E saiu mais um episódio de “Jornada nas Estrelas, Discovery”, ainda dentro do muito clima de polêmica que a série tem produzido e provocado muitas discussões entre os fãs. Esse é o episódio com o segundo maior título de toda a franquia e parece que ele tem embutido uma espécie de grito de protesto contra os rumos que a série toma, gritos esses que estão ecoando nos trekkers mais tradicionais.
Mas, no que consiste a trama desse episódio? Ele já começa com uma contradição com relação ao episódio anterior, no que se refere à relação entre Saru e Burnham. Se antes Saru tinha um relacionamento até certo ponto terno com Burnham, agora quando fica claro que ela vai fazer parte da tripulação definitiva da Discovery, Saru volta a ter um comportamento um tanto repulsivo com relação a ela, onde seus gânglios agitados denunciam medo de que ela seja perigosa para a nave. Mais uma brusca alteração de comportamento desse personagem, que oscila a cada episódio. Isso por um lado é interessante, pois mostra toda uma complexidade de Saru, mas por outro também o coloca como uma espécie de cara que não sabe exatamente o que quer. Isso deveria ser definido mais claramente, ou seja, ele é a favor ou contra Burnham na nave? Que isso seja definido de forma mais visível.
Continuando a falar sobre o episódio, Lorca dá a Burnham a missão de descobrir como usar o tardígrado (o tal bichão assassino do episódio anterior) como uma arma. Para isso, Burnham terá a ajuda da chefe de segurança Landry. Ao analisar mais a fundo o tardígrado, Burnham percebe que o bichão é uma versão macroscópica de uma criatura microscópica altamente resistente que vive na Terra há milhões de anos e somente descoberta recentemente (quer dizer, o bicho existe mesmo e pode estar aí em cima de você agora!), e começa a suspeitar de que o animal pode não ser agressivo, mas Landry, totalmente influenciada pelo espírito belicista de Lorca, insiste que o animal deva ser usado como arma. Enquanto isso, Lorca recebe informações de uma almirante que um planeta que contém uma mina que produz cerca de 40% do dilítio da Federação está sob ataque klingon e a Discovery é a única nave que pode chegar lá a tempo, por causa do motor de esporos. Entretanto, Paul Stametz, responsável pelo motor, diz que ele não tem a precisão de navegação para chegar aos objetivos traçados. Para piorar a situação, numa atitude totalmente destemperada, Landry solta o bichão para “tirar um pedaço dele” para análise, depois de ouvir os gritos de desespero dos habitantes do planeta atacado pelo rádio e acaba sendo morta pelo tardígrado, o que coloca uma pressão extra de Lorca em Burnham. Definitivamente, essa foi uma morte totalmente desnecessária, exceto pelo fato de que agora Burnham poderá ter um posto efetivo na Discovery (dá a impressão de que essa era a intenção dos roteiristas, vamos ver). Mesmo assim, essa morte ficou muito esquisita e se perdeu uma boa oportunidade de se transformar Landry em uma personagem mais próxima de um espírito mais humanitário a la Federação e contra Lorca.
Voltemos à história. Enquanto isso, Vog e L’Rell, um casal klingon, continuava nos escombros das naves que passaram pela batalha das estrelas binárias, depois de seis meses (???), comendo, inclusive, o corpo da capitã Georgiou para sobreviver (????). Eles estão na dúvida se tiram ou não o dilítio da Shenzhou para poder colocar sua nave para sair de lá. Vog, como uma espécie de herdeiro espiritual de T’Kuvma, acha que retirar dilítio da nave que matou seu senhor soaria como uma blasfêmia. Mas L’Rell o convence de retirar o material. Nisso, surge Kol, da casa de Kor, que acaba tirando o dilítio e a nave de Vog. L’Rell finge, num primeiro momento, ficar ao lado de Kol, mas acaba se transportando para a Shenzhou, para onde Vog foi enviado. Os dois ficam lá naquela nave da Federação em escombros que aparentemente não tem nada para tirá-los daquela situação. Aqui, devemos fazer um pequeno parêntesis. Muito se tem falado mal dos klingons por aí, desde a maquiagem que esconde as feições dos atores, atrapalhando sua interpretação, passando pela pronúncia do idioma klingon (eles parecem estar com um chumaço de algodão na boca), são sem honra, são bundões, etc., etc. Entretanto, creio que essa coisa de ter surgido um casal renegado de posse de uma nave da Federação pode dar um fôlego interessante a esse arco. A presença de Kol, totalmente sem honra e passando por cima do messianismo de T’Kuvma encarnado em Vog lembra um pouco a cisão entre sunitas e xiitas no islamismo. Os primeiros são seguidores da Suna, um dos livros do islamismo e os segundos se intitulam descendentes diretos do profeta Mohammed. Nesta visão de Discovery, T’Kuvma faria o papel de Mohammad, o casal Vog e L’Rell seriam os xiitas e Kol faria mais o papel sunita (lembrando sempre que essa é uma comparação que cabe se for relativamente superficial). Ou seja, a cisão interna entre os klingons pode trazer um molho especial, pelo menos é o que eu espero. E a falta de honra de Kol nisso tudo? Aí a gente pode se lembrar de que as 24 casas ainda não estavam suficientemente unificadas e o conceito de honra talvez não estivesse totalmente cunhado, sendo esse um dos objetivos de T’Kuvma. Esperemos que as cabeças dos roteiristas estivessem suficientemente iluminadas para terem antecipado todas essas alternativas em histórias futuras. Caso contrário, cartas (ou e-mails, tweets e comentários) para a CBS.
Continuemos a história. Depois de alguns estudos (e muitos tecnobabbles), Burnham descobriu que o tardígrado poderia ajudar a Discovery a traçar os rumos de navegação corretos, pois ele comia os esporos. Ainda, ele não seria visto como uma ameaça para a tripulação, pois Burnham fez uma espécie de teste com Saru, sem o conhecimento deste, e seus gânglios não teriam se agitado com o bichão (se Saru, que é o mais covarde de todos da tripulação, não tem medo do tardígrado, ninguém mais terá). O problema é que, para fazer isso, o bichão era aprisionado e torturado para a nave poder chegar à rota traçada, o que deixou Burnham perplexa e sem reação naquele momento. Esse acabou sendo o mote principal do episódio. O espírito belicista de Lorca meio que autoriza a tortura de um ser vivo para a nave alcançar seus objetivos. A alusão ao episódio “Demônio da Escuridão” da série clássica é imediata. Só que, naquela ocasião, encontrou-se um meio termo que levou a uma boa convivência entre a orta e os humanos. Aqui em Discovery, os fins parecem justificar os meios e o pobre do tardígrado é torturado para que a nave consiga traçar a rota correta com o motor de esporos. Isso provocou uma grita geral entre os fãs. Contudo, o que parece que está começando a acontecer é que até alguns personagens começam a se sentir desconfortáveis com tais situações e atitudes que saem muito dos rumos e parâmetros que a Federação tem. Já foi falado em artigos anteriores que está ficando muito clara a posição altamente singular que a Discovery tem perante à Federação. Burnham inicialmente ficou sem reação, tamanha a sua perplexidade quando viu o sofrimento do tardígrado. Esperemos agora que a protagonista tenha uma posição mais dura perante Lorca com relação a esse assunto nos próximos episódios, pois esse gancho é o que mais aproximou a série do cânone até agora. Dentre os inconformados com relação a forma como as coisas são levadas na Discovery, a gente também não pode se esquecer de Paul Stametz e suas desavenças com Lorca, que usa o projeto do cientista para fins bélicos e Stametz quer um uso científico para a coisa. Apesar de Stametz ser contra a guerra e não se entender com Lorca (a relação entre os dois, aliás, é bem tensa), o cientista também não se preocupou muito com o bem estar do tardígrado quando percebeu a utilidade do bichão para o sucesso de sua pesquisa. Entretanto, com o passar dos episódios, fica a impressão de que a tripulação está cada vez mais desconfortável com as atitudes de Lorca, principalmente quando ele tentou “estimular” seus comandados a alcançarem resultados melhores mais rapidamente, colocando todos para escutar os gritos de desespero do povo atacado pelos klingons no planeta mina. Mais assédio moral do que isso, impossível. Se bem que Lorca já sentenciou que a nave “não é uma democracia”. Agora, o que realmente caiu mal foi todo aquele malabarismo que a nave fez no CGI ao acionar o motor de esporos. Muito desnecessário, com uma papagaiada bem infame.
Alguns fãs também têm falado daquela hipótese que a Discovery teria algo a ver com a Seção 31, pois somente isso justificaria o ambiente da nave tão desvirtuado dos preceitos da Federação. Eu confesso que prefiro inicialmente ficar com um pé atrás com relação a isso, pois estaria muito na cara (o número de série da Discovery é NCC-1031). Sem querer ser lusófobo, parece aquela piada de português de que o agente secreto de Portugal é o Manoel do terceiro andar, ou seja, todo mundo conhece o agente secreto. Então, de secreto ele não tem nada. Essa é a minha impressão, pelo menos por enquanto, de se associar a Discovery à Seção 31. Espero que os roteiristas não tenham caído em algo tão óbvio.
Concluindo, vou voltar a dizer que ainda espero algo de bom com relação à série. Achei esse episódio melhor que os outros, pois ele se aproxima do espírito de Jornada nas Estrelas no que se refere ao tardígrado (sem falar que o tardígrado é um ser real descoberto por uma ciência recente e contemporânea à filmagem dos episódios da série, algo que já vimos em outros episódios da franquia), mostra uma cisão interessante entre os klingons que, se bem trabalhada, pode render bons frutos, exibe como parte da tripulação já se manifesta de uma forma bem desconfortável com relação a Lorca (inclusive Saru, que reclama a Burnham que Lorca não escuta suas recomendações cheias de precauções) e manteve o clima de expectativa de o que vai acontecer com tais atitudes belicistas e amorais de Lorca por elas entrarem tão em choque com o cânone de Jornada nas Estrelas. O que vai sair daí? Uma reviravolta aceitável para os fãs mais tradicionais? Ou um chute total no cânone? Só assistindo aos próximos episódios é que podemos ter uma ideia. Vamos ver o que vem por aí. Ah, e só para lembrar: Lorca não fala “engage”. Fala “go!”.
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