Um bom documentário brasileiro dirigido por Alice Gomes. “A Última Abolição” revisita o tema da Abolição da Escravatura e a questão do afrodescendente no Brasil. Para quem tem um conhecimento mínimo no assunto, o tema parece ser recorrente. Mas sempre é bom revisitá-lo, pois as pesquisas têm avançado e descoberto novos pontos de vista sobre o contexto. Ainda, voltar a falar da escravidão e do negro no Brasil tem tido uma grande importância, principalmente nos tempos turbulentos que temos vivido e onde a ignorância de muitas pessoas sobre temas históricos tem levado a uma série de equívocos e erros de interpretação sobre as mais variadas questões sociais. Assim, um filme que nos relembra algumas coisas e apresenta outras novas sempre é bem vindo.
Vários estudiosos e pesquisadores sobre o tema são entrevistados e constroem o panorama que o documentário pretende apresentar. No meio acadêmico, temos figuras, por exemplo, do porte de uma Hebe Mattos e João José Reis. O recorte pretendido no filme se detém pouco na escravidão colonial e dá mais atenção para a Abolição em si e, principalmente, para uma questão que muito poucas pessoas se perguntam: como ficou a situação do negro no Brasil depois da escravidão? Além de serem simplesmente jogados à própria sorte, o Código Penal da época criminalizava todas as situações em que os negros viviam. Por exemplo, foi configurado o crime de vadiagem, numa época em que muitos negros que, mal acabaram de ser libertados, ainda estavam desempregados. Assim, se a Lei Áurea liberta os escravos, o Código Penal os coloca novamente nos grilhões. Há, também, o questionamento (já meio batido) de se a Princesa Isabel é a “grande Redentora e libertadora dos escravos” ou se o processo da Abolição deve ser visto como uma luta dos negros em si. Outro mito já desfeito e que é relembrado no filme é a questão da “democracia racial” de Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala”. Mas o filme traz alguns elementos interessantes não conhecidos do grande público, como o ato de Rui Barbosa ter queimado as notas de vendas dos escravos (ele ficou conhecido como um destruidor de fontes sobre a escravidão e criticado por isso), pois os senhores, após a Abolição, queriam uma indenização do Estado por terem perdido seus escravos, suas “propriedades”. Embora Barbosa tenha dito na época que eram os escravos que mereciam a indenização, parece que o ato do famoso jurista foi mais o de livrar o governo de pagar pesadas indenizações do que de compaixão com os escravos em si. Enfim… Outro elemento muito interessante que é citado no filme é o surgimento de movimentos que lutam pelos direitos dos negros no Brasil nas décadas de 30 e 40, que teriam influenciado movimentos negros nos Estados Unidos posteriormente, muito antes dos movimentos de Martin Luther King e Malcolm X pelos direitos civis na década de 60, desmistificando a visão corrente de que os movimentos negros brasileiros seriam um mero decalque influenciado pelos movimentos negros americanos, quando temos justamente uma situação contrária.
O documentário ainda faz um alerta da estratégia de genocídio sistemático das populações negras de comunidades mais pobres, fazendo de forma eficiente um link direto com a cultura de escravidão que ainda perdura de forma muito forte em nosso país.
Dessa forma, “A Última Abolição”, apesar de ser um documentário um pouco repetitivo em alguns momentos, ainda assim se faz absolutamente necessário, pois ele traz alguns elementos novos e nunca é demais lembrar a situação altamente espinhosa que a comunidade negra brasileira passa em nosso país, onde racismos e genocídios fazem parte da ordem do dia, tudo isso uma herança dos mais de três séculos de escravidão que assolaram o Brasil e que não se apagam tão facilmente, mesmo depois de cento e trinta anos de Abolição da Escravatura. Tal documentário é fundamental em dias de tanto ódio e de intolerância como os que temos vivido. Programa imperdível.