E o dia tão esperado pelos trekkers chegou. A série Star Trek Discovery estreou no Netflix e deu nova vida a uma franquia que, pelo menos em questão de séries de TV, já não via algo há um bom tempo. Depois dos três longas da Kelvin Time Line de J. J. Abrams, algo que irritou muitos fãs, havia uma expectativa de que se resgataria um pouco o espírito de Jornada nas Estrelas com a volta do formato para a televisão. Inicialmente prevista para estrear no início desse ano, a série foi adiada e somente chegou aos espectadores no final de setembro de 2017, no formato de dois episódios, dando uma tremenda cara de longa-metragem.
E quais foram as impressões de Star Trek Discovery? Antes de mais nada, será impossível fazer uma análise mais aprofundada sem lançar mão de alguns spoilers. Por isso mesmo, optei por publicar esse artigo depois de alguns dias da estreia. Mas, se por um acaso você ainda não viu os dois primeiros episódios, já fique sabendo que vamos precisar contar algumas coisas aqui. Em primeiríssimo lugar, podemos logo notar duas características básicas. Primeiro, uma característica mais do ponto de vista estético: os efeitos especiais nos remetem muito aos filmes de J. J. Abrams. Se as primeiras imagens nos revelavam uma ponte um pouco mais escura, aqui vemos uma ponte espaçosa como a da Enterprise da Kelvin Time Line, assim como uma iluminação que era muito influenciada pelo espaço exterior, onde a presença de um sistema binário causava uma forte iluminação, dando um efeito bonito de se ver. Os efeitos especiais das batalhas de naves e também das mesmas saindo de dobra, nos remetiam imediatamente aos filmes da Kelvin Time Line. Esperemos que o orçamento da série permita esse bom uso dos efeitos especiais por toda a temporada e não se limite apenas ao cartão de visitas que foi esses dois primeiros episódios. Em segundo lugar, se do ponto de vista estético, a influência dos filmes de Abrams era notória, do ponto de vista do roteiro, sentíamos as velhas e amadas séries de Jornada nas Estrelas pulsando fortemente. Muita coisa estava lá.
Víamos, por exemplo, a estreita relação entre a capitã e sua primeira oficial, onde, pela primeira vez, foram simultaneamente personagens femininas. O vulcano Sarek (interpretado por James Frain) também está de volta, e descobrimos que ele possui uma filha adotiva que é da Terra, a primeira oficial em questão, Michael (?) Burnham (interpretada por Sonequa Martin-Green). Alguns fãs podem ficar um pouco mais irritados com esse detalhe de Sarek ter uma filha adotiva, algo que nunca foi mencionado nas séries anteriores, mas se virmos por um outro lado, a presença de Sarek pode ser encarada como um bom fan service que aproxima um pouco mais essa nova série das anteriores. Isso sem falar que Sarek teve a difícil missão de criar um filho meio humano e uma filha totalmente humana. Esperemos que essa relação entre Sarek e Burnham se desenvolva mais e aprofunde a construção dessa nova personagem que é a protagonista da série. Já a capitã Phillipa Georgiou é a consagrada atriz Michelle Yeoh, que ficou conhecida por atuar em filmes voltados às artes marciais como “O Tigre e o Dragão” e até numa película de James Bond (O Amanhã Nunca Morre). Foi uma pena ela ter morrido logo no segundo episódio, pois fez uma dupla e tanto com Martin-Green que daria muito caldo, ainda mais porque havia uma relação de amizade entre as duas, mas também de um certo conflito e de quebra de confiança, pois elas se desentenderam na melhor forma de como se encarar os klingons (a capitã seguia os protocolos da Federação, onde não se deve atirar primeiro, e a Primeira Oficial acreditava que apenas a violência seria uma boa resposta, já que era a única língua que os klingons conheciam). A desobediência de Brunham com relação à sua capitã nos lembra, por exemplo, da relação conflituosa entre Sete de Nove e Janeway em Voyqger. A viagem de Burnham pelo espaço com um traje espacial foi uma outra espécie de fan service, nos remetendo a Primeiro Contato e a Jornada nas Estrelas, o Filme.
E os klingons? Muito se falou da estética dos alienígenas antes da estreia da série e de como isso ia contra o cânone. Mas, se pararmos para nos lembrar do que aconteceu com os klingons em momentos anteriores, sua aparência nunca seguiu um mesmo padrão. Na série clássica, até por problemas de orçamento e até mesmo das técnicas de maquiagem da época, os klingons tinham uma aparência bem mais humana. Com os longas, o dinheiro e as técnicas mais modernas de maquiagem, os klingons finalmente ficaram com uma aparência mais alienígena, correspondendo aos anseios de Roddenberry desde a década de 60. Agora Star Trek Discovery nos traz klingons numa nova roupagem, bem mais elaborada e rebuscada. Vimos aqui mais uma vez a cultura klingon bem trabalhada, disposta em vinte e quatro casas que seriam unificadas segundo as palavras de Kahless, o maior símbolo religioso dessa cultura. Essa pelo menos era a intenção de T’Kuvma (interpretado por Chris Obi), que tinha um grande poder de persuasão, convencendo os nobres das casas a aceitar inclusive klingons que não pertenciam a casa nenhuma. A morte de T’kuvma, assim como a da capitã, foram perdas a meu ver um tanto graves, pois esses personagens poderiam ser bem desenvolvidos e dar muito mais tempero aos episódios seguintes. A questão dos personagens foi, digamos, um problema aqui, pois os episódios se focaram em poucos personagens, dando aos demais mero status de coadjuvantes de luxo, e ainda assim, dois personagens mais destacados morreram. Ou seja, os próximos episódios com certeza nos revelarão novos personagens que devem ser trabalhados com o mesmo peso que a protagonista, embora o formato mais enxuto do streaming possa ser um empecilho para isso, o que seria uma pena. Ainda falando de klingons, algumas coisas podem incomodar os fãs mais exigentes de fidelidade ao cânone como, por exemplo, um conteúdo excessivamente religioso nas falas de T’Kuvma, assim como a importância que os klingons dão aqui aos corpos de seus mortos, quando nos lembramos nas séries mais antigas que os klingons consideravam os corpos dos mortos “cascas vazias”. Ainda, uma estética um tanto “egípcia” para os klingons, com direito a muitos adereços dourados e até a corpos mumificados em sarcófagos. Entretanto, não creio que isso irá ser um empecilho para os fãs mais antigos aceitarem a série, se tivermos histórias bem desenvolvidas nos roteiros, o que me pareceu o caso nesse episódio duplo que muito lembrou o episódio “O Equilíbrio do Terror” da série clássica.
Por fim, uma curiosidade: ainda não vimos a Discovery. Essa história inicial se desenvolveu em outra nave da Federação., a Shenzhou, que tem, curiosamente, o mesmo nome de uma das naves do programa espacial chinês. Que venha a Discovery no próximo episódio, algo que vai acontecer, pois a Netflix também está disponibilizando o programa After Trek, um talk show que analisa o episódio logo após sua exibição, um bom programa para se ver apesar da forma excessivamente americana de ser engraçadinha, pois ele tem muita informação sobre o cânone e ainda promove debates com os atores, produtores e pessoas que tuitam ao vivo. Pois bem, After Trek já exibiu um trecho do próximo episódio que mostra o interior da Discovery.
Dessa forma, creio eu que Star Trek Discovery não decepcionou (pelo menos nesses dois primeiros episódios) e a integridade estrutural do cânone não foi tão agredida, algo até muito bom para um cânone amparado por 730 episódios e dez longas. Na minha modestíssima opinião, o clima de Jornada nas Estrelas foi resgatado de uma certa forma, ainda mais depois do gosto de cabo de guarda-chuva que o Jar Jar Abrams deixou em nossos corações. Continuarei a assistir e a comentar aqui na Batata Espacial. E você, trekker juramentado, se ficou feliz, continue a assistir. Mas se ficou chateado, se dê mais uma chance, pois creio que a série começou bem e pode melhorar. Vamos ver o que nos aguarda nas próximas semanas. Mas a primeira impressão foi boa.