Um filme muito tocante. “O Gênio e o Louco” é uma história sobre a construção de um dicionário. Mas, acima de tudo, é uma história sobre perdão. Até onde vai a sua coragem de perdoar o imperdoável? Como você pode se desvencilhar de mágoas profundas e reconstruir um futuro a partir de sua dor? Dá para perceber que este é um filme que suscita uma reflexão bem pertinente. E isso já é o indicativo de que o filme é bom. Vamos lançar mão dos spoilers aqui.
O plot é o seguinte. Doutor Minor (interpretado por Sean Penn) é um homem profundamente atormentado. Ele é um veterano da Guerra de Secessão e vive na Inglaterra de perto da virada do século. O doutor teve que, durante a guerra, marcar com ferro quente o rosto de um desertor. Mas nosso médico tem esquizofrenia e passou a ter visões do tal desertor o perseguindo. Por causa disso, ele mata um inocente, pai de seis filhos, e acaba internado num manicômio judiciário. Enquanto isso, o autodidata James Murray (interpretado por Mel Gibson) busca convencer o rígido meio acadêmico de Oxford a empreender a produção do mais ambicioso Dicionário da Língua Inglesa. Para isso, seria necessário fazer uma pesquisa minuciosa da produção literária do idioma em todo o mundo. Murray teve a ideia de pedir que as pessoas enviassem palavras e seus significados em determinadas obras literárias pelo correio. Esse apelo chega aos ouvidos de Minor no manicômio e ele começa a produzir freneticamente, ajudando em muito o trabalho de Murray e levando a uma grande amizade entre os dois. Por outro lado, Minor tenta se redimir do seu crime, ajudando financeiramente a viúva do homem que matou, o que leva a uma aproximação entre os dois que provocará fortes conflitos na mente perturbada do médico e será um empecilho na confecção do dicionário.
Como dito acima, é um filme sobre perdão. O Grande barato aqui é a difícil aproximação entre o doutor e a viúva, que despertou os momentos mais ternos e angustiantes do filme, provocando uma verdadeira montanha russa de emoções no espectador. A coisa foi tratada com uma delicadeza extrema e envolvia demais o público, o que fazia a gente se colocar no lugar do doutor e experimentar com muita intensidade todo o seu sofrimento e sentimento de culpa. Poucas vezes um filme contemporâneo se aproximou tanto dos paroxismos típicos do expressionismo. E, por se tratar de uma história real, o espaço para o happy and não existe aqui, dando um grande tom de legitimidade a todo o conjunto.
O que podemos falar dos atores? Esse é um filme de Sean Penn. Sua atuação foi tão maravilhosa que me arrisco a dizer que Mel Gibson chegou a ser um coadjuvante de luxo. Como ele nos envolvia com sua inigualável competência dramática! Definitivamente, Penn é um ator que precisa estar mais presente em nossas telonas. Já Gibson não comprometeu com um personagem que tinha um imenso obstáculo pela frente, que era o de fazer um trabalho altamente exaustivo (ao fim das contas ele durou décadas) perante um meio acadêmico extremamente arrogante. Ele executou com eficiência todas as nuances emocionais de otimismo e desânimo, também nos envolvendo. Não podemos deixar de dizer aqui que esse também é um filme de fortes personagens femininas. Natalie Dormer fez Eliza Merrett, a viúva, tendo uma enorme química com Penn. Sua personagem era muito forte, inicialmente não aceitando as tentativas de reparação de Minor, mas pouco a pouco se aproximando dele e aceitando seu perdão. Minor a ensina a ler e ela desbrava todo um mundo novo através das palavras cujo acesso é dado pelo algoz de seu marido. Nesse momento, nossa cabeça, tão acostumada a um mundo de ódio, fica a mil, despertando sentimentos muito conflitantes. A outra personagem feminina, Ada Murray (interpretada por Jennifer Ehle), a esposa de James Murray, fez uma mulher que apoiava integralmente o marido em suas ambições e desejos, a ponto de aceitar que ele abandonasse uma carreira segura para embarcar na arriscada jornada do dicionário. Ada ainda teve a coragem de interceder a favor do marido junto ao arrogante meio acadêmico de Oxford. Eliza e Ada se mostram verdadeiras mulheres à frente de seu tempo.
Por fim, ainda podemos assinalar mais uma virtude do filme. Ele acaba concluindo que a confecção de um dicionário definitivo é impossível, já que a língua é viva e palavras são inventadas constantemente, como foi demonstrado na conversa entre crianças que aparece ao final do filme.
Dessa forma, “O Gênio e o Louco” é um programa obrigatório, pois nos mostra uma incrível história real que fala sobre temas humanos tão caros quanto o perdão, assim como tem uma interpretação memorável de Sean Penn, além de fortes personagens femininas, sem falar que lembra que o idioma é vivo e em constante mutação. Um filme que nos faz muito refletir, o que atesta a sua grande qualidade. Imperdível.