Hoje em nossas análises sobre episódios da sexta temporada de “Jornada nas Estrelas Voyager”, falemos de “Brincadeira de Criança”, o décimo-nono episódio. Ele é um desdobramento de “Coletividade”, o décimo-sexto episódio, onde crianças borgs voltaram a ser indivíduos.
O plot é simples. Numa feirinha de ciências promovida para as crianças da nave, quem se destaca é o adolescente mais velho, Icheb, cujos dons em astrofísica poderão ser muito úteis para a nave. Entretanto, Janeway alerta para Sete de Nove (que faz as vezes de mãe e de professora para as crianças ex-borgs) que os pais de Icheb foram descobertos e o rapaz será entregue à sua família. O problema é que nem Icheb, nem Sete de Nove parecem estar muito à vontade com isso. E, ainda, o planeta natal de Icheb foi muito destruído pelos borgs, tornando-se uma sociedade agrária, com um conduíte transwarp borg bem nas vizinhanças do planeta, o que aumenta a chance de reassimilação de Icheb. Assim, Janeway terá que lidar com a espinhosa tarefa de segurar Sete de Nove, que sobe geral nas tamancas para segurar Icheb na nave, o próprio Icheb, que não tem muita vontade de retornar ao planeta, e os pais do menino, que querem que ele retorne. Depois de muita conversa com os pais, Icheb decide ficar com eles e se despede da tripulação da Voyager. Mas aí entra novamente Sete de Nove, pois ela descobre que Icheb foi assimilado numa nave ao invés de na superfície do planeta, como dizia o pai de Icheb.
Bolada com a mentira, Sete vai novamente atazanar Janeway para, desta vez, a Voyager voltar ao planeta e cobrar explicações. Quando chegam por lá, eles descobrem que aquela civilização criou o patógeno que matava os borgs adultos (vide análise de “Coletividade”) e os inoculava usando crianças contaminadas com o patógeno como isca (credo!). Assim, Icheb já estava numa navezinha em direção ao conduíte transwarp borg para atrair um cubo. A Voyager viaja rapidamente para salvar o garoto e ainda consegue provocar sérias avarias na esfera borg (pois é, veio uma esfera ao invés de um cubo). O episódio termina com uma conversa entre Sete de Nove e Icheb, onde eles combinam que o garoto terá total autonomia em suas escolhas pessoais, como não poderia deixar de ser.
É um episódio interessante, principalmente porque ele desperta algumas questões de nível ético. A principal delas está no fato de que o indivíduo sempre deve ter liberdade para seguir as suas vontades. Quando a família de Icheb foi descoberta, Sete de Nove, ainda experimentando seus conflitantes sentimentos humanos, ficou completamente fora de si ao perder um de seus alunos (e, por que não, filhos?) para os pais biológicos do rapaz. Não lhe ocorreu que o menino poderia decidir por si mesmo. Isso realmente acontece muito por aí, quando os pais decidem o futuro dos filhos sem consultá-los. Essa era uma prática muito comum, por exemplo, no Antigo Regime, onde a vida dos filhos era totalmente decidida pelos pais (com quem eles iam se casar, se tinham ou não direito a herança, qual seria o oficio que eles desempenhariam, etc.) que tinham, inclusive (leia-se o pai), direito de vida e morte sobre os filhos. Dar liberdade de escolha ao filho é algo mais presente nas sociedades liberais. Outra questão ética que está presente no episódio se revela no plot twist (o episódio ficaria muito fraco se ele se baseasse somente no direito de escolha de Icheb), quando os pais usaram o próprio filho como isca para matar borgs. O que parece num primeiro momento algo muito assustador e altamente reprovável, nos faz levar a outra questão: os próprios pais de Icheb disseram que tal medida era para preservar sua própria espécie da destruição total. Ou seja, era uma medida feita num ato de desespero. Até que ponto, nós que estamos numa zona de conforto, não tomaríamos tal medida desesperada e profundamente antiética também? Não quero justificar o injustificável, mas será que seríamos nobres ao ponto de repelirmos totalmente essa medida desesperada num ataque que poderia acabar com toda nossa civilização? Fica a pulga atrás da orelha para você aí, leitor.
Dessa forma, “Brincadeira de Criança” é um episódio de “Jornada nas Estrelas Voyager” que merece uma revisita em virtude das questões éticas que aponta, sendo um bom desdobramento do episódio “Coletividade”. Vale a pena dar uma conferida.