Um documentário brasileiro surpreendente. “Camocim”, de Quentim Delaroche, analisa o processo eleitoral da pequena cidade de Camocim de São Félix, no interior de Pernambuco. Temos aqui a eleição para prefeito e vereadores, que divide a cidade nos “azuis” e nos “vermelhos”, independente da ideologia dos partidos políticos. Na verdade, vemos uma disputa de dois grupos pelo poder, o que pode gerar brigas e até mortes. Tal cenário tem sido visto por alguns como uma espécie de “sinal dos tempos” do turbulento processo político brasileiro dos últimos anos. Entretanto, quem conhece um pouquinho a vida de cidades do interior sabe que a forma como uma eleição local é conduzida tem origens muito anteriores a isso e pode ser vista como uma espécie de prolongamento das relações clientelistas e opressoras da República Velha (1889-1930). E em Camocim não é diferente.
De qualquer forma, o documentário elenca seus protagonistas. Será acompanhada aqui a trajetória da campanha de um candidato a vereaador, César Luceno, e sua fiel escudeira, a cabo eleitoral Mayara Gomes. Aqui, a protagonista principal será Mayara, uma jovem de apenas 23 anos e que está na política por idealismo puro, indo totalmente na contramão de qualquer coisa que se pensa genericamente sobre política no Brasil. Mayara é uma personagem totalmente fascinante e, por que não dizer, apaixonante. Mostrando uma maturidade, serenidade e, sobretudo, muita destreza e consciência, ela leva seu oficio de cabo eleitoral com uma seriedade mordaz.
Sua experiência no processo político já é suficiente para que ela não se deslumbre e seja ludibriada por políticos de interesses escusos. Ou seja, ela já passou por essa decepção e diz que, se o político que ela apoia no momento se perder na ganância (em suas próprias palavras) ela partirá para outra alternativa como já fez no passado, pois ela quer fazer melhorias na sua cidade e para a sua população. Ao ver pessoa tão jovem e tão cheia de esperança num meio em que a gente, na maioria das vezes, vê como totalmente podre e sem qualquer credibilidade, a gente até volta a nutrir um pouco perspectivas de dias melhores.
Mas não é somente a personagem de Mayara que chama a atenção. A conversa entre os jovens da cidade também nos mostra algo surpreendente, pois eles estão muito antenados com o contexto político local, sabendo como os grupos se comportam, quem matou quem na disputa pelo poder, quais são os interesses de fulano e beltrano em vestir o vermelho ou o azul, etc. Há também aqueles que trabalham na campanha de determinado candidato (muitas vezes por obrigação e sob a ameaça de perder o emprego), mas que irão votar em branco ou nulo nas eleições. Ou seja, eles usam o clientelismo como estratégia para obter pequenos bens pessoais (a manutenção de um emprego ou a obtenção de um emprego temporário), mas isso não quer dizer que sejam pessoas alienadas. E o voto branco ou nulo é, no entender deles, a forma de protesto que podem fazer contra toda aquela jogatina política em que a cidade se transforma.
Curioso, também, é ver o clima de campanha, dentro de perspectivas totalmente festivas e carnavalizantes. Qualquer comício é motivo para trios elétricos, festas, queimas de fogos, etc., embora as tensões nunca deixem de estar presentes, onde vemos cabos eleitorais dos dois lados agredindo-os uns aos outros no ambiente festeiro, isso quando não tem um policial pronto com suas balas de borracha no meio da multidão.
Assim, “Camocim” é um documentário definitivo para que a gente possa compreender mais como é a relação do brasileiro com a política. Se nas cidades de interior, a coisa toma contornos de rivalidade futebolística, o clientelismo e os interesses escusos também regem as tensões. E, no meio disso, um pequeno oásis de esperança manifesto na figura de Mayara Gomes, que é a única ali a levar o processo político a sério. Vale muito a pena dar uma conferida.