A Batata Espacial esteve no Festival do Rio 2017 e prestigiou oito filmes por lá. Vamos começar a nossa cobertura falando de um filme do grande cineasta brasileiro Silvio Tendler, que está de volta com um documentário de importância fundamental para se entender os tempos turbulentos pelos quais nós temos passado. “Dedo Na Ferida” vai abordar os aspectos relativos à crise mundial, desmistificando o discurso capitalista de austeridade e Estado mínimo, mostrando que a verdadeira culpa de tudo o que tem ocorrido em termos de crise mundial reside nas atitudes e desmandos do capitalismo financeiro, que inclusive ameaça as democracias das nações.
Esse documentário é repleto de trechos de falas de especialistas, do Brasil e do exterior, que analisam de forma profunda o que tem quebrado nações inteiras como Portugal, Espanha e Grécia, além das amargas soluções propostas pelo capitalismo financeiro especulativo, que funciona sem qualquer regulação ou freio por parte dos governos. Isso porque há gente do próprio capitalismo financeiro ditando as regras nos governos ou obrigando tais governos a obedecerem tais regras, sob pena de um estrangulamento econômico ainda maior. O documentário mostra a diferença entre uma economia produtiva, onde o crescimento depende da produção industrial, das vendas e dos lucros que conseguem abrir mais postos de trabalho e salários, e a economia financeira especulativa, onde uma dívida interna com altas taxas de juros é paga pelo governo com o dinheiro dos impostos dos contribuintes, economia financeira essa onde o capital não circula para as populações nem para o processo produtivo, circulando somente entre o empresariado. O mais chocante nisso é que presenciamos o mesmo quadro que existia no capitalismo pré-crise de 1929, onde os governos garantiam liberdade total para os grandes empresários sem qualquer freio em atividades especulativas e de risco.
Essa liberdade total dada ao capitalismo financeiro provoca graves problemas de ordem social e dão origem a um ultranacionalismo de direita que coloca toda a culpa da crise nos setores menos favorecidos da sociedade, como os pobres e negros no Brasil e os imigrantes da Europa, além de ajudarem a convencer o grande público de que políticas de austeridade são necessárias para acabar com a crise, sendo que a população deve abrir mão de seus direitos democráticos. Ou seja, com a Guerra Fria, o Welfare State e a classe média eram necessários para manter o capitalismo como um sistema bem visto perante o socialismo (ironicamente eram características do socialismo no capitalismo que mantinham o capitalismo bem na fita). Mas com o fim da Guerra Fria, o capitalismo não precisa mais desse artifício e a exploração se tornou bem mais desumana, com o liberalismo econômico extremado dos grandes grupos financeiros ameaçando a democracia, a autonomia e a soberania das nações, grupos financeiros esses que são uma grande ameaça à liberdade de todos hoje, pois uma atividade especulativa qualquer (as chamadas profecias autorrealizáveis) são capazes de destruir economias e governos de nações inteiras da noite para o dia. E o quadro é altamente sombrio quando falamos em previsões de como se virar esse jogo.
Dá para perceber como esse documentário é de uma importância absurda e de como o cinema cumpre nele sua função social de denúncia com grande maestria. Além dos depoimentos de especialistas em economia, que nos apresentam todo esse contexto numa linguagem bem simples e compreensível, o documentário também lançou mão do recurso da animação, onde situações expostas pelos especialistas eram explicadas de forma bem gráfica e com a narração de Eduardo Tornaghi. Talvez todo esse cuidado em se tornar a coisa bem didática tenha origem no mito de como o “economês” é algo de difícil compreensão para o grande público. E esse mito não parece somente pairar aqui sobre o Brasil. O filme “A Grande Aposta”, lançado há poucos anos e que justamente conta a história da bolha do mercado imobiliário americano que detonou toda essa crise econômica mundial mais recente, também lançava mão de explicações bem didáticas sobre questões econômicas, dadas por pessoas que não eram do meio econômico, tais como uma prostituta ou a cantora latina Selena Gomez.
Assim, “Dedo na Ferida” é um daqueles filmes que a gente deve ver, ter e guardar. Esperemos que ele entre em grande circuito após o Festival do Rio deste ano e que seja lançado em DVD. Ter um documentário deste quilate e divulgá-lo em tempos tão sombrios de ignorância e tolerância chega a ser um dever cívico a meu ver.