O nono episódio da segunda temporada de “Jornada nas Estrelas Discovery”, “Projeto Dédalo”, é dirigido por Jonathan Frakes, o que é um sinal de que o episódio se sai melhor do que a média. Entretanto, dessa vez a coisa degringolou um pouco em virtude do roteiro, que não ajudou muito. Ou seja, ele foi um pouco abaixo da média, já baixa, dos roteiros de Discovery. Apesar disso, nem tudo foi perdido e o episódio também teve alguns pontos bons. Para a gente poder entender isso, precisamos dos spoilers habituais.
O plot começa com a Almirante Cornwell chegando às escondidas à Discovery, para interrogar Spock, que nega categoricamente ter assassinado alguém e não sabe por que foi escolhido pelo Anjo Vermelho para ter as visões da destruição em massa que os habitantes da galáxia sofrerão. O teste diz que Spock não mentiu, com 100% de certeza, mas Cornwell tem um vídeo que mostra Spock matando três pessoas na sua fuga da clínica psiquiátrica. Cornwell diz a Pike que a sede da Seção 31 tem um controle que recebe informações da Frota, mas ele está bloqueado pela Almirante Patar. O controle ajuda a tomar decisões estratégicas e foi transferido para a Seção 31 a pedido de Patar com o surgimento dos sinais do anjo. A missão da Discovery é ir a sede da Seção 31 e desbloquear o acesso ao controle para voltar a abastecê-lo com informações. O grande problema é que o antigo presídio onde está a sede da Seção 31 é cercado por minas que são atraídas pelos escudos. Ao chegar à sede, a Discovery sofre ataques das minas e não consegue se desviar. Burnham (sempre ela) sugere padrões evasivos aleatórios para pegar de surpresa o computador que controla as minas. A Discovery consegue atravessar a barreira de minas e recebe uma transmissão ameaçadora da Almirante Patar. Mesmo assim, vão para a antiga prisão e descobrem que Patar e os demais almirantes estão mortos há duas semanas. Quem, então, entrou em contato com a Discovery com a imagem de Patar? Saru descobre que a transmissão de Patar foi um holograma, assim como também na cena do homicídio de Spock, incriminando-o. Logo, a Discovery parece lutar contra todo o sistema, com um ingrediente a mais: o controle, que recebe os dados, se abastecidos com os dados da esfera, pode adquirir consciência e extinguir toda a vida na galáxia. É por isso que Airiam, que armazenou os dados da esfera em sua memória, conseguiu convencer Pike a ir para a missão para transferir todos esses dados para o controle. Mas seu plano foi descoberto e, depois de dar uma boa surra na Burnham, acabou presa em uma câmara de vácuo por Michael. Airiam, que está sob o controle da entidade alienígena, pede que Burnham a ejete para o espaço. Depois de muito resistir, ela ejeta Airiam que morre, provocando uma grande comoção.
Bom, esse foi o plot principal, embora haja algumas pequenas histórias paralelas que serão mencionadas ao longo de nossa explanação. O que podemos falar dessa história? Em primeiro lugar, é uma missão com um propósito um tanto quanto confuso, pois o controle estratégico de toda a Frota Estelar não pode ficar numa base escondida da Seção 31 somente porque uma almirante quis e, ainda assim, depois vedou esse controle de receber informações. A Frota já deveria ter mandado uma pá de naves para recuperar esse controle assim que a Patar vedasse o acesso de informações ao controle. Antes a Discovery tivesse que ir para São Francisco, procurada por toda a Frota. Seria algo bem mais interessante. Outra coisa que incomoda é você dar consciência para uma máquina (o tal do controle) para ele adquirir consciência com todo o volume de informação da esfera e destruir toda a vida na galáxia. Há vários problemas aí. Primeiro, um volume ilimitado de informação não assegura o desenvolvimento de consciência. Na verdade, segundo Marcelo Gleiser, mesmo que um dia consigamos fazer uma máquina que reproduza fielmente um ser humano e sua capacidade de armazenamento de informação, ainda assim não teremos uma máquina consciente, pois a consciência é algo completamente incompreensível e inalcançável nos dias de hoje. Não sabemos do que é feita, como pode ser produzida, ela simplesmente está lá, no cérebro. E mais: por que, uma vez a máquina tendo desenvolvido a consciência, ela destruiria a vida orgânica? De onde vem o motivo para isso? Qual o antagonismo entre máquina e vida orgânica? Ficou muito simplória e maniqueísta essa ideia. De qualquer forma, apareceu uma espécie de “mal maior”, que manipula a Seção 31 e a Frota, vide os hologramas que incriminam Spock ou a morte dos almirantes na sede da Seção 31. Mais uma vez Discovery apresenta uma boa ideia. Só esperemos que ela consiga desenvolver essa ideia bem, pois já está cansando a gente ver um monte de boas ideias mal aproveitadas. Ainda indo nessa direção, o que seria o Projeto Dédalo? E por que tudo tem que ser em volta de Burnham, como disse Airiam ao final? Mais uma vez o problema do protagonismo excessivo de Burnham na série. De qualquer forma, todo esse protagonismo foi questionado por Spock. As cenas de bate-boca entre os irmãos enervam alguns fãs, mas eu consigo ver um aspecto positivo nelas. A coisa tá parecendo uma terapia de grupo bem catártica, onde os dois resolvem suas diferenças. O chato foi ver Spock mais emocional nesse episódio, com uma tensão crescente nas discussões até a explosão paroxista em cima do pobre do tabuleiro de xadrez tridimensional. Mas, por outro lado, Spock fala o que Burnham precisa ouvir há muito tempo: ela sempre quer atrair toda a responsabilidade para si, como se carregar um pesado fardo fosse melhor do que carregar uma dor incontrolável. Spock cita a responsabilidade que Burnham construiu em sua cabeça na guerra com os klingons e no assassinato dos pais pelos klingons, dizendo que não pode haver igualdade entre os irmãos enquanto ela ficar assumindo toda a sua responsabilidade, não reconhecendo fracassos ou sua posição de irrelevância em algumas questões. É claro que Burnham vai pirar na batatinha com isso, mais uma vez agindo como uma criança mimada. Nesse aspecto, a briga entre os dois foi ótima, pois Spock expôs todos os defeitos da protagonista de forma impiedosa, o que ajuda a personagem a enfrentar seus próprios dilemas. Ainda, seguindo essa linha, a morte de Airiam tem uma razão de ser, pois a coisa foi construída a um ponto de que era impossível salvar a “mulher-robô”, mesmo que Burnham insistisse em salvá-la (não se pode abraçar o mundo com as pernas, não se pode salvar o dia todo o dia) e recebesse uma ordem direta do capitão para sacrificar Airiam, assim como Spock falava da ponte que era impossível salvá-la. Ou seja, quando reconhecemos que também precisamos conviver com o fracasso, isso se torna algo libertador, nas palavras do próprio Spock.
Falando mais de Spock, precisamos mencionar aqui a melhor parte do episódio, que foi o diálogo entre Spock e Stamets. Um estimula o outro pessoal e profissionalmente. Stamets diz a Spock que Burnham o ama e Spock acha que Culber se separou de Stamets não porque não gosta dele, mas porque não sabe mais quem é. Spock também diz a Stamets que ele tem experiência com a rede micelial e vai conseguir resolver o problema da sabotagem do motor de esporos, enquanto que Stamets diz a Spock que o anjo o escolheu, pois ele deve ser uma pessoa especial. Esse foi o momento onde o episódio mais se aproximou da essência de Jornada nas Estrelas a meu ver.
E o fim de Airiam? A coisa era para provocar uma comoção, mas como os personagens da ponte sempre foram mal construídos, mais parecendo coadjuvantes de luxo, talvez não houvesse empatia suficiente por parte do grande público para se emocionar com sua perda. Confesso que até cheguei a me emocionar mas é realmente um problema na série essa gama de personagens mal construídos. Eu tive até uma esperança ao ver o início do episódio, pois finalmente via ali os personagens secundários recebendo uma atenção maior, sobretudo Airiam. Mas na verdade, só estavam era preparando o caixão da moça cibernética, pois ela ia deixar a série ao final do episódio. O que eu quero ver na verdade é um episódio que tenha a coragem de desenvolver bem um ou dois personagens secundários e histórias paralelas ao plot principal em outros episódios que também desenvolvam esses personagens sem descartá-los ao final. O desenvolvimento de Airiam aqui pareceu mais uma colher de chá que deram para a gente (e para a Airiam) já que a moça iria morrer. Assim fica feio.
Assim, esse episódio dirigido pelo Frakes acabou não sendo um dos melhores, embora tenha tido um razoável conteúdo dramático. O grande problema aqui é o roteiro fraco e enrolado, que introduz uma ameaça eletrônica com um propósito um tanto furado. Mas o filme também tem suas virtudes, sobretudo no relacionamento entre os personagens (as discussões entre Burnham e Spock e o diálogo afável entre Spock e Stamets). E, principalmente, uma boa lição que Burnham tomou, que é a de não poder assumir todas as responsabilidades o tempo todo. É necessário também aceitar o fracasso, para aprender com ele e se superar. Nada mais humano, vindo de um apologista da lógica. Aí é que está a força do episódio. E esperemos o que vem por aí.