O nono episódio de “Jornada nas Estrelas Discovery” encerra a primeira parte da primeira temporada da volta de Jornada nas Estrelas depois de mais de dez anos. E podemos dizer que esse episódio fechou com chave de ouro essa primeira e controversa metade de temporada. “Para a Floresta, Eu Vou” se enquadra naqueles episódios de Discovery que têm a cara e o espírito de Jornada nas Estrelas. E com a vantagem de ser um episódio dentro dessa característica justamente no arco da guerra com os klingons, que começou tão desacreditado e criticado.
O episódio começou como uma sequência do episódio anterior, onde a Discovery esperava um ataque da nave da morte klingon ao planeta Pahvo e à própria Discovery. Fazer uma continuação disso já no episódio seguinte foi algo bom pois, como já foi dito em artigos anteriores, o abandono do arco da guerra klingon e o sequestro mal resolvido da Almirante Cornwell por dois episódios foi algo que incomodou um pouco, indicação de uma quebra de continuidade e de algo um tanto mal concebido. Estava na hora de se ser mais objetivo ao se contar essa história da guerra. Recebendo uma ordem do Almirante Vulcano Terral para abandonar o planeta Pahvo e não esperar para atacar os klingons, Lorca, que já tinha uma ficha corrida de comportamentos erráticos e indisciplinados, decide retornar em dobra cinco para a base ordenada, para que a tripulação tenha um tempo de três horas com o propósito de articular um plano de salvamento dos pahvanos e, ainda por cima, resolver o espinhoso problema da camuflagem klingon. Foi constatado que a camuflagem tem algumas imperfeições bem pequenas que, se mapeadas, podem tornar as naves klingons detectáveis. Só que, para fazer esse mapeamento num curto espaço de tempo, será necessário dar 133 saltos com o motor de esporos. Isso afetará drasticamente Stamets, que já sofre com alguns efeitos colaterais de outros saltos e não se sabe o que uma quantidade tão grande de saltos de uma só vez vai provocar no engenheiro. Ainda, para fazer o tal mapeamento, dois sensores precisam ser instalados dentro da nave da morte klingon. Tyler é o escolhido para liderar a missão e ele quer Burnham para acompanhá-lo, mas Lorca não vai aceitar colocá-la em risco. Nesse momento, a personagem protagonista irá convencer seu capitão dizendo que ela é a mais qualificada a fazer aquela missão, pois já esteve na nave klingon. Já Stamets não está muito inclinado a fazer os saltos. E será a vez do capitão convencer o engenheiro, usando o sedutor argumento de que Stamets tem o espírito de explorador e, ainda, o capitão fez um mapeamento de todos os saltos feitos pela Discovery e esse mapeamento mostra um indício de que a nave poderá fazer viagens pelo multiverso. Nessa nova fase de “Lorca, Paz e Amor”, Stamets é convencido e fará os saltos. Lorca também fará um discurso para a sua tripulação, exaltando-a antes da missão. Fica aqui a dúvida: nosso capitão está mesmo numa fase mais compreensiva, ou ele rememora o capítulo 13 de “O Príncipe”, de Maquiavel, que diz que um líder deve ser simultaneamente amado e temido por seus súditos? E mais: se estivermos fechados com a segunda alternativa acima, podemos dizer que Lorca se aproxima ainda mais do Grão Almirante Thrawn, grande personagem de Timothy Zahn, do Universo Expandido de “Guerra nas Estrelas”. Ao detectar a nave klingon camuflada (???) em Pahvo, a Discovery usa o motor de esporos para retornar ao planeta. Tyler e Burnham conseguem se teletransportar em segredo para a nave da morte klingon e, enquanto instalam os dois sensores necessários para o mapeamento, encontram Cornwell e L’Rell. Tyler ao ver L´Rell, pira na batatinha, pois os traumas das torturas que sofreu nas mãos de L’Rell afloram, desestabilizando psicologicamente o moço. Assim, Burnham ficará sozinha e instalará o segundo sensor na ponte (!!!) da nave da morte. Com os sensores ligados, a Discovery começa a série de 133 saltos para mapear a camuflagem. Mas Kol, o capitão da nave klingon, pressente uma cilada e decide dar o fora. Nesse momento, Burnham, que estava escondida na ponte, decide chamar a atenção dos klingons para abortar a fuga deles. Burnham abre o jogo e diz que Kol é desonrado por roubar naves e não estar no campo de batalha. Kol pergunta como ela sabe disso e ela disse que ela mesma estava na nave da morte durante a batalha das estrelas binárias e matou T’Kuvma. Burnham propôs um duelo a Kol e começa a parte testosterona do episódio, tanto da parte de Kol, quanto de Burnham, onde os dois saem na porrada. Enquanto isso, a Discovery termina os 133 saltos e transporta Cornwell, Tyler (com L`Rell trepada em seus ombros) e Burnham. Mapeada a camuflagem, a Discovery detecta a nave da morte e a destrói com uma saraivada de torpedos fotônicos, destruição que Lorca desfrutou depois de colocar seu coliriozinho contra luzes muito fortes. Burnham fica feliz de ter o distintivo de Georgiou em suas mãos, depois de conseguir tirá-lo de Kol. Já Tyler tem pesadelos com L’Rell, onde ela o estupra, e ele confidencia a Burnham que fez sexo com a klingon para garantir a sua sobrevivência. Mas, ainda muito atormentado, procura a klingon na cela, que diz que ela não vai deixar eles (?) o machucarem. Já Stamets sofreu com os muitos saltos e Culber pensou que quase perdeu seu amante. Isso provocou um beijo apaixonado e sincero entre os dois (o primeiro beijo gay de “Jornada nas Estrelas”). Stamets, durante os saltos, falou uma frase enigmática: “há uma clareira na floresta. É como eles vão”. Que alegoria seria tal clareira? Stamets ainda aparecerá no filme com Lorca, que ficou de receber o prêmio da Legião de Honra. O capitão decidiu recomendar esse prêmio a Stamets. O engenheiro disse que dará um último salto até a base estelar 46 e depois será examinado pelos melhores médicos da Frota Estelar, algo que Lorca concorda, numa mostra de total harmonia entre os dois. Mas, quando há o salto, Stamets dá um berro e cai com os olhos embranquecidos dizendo que consegue ver infinitas permutações, algo fantástico. A Discovery está num lugar totalmente desconhecido, cercada por destroços de naves, encerrando o nono episódio.
Como pudemos ver, foi um episódio muito movimentado em termos de ação e de enigmas. Burnham fez sua luta com Kol, Lorca usou seus métodos pouco ortodoxos para destruir os klingons e ainda ganhar uma medalha por isso e, principalmente, Stamets enigmaticamente dá umas dicas a nós de como será o multiverso e de quais rumos a série pode tomar na segunda parte da temporada. Até a tecnobabble da detecção da nave klingon camuflada deu o ar de sua graça e foi convincente ao invés de enfadonha, quer dizer, ela se encaixou bem na trama.
Algumas questões surgem na nossa cabeça. Lorca está ficando um cara legal ou ele aparenta ser legal para conquistar as pessoas e elas ficarem em suas mãos como marionetes manipuladas? Espero que a segunda opção prevaleça, pois isso fará as coisas ficarem mais interessantes. Aproximar Lorca de Maquiavel (e de Thrawn, como citado acima) só trará contribuições à série.
E Tyler? É mesmo um espião klingon infiltrado? Ou será também um fantoche manipulado por L’Rell? Essa teoria de espião klingon infiltrado já foi tão ventilada que acredito que agora o mais adequado seria o moço ser uma espécie de bomba-relógio prestes a ser acionada por L’Rell, mas bomba-relógio essa totalmente humana e não klingon. E caberá a Burnham desarmar essa bomba-relógio. Falando em Burnham, esse foi o episódio onde nossa protagonista foi tratada da forma mais nobre pelos roteiristas. Já não era sem tempo, aliás. Seu papel de protagonista parecia não ser aproveitado em sua essência ou até com algumas coisas mal encaixadas. Foi um pouco difícil a gente se simpatizar com ela logo de cara; e a construção do personagem passou por alguns turbilhões, não foi em brancas nuvens. Ou seja, custou um pouquinho para a gente ter uma certa empatia com a moça, um tempo que demorou mais do que o comum nesse caso.
Outra coisa que devemos ressaltar aqui é a de que o episódio foi inovador em dois quesitos: o primeiro beijo homossexual de Jornada nas Estrelas, que já não era sem tempo de ter acontecido (a coisa demorou mais de cinquenta anos, se eu quiser ser um pouco anacrônico) e a polêmica cena do estupro de Tyler, essa sim bem inovadora, pois mostrou a questão de estupro não do ponto de vista da mulher como vítima, mas sim do homem. Tal inversão foi muito útil na forma como o estupro pode ser visto como uma coisa abominável, já que a violação do corpo sempre é o da mulher e parece que setores mais conservadores meio que banalizaram essa violação. Agora, e se trocarmos a coisa? Agora, é o corpo do homem que é violado. O impacto será maior do que ver o corpo da mulher ser violado? Ou seja, choca-se com um, mas banaliza-se com o outro? O simples fato de essa cena, considerada altamente perturbadora por alguns, já despertar tal tipo de reflexão, mostra a sua força e importância e ressalta a tradição de Jornada nas Estrelas de inovar.
Agora, a grande questão ficou em onde a Discovery acabou parando, com o multiverso como argumento. Ainda há possibilidades com o Universo Espelho? Ou essa ideia será abortada em função de uma visão mais ampla? Outra coisa: universos alternativos para encaixar novamente histórias aparentemente tresloucadas com o cânone? Isso já foi feito antes por um tal de J. J. Abrams. Mas fica um gosto de cabo de guarda-chuva na boca quando você encontra uma argumentação tão trivial para aproximar a série do cânone. Acharia eu muito mais interessante tudo o que vimos agora fazer parte do Universo Prime e, aí, de uma forma engenhosa, todas as situações absurdas narradas nos primeiros nove episódios serem conduzidas a um cânone bem redondinho. Botar a responsabilidade de tudo no universo alternativo ou no multiverso é uma saída demasiada confortável e pouco criativa a meu ver.
De qualquer forma, essa jornada até o cânone ou à tresloucação geral somente continuará em janeiro. Até lá, o que não vai faltar são especulações e discussões, algumas dentro dos níveis de civilidade, outras nem tanto. Esperemos ansiosamente por essa sequência, torcendo que a série tenha um bom desfecho em sua primeira temporada, pois esse é o verdadeiro desejo dos verdadeiros fãs de Jornada nas Estrelas: que o produto dê certo para que a franquia possa continuar por mais anos a fio.