Continuando a fazer análises dos episódios de “Jornada nas Estrelas Voyager”, vamos falar hoje de mais um episódio da quinta temporada, “11:59”. Temos aqui uma história contada, em boa parte, em flashback. Uma história que aborda mais uma vez a questão da tradição e modernidade, trazendo a reboque a importância do mito para nosso imaginário.
O episódio começa com Janeway e Neelix conversando. No meio da conversa, Neelix pergunta dados sobre a Muralha da China. Janeway, por não conhecer muito os detalhes, desconversa um pouco, mas o cozinheiro alienígena insiste no papo e diz todos os detalhes da Grande Muralha terrestre. Janeway fica impressionada e Neelix diz que está fazendo uma espécie de competição com Paris sobre conhecimento de coisas da Terra. Janeway, então, pergunta a ele se conhece o “Portal do Milênio”, uma espécie de construção que foi feita na virada do século XX para o XXI e que serviu de inspiração para a construção das primeiras colônias em Marte. Como agora é Neelix que desconhece o assunto, Janeway aproveita o gancho e diz que uma de suas antepassadas esteve envolvida no projeto da construção do Portal, sendo uma grande personagem de sua família. O episódio então alterna-se num flashback, onde vemos o que aconteceu com a antepassada de Janeway, Shannon O’Donnel (interpretada, obviamente, pela própria Kate Mulgrew), enquanto que vemos, com pouco sucesso, Janeway tentando recuperar informações de sua nobre antepassada.
Esse episódio tem questões muito curiosas. Em primeiro lugar, o trabalho de resgate da memória, mais ou menos o que um historiador passa quando busca as fontes históricas. A coisa sempre é muito fragmentada e às vezes, montar esse quebra-cabeça com as peças faltando não é muito fácil, com as peças aparecendo somente muito posteriormente. É por isso mesmo que esse é um dos motivos pelos quais a História é constantemente reescrita. E o resultado nem sempre é o que queremos achar. No caso da antepassada da capitã, ficou atestado, depois das pesquisas, que sua participação no Portal do Milênio não foi tão decisiva assim, o que provocou uma decepção em Janeway. Ou seja, citando o historiador Peter Burke, os historiadores são odiados pois eles lembram o que queremos esquecer.
Mas o filme também tem outras questões. Na história de O’Donnel, ela conhece, numa cidade no interior de Indiana, onde o Portal será construído, Henry Janeway (acho que vocês já perceberam que eles irão se casar e ter filhos), o dono de uma livraria tradicional que não quer arredar o pé de seu lugar, enquanto que todo o resto da cidade “de bom grado”, vende suas propriedades para a empresa do Portal, que ofereceu um valor 20% acima do mercado. Henry fica rotulado como turrão e o projeto fica com o risco de ser feito em outro lugar. Nosso simpático livreiro também é um adepto da tradição, preferindo ficar trancado com seus livros e nem sequer usar um computador, enquanto O’Donnel é adepta da modernidade, sendo uma engenheira aeroespacial demitida e na pior. O’Donnel convencerá Janeway a se desfazer de sua livraria em função do progresso (e de interesses econômicos da empresa também). Como prêmio, ela terá uma participação modesta no Projeto do Portal do Milênio.
O que incomoda aqui? Jornada nas Estrelas sempre foi uma série que estimulou o progresso científico sem abandonar a leitura, muito exaltada na série. Mas nesse episódio, ela ficou vista como algo arcaico, que atrapalhava os passos do ser humano em direção ao futuro. Mesmo a solução conciliadora de Janeway abrir uma livraria no Portal não soou muito convincente. E mais: esse é um episódio que valoriza os grandes feitos dos antepassados, ou seja, a memória e as tradições. E aí, essa mesma tradição é rechaçada em função da modernidade do Portal, que destrói a antiga cidade decadente. Fica uma coisa levemente paradoxal a meu ver. Ou seja, num primeiro momento, a tradição é elencada como virtuosa no episódio, mas num segundo momento, é a modernidade que é laureada como algo positivo.
Agora, a grande virtude do episódio é a questão do mito, uma história que é compartilhada por um grupo ou povo, tida como real para aquele grupo, mesmo que ela não tenha ocorrido. Vemos muito isso no nosso folclore. É só a gente ver aquele redemoinho de vento na rua que a gente já fala logo que é o Saci-Pererê, por mais ilógico que isso seja. Mas está em nosso imaginário e sistema de valores. No caso da capitã Janeway, Shannon O’Donnel estava em seu imaginário mítico. E foi para ela uma decepção descobrir que sua antepassada não teve uma participação tão marcante na construção do Portal. Mas como os próprios tripulantes da Voyager disseram, chancelados, inclusive, por Tuvok, não importa quem foi ou não O’Donnel, mas sim a função que sua imagem idealizada cumpriu no imaginário da capitã: ela ingressou na Frota Estelar por causa da sua antepassada. Janeway até retruca dizendo que, com isso, jogou toda a tripulação para o quadrante Delta, mas a tripulação argumenta que isso fez com que todos se conhecessem bem melhor. O episódio não poderia terminar melhor, com o Doutor fazendo uma foto da tripulação e sua capitã com sua holocâmera, ao mesmo tempo que podíamos ver uma foto de O’Donnel envelhecida com sua família, numa exaltação à preservação da memória e das tradições, qualquer que seja a época, o que dá muita magnificência a esse episódio, que tem que ser apresentado aos roteiristas de Discovery para compreenderem o que é a essência de Jornada nas Estrelas.
Cabe também dizer que o próprio título do episódio, “11:59”, que cita a virada do milênio, do ano 2000 para o ano 2001, estava no imaginário das pessoas na época, já que o episódio foi produzido em 1999 e temas como o novo milênio colocado de forma equivocada na virada de 1999 para 2000 e o bug do milênio eram assuntos muito em voga na época (parece que foi ontem, mas lá se vão quase vinte anos). Assim, o próprio episódio já está datado, como vemos muito na série clássica, por exemplo.
Assim, vale muito a pena você, trekker de plantão, revisitar o episódio “11:59”, o vigésimo-terceiro da quinta temporada de Voyager. Um episódio que faz jogos com a tradição, a modernidade e o mito. E, como sempre em boas produções de Jornada nas Estrelas, convidando o espectador a uma boa reflexão.