Um mangá em volume único chama a atenção nas bancas. “Feridas”, escrito por Otsuichi e com arte de Hiro Kiyohara, fala de dois meninos de uma classe especial. Mas, um pouco diferente do que entendemos de “classe especial” no Brasil, no Japão e em outros países, esse tipo de classe também é para as crianças que têm dificuldades de relacionamento.
Vemos aqui a história de Keigo, um desses meninos. Ele é criado com muita indiferença pelos tios, depois de seu pai ser internado no hospital e sua mãe sair de casa para desaparecer e nunca mais voltar. Ele guarda mágoas de sua mãe por ter fugido e o deixado sozinho e tem profundo rancor do pai, que o tratava com violência, assim como à sua mãe. Keigo vai parar na classe especial justamente depois de surrar com muita raiva um garoto que o humilhava por causa de sua condição familiar. Na classe especial ele conhecerá Asato, outro menino criado com indiferença pelos parentes, e que vive totalmente recluso com relação às demais pessoas. Lentamente, Keigo se aproxima de Asato e eles se tornam amigos. Mas, num belo dia, Keigo descobre que Asato tem um poder especial: ele consegue passar para seu corpo as feridas de outras pessoas, curando-as. Ao mesmo tempo, Asato também pode passar essas feridas para outras pessoas. Keigo, então, tem a ideia de ajudar as pessoas feridas com o poder de Asato, que transferia as feridas das pessoas para o pai de Keigo no CTI, numa espécie de vingança do filho revoltado com o pai. Haverá, ainda, na vida dos dois, uma misteriosa funcionária de uma sorveteria que anda constantemente com uma máscara cirúrgica, sendo que ela será a única a tratar os dois com carinho e amor.
Seguindo a linha filosófica do Tio Ben do Peter Parker, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, os meninos, ao quererem fazer o bem, não usaram o poder de Asato como devia e isso trouxe sérios problemas para os dois, que ficavam com suas vidas ainda mais angustiantes do que já eram. Isso sem falar na vingança que Keigo promovia contra o seu pai, que de bem não tem nada. O grande mote da história, no entanto, são os sofrimentos e traumas dos dois adolescentes. É um mangá que pesa muito para o lado do drama, sendo altamente emotivo, com o poder de Asato sendo uma espécie de ingrediente a mais que amplifica essa situação de drama. A vida pregressa dos dois protagonistas também é um combustível a mais que beira o bizarro, pois a forma como mães e pais se voltam contra os filhos é de chocar. Vale dizer aqui que o autor, Otsuichi, se inspirou na obra de Torey Hayden, uma psicóloga infantil dos Estados Unidos e professora de classes especiais. Seus livros relatam experiências com crianças dessas classes, inclusive com situações de violência entre os alunos.
Apesar de todo esse drama, paroxismo e agonicidade, o autor do mangá não optou por um final triste e abraçou um happy end cheio de esperança. Ou a coisa teria ficado pesada e insuportável demais. De qualquer forma, é uma história que traz elementos para a reflexão e, por que não, uma espécie de grito de socorro em nome de crianças que não são cuidadas de forma adequada por seus pares. Cá para nós, o que não falta nesse mundo é criança largada e jogada por aí por quem as gerou, sem qualquer noção de mundo e de como as coisas são. E isso é algo muito grave, com esse mangá denunciando isso. Daí a importância dessa leitura, que consegue ser muito tocante. E, ainda por cima, é um mangá de volume único, algo altamente recomendável, pois como é difícil fazer uma coleção completa de mangás japoneses no Brasil!!! Os números chegam até nós de forma muito irregular, isso quando chegam. Assim, sempre recomendo aos leitores a chance de ler um mangá de volume único e torcer para que o mangá de vários volumes que você escolheu chegue com a maior regularidade possível e da forma mais completa. Mas não se esqueçam de dar uma olhadinha em “Feridas”.