo).
O que mais podemos falar do filme? Algumas coisas que já detectamos no Universo Marvel em outras ocasiões. Em primeiro lugar, a vinda de um novo herói sempre é muito bem vinda, já que um dos principais problemas dessa franquia é o excesso de filmes de herói, tornando a coisa até um certo ponto repetitiva. Tem-se, então, a necessidade de uma renovação constante, que leva ao surgimento de novos heróis nas telonas, algo que a Marvel consegue fazer bem, pois tem um celeiro praticamente inesgotável de super-heróis. Em segundo lugar, o humor novamente deu o ar de sua graça, mesmo que o personagem do Doutor Estranho tenha uma aparência um tanto soturna. Vou sempre defender esse conteúdo mais humorístico da Marvel, pois ele funciona e traz aquela coisa nova de que os filmes precisam, ressaltando sempre que fazer humor é algo extremamente difícil.
E os atores? Bom, eu acho que nem preciso dizer muito. Dessa vez, a Marvel caprichou muito no elenco, colocando somente cobras criadas. Cumberbatch foi muito bem como o médico arrogante que se regenera, arrancando simpatia do espectador. Mikkelsen, o atorzaço de sempre, mostrou grande poder de persuasão ao tentar convencer o Doutor Estranho à sua causa. Tilda Swinton, que já tinha ido muito bem em papéis altamente díspares nos filmes “Amantes Eternos” e “O Grande Hotel Budapeste”, prova novamente seu lado camaleônico ao fazer uma anciã que é a mestre do protagonista, e, ao mesmo tempo, desperta dúvidas em seus discípulos à respeito de sua integridade moral. E temos Chiwetel Ejiofor, aquele ator de nome complicadíssimo que protagonizou “12 Anos de Escravidão”, e que aqui interpreta Mordo, o principal discípulo, o mais cheio de dúvidas em relação à sua mestre, com uma interpretação contida e sóbria, até em seus maiores momentos de decepção.
Assim, “Doutor Estranho” é mais um tiro certo da Marvel, que conseguiu mostrar o seu poder de renovação, além de repetir o que vem dando certo, que é o humor. Um filme laureado por um excelente elenco, que dá credibilidade aos personagens. Uma película que usa o misticismo como mote principal, sem esquecer a importância da ciência. E, como em todos os filmes da Marvel, com pós-créditos. Dois, para ser mais exato. Não saia da sala até a última letrinha e além. Você não vai se arrepender. Programa imperdível! E não deixe de ver o trailer abaixo.