E
estreou o tão esperado “Turma da Mônica, Laços”. A live action dos eternos
personagens de Maurício de Sousa, aquele que nos ajudou a aprender a ler (como
foi meu caso), e que mexe fundo em nossa afetividade foi um presente e tanto. Confesso
que foi um pouco difícil ver a película, pois os olhos marejaram várias vezes. Vamos
lançar mão dos spoilers aqui.
O plot é muito simples (vale dizer aqui que a história de “Laços” vem da Graphic Novel dos irmãos Lu e Vitor Cafaggi). Floquinho, o cachorrinho do Cebolinha (devidamente “pintado” de verde) é sequestrado por um vilão que vende a gordura dos cachorros para uma empresa que produz uma loção capilar. Assim, a turminha se une para procurar Floquinho, encontrando-o preso com outros cachorros num barracão muito ermo, guardado por um feroz doberman e que é trancafiado por vários cadeados. Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali vão ter que quebrar muito a cabeça para tirar Floquinho de lá.
O filme desperta duas impressões. A primeira é que vemos uma historinha em quadrinhos clássica da Turma, com todos os elementos: planos infalíveis, um vilão mau, mas bobão, a Mônica dando coelhadas a torto e direito, um já suposto romance entre a Mônica e o Cebolinha (que se desenvolveria em “Turma da Mônica Jovem”), etc. Mas o filme também tem algo de muito prosaico e idílico: crianças brincando e rindo juntas, um campinho que parece mais uma floresta encantada, casas que parecem ter vindo de subúrbios norte-americanos.
Sentimos algo realmente datado na coisa, do tipo anos 60. Nada mais justo, pois foi mais ou menos nessa época que Maurício de Sousa concebeu seus personagens. Essa parte, digamos, mais “romântica” da história, se afasta um pouco dos quadrinhos tradicionais, mas traz uns elementos interessantes. Vemos, por exemplo, a Mônica reagindo com um choro ao xingamento com Cebolinha, o que deixa ele muito mal com seus amigos, doendo bem mais que uma coelhada, por exemplo.
Ainda, a turma da rua de cima também tem as suas meninas que arremessam bichinhos de pelúcia, botando a Mônica e a turma para correr. Para uma menina que enfrenta com seu coelho surrado desde o Capitão Feio até ataques alienígenas, isso foi realmente uma surpresa. Mas como é dito em música erudita, são variações do tema.
Agora, o que mais chamou a atenção foi o conjunto muito bem feito de caracterizações. Algumas muito boas, outras um tanto regulares, mas nenhuma ruim. As perfeitas foram a Mônica (interpretada por Giulia Benite) e o Louco (interpretado por Rodrigo Santoro, que nos surpreende a cada dia com seus papéis no cinema, tanto aqui no Brasil quanto lá fora).
O Cebolinha (interpretado por Kevin Vechiatto) mostrava bem o espírito travesso e um tanto arrogante do personagem mas esbarrava no obstáculo (intransponível) do estigma dos cinco fios de cabelo. O Cascão (interpretado por Gabriel Moreira) conseguiu roubar as cenas com seu carisma muito forte. Só lamentei o fato de que me pareceu que a Magali (interpretada por Laura Rauseo) tenha tido menos tempo de tela.
Senti um pouco de falta da meiguice e sensibilidade extrema dela, da qual gosto muito. Não sei por que, mas gostei demais da Mônica Iozzi como mãe da Mônica e, principalmente, de Fafá Rennó, como a mãe do Cebolinha. Elas se encaixaram como uma luva no ambiente idílico do filme, exalando uma fofura incontrolável.
Dessa forma, “Turma da Mônica, Laços” já te conquista antes de pisar na sala de cinema. E, lá dentro, te envolve na afetividade que o Universo de Maurício de Sousa sempre nos acolheu desde bem pequenos. Um filme obrigatório. Um filme imperdível. Um filme para ver, ter e guardar.
E
temos o novo “Homem-Aranha”. “Longe de Casa” é o filme final da atual fase da
Marvel e recebeu a difícil tarefa de suceder o estrondoso sucesso de
“Vingadores, Ultimato”. Isso sem falar que o Aranha é um dos mais populares
super-heróis da Marvel e continua na tarefa de emplacar Tom Holland no papel
protagonista, depois de um bom primeiro filme solo. Será que houve êxito nisso
tudo? Para podermos analisar todo esse panorama, vamos lançar mão dos spoilers
aqui.
Nesse
segundo filme, Peter Parker tem que conviver com a sombra de não ter mais Tony
Stark por perto. A morte do Homem de Ferro ainda é recente e muito sentida. As
pessoas que viraram cinzas por causa do Thanos retornaram depois de cinco anos
ainda com a idade de cinco anos antes, o que é o caso de Parker. Vemos aqui
nosso adolescente protagonista às turras com sua timidez para conquistar uma MJ
(interpretada por Zendaya), numa versão, digamos, mais descolada e determinada.
Parker buscará mostrar a MJ seu amor por ela numa viagem que a sua turma de
escola fará para a Europa. Mas, em Veneza, uma criatura monstruosa de água
aparece, sendo repelida por um misterioso herói, devidamente batizado pela
turma de Parker de “Mistério” (interpretado pelo versátil Jake Gyllenhaal). Logo,
Parker descobrirá que Mistério está trabalhando com Nick Fury para lutar contra
essas monstruosas aberrações. E ajuda o novo herói nessa contenda, tornando-se
um amigo próximo. Os monstros são destruídos e Parker, que havia recebido um
par de óculos de Stark, que controla um exército de drones escondidos dentro de
um satélite em órbita, acredita que, por ser adolescente e ainda não estar numa
fase madura, não é um herói à altura nem a pessoa mais indicada para possuir
aquele par de óculos, carinhosamente chamado de Edith por Stark. Parker, então,
dá Edith de mãos beijadas a Mistério, que irá se revelar um tremendo 171 que busca
ser um herói de mentirinha usando hologramas. Na verdade, Mistério é um antigo
funcionário de Stark que se sentiu injustiçado por ele e, junto com outros
ex-funcionários, leva a cabo esse plano do falso herói que simula tragédias
para aparecer como o salvador do dia. O problema é que gente tem que morrer de
verdade para tais simulações se tornarem mais realistas. Entretanto, Parker conseguirá
descobrir o plano de Mistério e terá que desfazer a burrada que fez.
Pode-se
dizer que é uma película em duas camadas. A primeira, uma história de herói,
onde o Homem-Aranha tem um falso amigo, é enganado por ele e precisa deter seus
planos inescrupulosos. O segundo filme é uma historinha adolescente, bem ao
espírito “Malhação”, onde nosso protagonista quer se declarar para a menina
pela qual está apaixonado. É até compreensível esse segundo plot, já que nosso
protagonista é adolescente mas, obviamente, isso enfraqueceu a história e a
deixou um pouco mais bobinha. De qualquer forma, a adolescência de Parker foi
bem explorada na película, pois apareceu toda a insegurança do personagem em
arcar com as grandes responsabilidades de seu poder. E Parker acabou fazendo
besteiras. Impossível a gente não olhar para nosso próprio passado adolescente
e não se identificar. Sei que pode ser dito que essa adolescência de Parker
está indo longe demais, até porque esse já é o terceiro filme em que o aracnídeo
interpretado por Holland aparece. Entretanto, ainda assim ele é um menino de
quinze anos e, como as más línguas da internet dizem que o homem só se torna
verdadeiramente adulto aos 54 anos, acho que ainda cabe um dilema adolescente
nesse filme, o que ajuda a construir o personagem para a próxima fase da
Marvel. A burrada que ele fez ao dar o par de óculos para Mistério e a dúvida
se ele quer seguir uma vidinha normal, sendo apenas o herói da vizinhança ou um
verdadeiro Avenger (como ele já o é), vai dando experiência ao jovem Parker em
processo de crescimento. O relacionamento tenso com Fury é outro fator de amadurecimento,
pois o personagem de Samuel L. Jackson o trata de forma bem ríspida, buscando
acelerar, por bem ou por mal, seu senso de responsabilidade e de segurança.
Mas
o filme não fica somente nisso. Tivemos um bom vilão nessa película. Jake
Gyllenhaal mostrou o seu talento de sempre e fez um excelente Mistério, um
personagem dúbio, que rendeu excelentes cenas. Seus melhores momentos, sem
dúvida, foram as conversas que teve com Parker, agindo como se fosse um
verdadeiro amigo de longa data, rapidamente conquistando o menino. Mas, também,
quando ele se revela um vilão com ressentimentos para com Stark (parafraseando
Chris Rock, todo mundo odeia o Stark, também pudera, ele foi um capitalista bem
FDP por muito tempo), a forma como ele apresenta isso e sua equipe foi,
digamos, bem apoteótica. E deu gosto de ver Gyllenhaal nessa hora. Ele parecia
se divertir bastante enquanto atuava.
Sempre
gostei muito de John Favreau e de Happy, seu personagem. E adorei vê-lo
interagindo com Parker. Ele meio que foi a presença mais sólida de Stark na
película. E, ainda mais com o carisma de Happy, que subiu mais uns dois mil
metros no meu conceito porque ele pegou a Tia May, mais bela e sensual do que
nunca. Taí uma mudança no Universo de Homem-Aranha que deu certo. Essa nova Tia
May é tudo de bom, não somente por a tia de Parker ser muito estonteante, mas
também muito simpática e amável do ponto de vista maternal e ainda ter uma leve
e doce pitada de alívio cômico. Foi muito engraçado ver Parker sabatinando o
casal como se fosse um ancião tradicionalista, enquanto os dois o olhavam de
forma assustada como dois adolescentes. Se a gente já elogiou Gyllenhaal e Favreau
aqui, a gente também não pode se esquecer de Marisa Tomei, que voltou com força
total e em grande estilo.
No
mais, esse é um filme que fala de hologramas e tecnologia. Por isso mesmo, os
efeitos especiais não puderam ser qualquer coisa e a película ficou visualmente
muito boa de se ver nas cenas de ação regadas a CGIs. Sei não, mas talvez os
efeitos especiais e a computação gráfica tenham dado mais um pulinho para cima
aqui, com relação aos demais filme e a gente talvez esteja testemunhando uma
nova fase em efeitos especiais.
E
os pós-créditos? Foi hilário e um verdadeiro presente ver J. J. Jameson novamente
na pele de J. K. Simmons, usando agora a grande mídia para incriminar o
Homem-Aranha (voltando ao Universo tradicional dos quadrinhos) e ainda revelando
sua identidade secreta para todo o planeta. O que poderia ser uma coisa tensa
foi feita de uma forma verdadeiramente cômica e engraçada. E a segunda cena
(sempre depois de passados todos os créditos, com reza a tradição de cenas
pós-créditos da Marvel) trouxe um dado muito interessante. Na verdade, Fury era
um Skrull, que contactou o verdadeiro Fury que estava numa nave Skrull no espaço.
Aí, a gente já vê uma presença do Universo da Capitã Marvel batendo ás portas
da próxima fase da Marvel. E, diga-se de passagem, gostei muito, pois, ao
contrário de algumas críticas por aí, adorei o filme dela e gosto muito de Brie
Larson.
Dessa forma, se “Homem-Aranha, Longe de Casa” não foi tão bom quanto o primeiro filme de Tom Holland, ainda assim é um bom filme, pois conta uma boa história de herói e vilão, apesar de seus momentos “Malhação”. É um filme de boas atuações (leia-se Gyllenhal, Favreau e Tomei). E um filme que dá mais passos na construção desse novo Peter Parker. Estou animado para ver mais. Até porque sou fã incondicional do cabeça de teia. Vale a pena dar uma conferida.
Um bom filme em co-produção Bélgica/Itália. “Nico, 1988”, dirigido por Susanna Nicchiarelli, conta a trajetória da cantora homônima que fez parte do grupo Velvet Underground e depois seguiu carreira solo. É um filme baseado em fatos reais mas que teve, como é dito ao próprio fim da película, umas dramatizações. Mas isso não piorou as coisas. Mesmo com alguns elementos fantasiosos, deu para se ter uma ideia de como o temperamento da vocalista Nico (interpretada soberbamente por Trine Dyrholm) podia ser muito forte. Vimos aqui uma mulher de composições altamente melancólicas e contundentes.
Sua interpretação altamente visceral em alguns momentos, e muito letárgica em outros, lembra todo o soturno de algo dark, sombrio, o que parecia ser uma marca registrada da cantora. O vício em heroína era outro problema marcante, onde a artista sempre se picava nas canelas, e ela podia ser muito explosiva em crises de abstinência ou quando sua banda tocava do jeito que ela não queria. Um detalhe curioso é que ela sempre tinha um gravador (na época algo um tanto gigantesco) às mãos para gravar sons curiosos que encontrava.
Ainda, ela tinha más lembranças do passado, pois teve um filho e não tinha condições (assim como o pai) de cuidar do menino, provavelmente pelo seu contato com as drogas, obrigando o garoto a viver em orfanatos e, mais tarde, em centros de reabilitação em virtude de suas tentativas de suicídio. Definitivamente, não era uma vida fácil, o que fazia nossa protagonista ser ainda mais rude e dura, tal como se fosse uma espécie de autodefesa.
O filme, então busca traçar uma trajetória dessa artista em turnê pela Europa, no que seria a tentativa de fazer sua carreira decolar. Entretanto, seu temperamento difícil (ela parecia uma Ângela Rô Rô, só que muito mal humorada) atrapalhava um pouco as coisas, e as próprias pessoas de sua trupe tinham um relacionamento difícil com ela. De qualquer forma, Nico (ou Christa, seu nome original) era uma personagem muito magnética em virtude dela ser única, não ter medo de dizer o que pensa e que, por ser alemã, e ter sobrevivido ao bombardeio de Berlim na Segunda Guerra Mundial, torna-a toda especial.
Assim, “Nico, 1988” é um daqueles filmes que é um programa imperdível para quem gosta de rock e dessa parte, digamos, mais soturna e dark, como pudemos atestar no ritmo um tanto pesado e arrastado e nas letras das músicas, que foram sabiamente traduzidas nas legendas (volta e meia sabemos que isso não acontece, o que é estarrecedor na minha opinião). Só é de se lamentar que o filme tenha sido exibido no Estação Botafogo 2, um cinema que tem um som simplesmente horrível (pior lugar para se passar um filme baseado na vida de uma cantora) e em poucos horários, o que faz a gente quase desistir de assistir à película. De qualquer forma, vale a pena a experiência e vale procurar esse filme depois para assistir, embora tenhamos uma história um tanto triste aqui.
Ainda falando dos filmes da Mostra “Imagens Para O Futuro, O Cinema Da Alemanha Oriental”, realizada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, vamos hoje analisar o interessante “O Coelho Sou eu”, de Kurt Maetzig, realizado em 1965 e de 110 minutos. Esse filme é daqueles que podemos dizer que é bem corajoso, pois enfrentou de frente o autoritarismo do governo da Alemanha Oriental, sendo até banido por isso. Cabe dizer aqui, a título de curiosidade, que todos os filmes banidos pelo governo da Alemanha Oriental em 1965 ficaram conhecidos como “filmes de coelho” por causa de “O Coelho Sou Eu”, que se tornou o ícone dos filmes censurados daquele ano. Mas, por que o governo da Alemanha Oriental classificou esse filme como anti-socialista, pessimista e de ataque revisionista para com o Estado? Para isso, precisaremos de uma sinopse com alguns spoilers.
O filme foca a vida de Maria Morzcek (interpretada pela deslumbrante Angelika Waller) uma jovem de 19 anos que teve o seu irmão Dieter (interpretado por Wolfgang Winkler) condenado a três anos de prisão por comportamentos subversivos. Maria tem o sonho de se aprofundar no estudo do idioma russo para ser intérprete e cursar a faculdade. Mas a prisão do irmão faz com que ela seja segregada na sua escola pela direção e a moça não consegue ingressar na faculdade, restando-lhe trabalhar como garçonete. Ela vai se envolver com um juiz mais velho que ela, Paul Deister (interpretado por Alfred Müller) que mais tarde ela vai descobrir que foi o juiz que deu a sentença de três anos de prisão para seu irmão. Num primeiro momento, isso não afetará o relacionamento dos dois. Maria viverá na casa de campo de Deister para se curar de uma doença e os dois passam os fins de semana juntos lá. Só para não deixar de dizer, Deister é casado. Mas, com o tempo, as coisas vão se complicando. Maria ganha a vida como tradutora de alguns processos em russo para Deister e como garçonete na pequena cidade onde fica a casa de campo de Deister. Um caso de subversão semelhante ao do irmão de Maria aparece na cidadezinha e Deister pressiona o prefeito para julgá-lo. Mas a população local e o próprio prefeito acham que ele não é passível de uma punição mais severa. Isso irrita Maria, que acha que se usaram dois pesos e duas medidas e o relacionamento dela com Deister começa a entrar em conflito. Maria pressiona Deister a rever o caso de seu irmão. Um belo dia, a esposa de Deister, Gabriele (interpretada por Irma Münch) visita Maria e diz que ele tentou cometer suicídio mas não teve êxito. Ele estava deprimido com todas as pressões que vinha sofrendo do caso do irmão de Maria, não somente dela, mas também de seus conhecidos e do próprio sistema judicial. Gabriele pede que Maria pare de pressioná-lo. Mas Deister volta e diz que agora vê as coisas por um outro ângulo e fará de tudo para que Dieter saia da cadeia. Maria viu nisso mais uma preocupação de Deister com a sua própria carreira do que um gesto de altruísmo e encerrou de vez o relacionamento com Deister. De qualquer forma, Dieter saiu da prisão antes do fim da sentença e, quando soube que Maria teve um caso com o juiz que o prendeu, ele a esbofeteou várias vezes. Maria decide recomeçar sua vida, longe dos homens e correndo atrás de suas aspirações, que é estudar russo, entrar para a Faculdade e continuar a se manter como garçonete, sem precisar morar de favor na casa da tia.
A primeira coisa que chama a atenção no filme é o alto tom crítico contra o autoritarismo do governo da Alemanha Oriental, feito totalmente sem medo, dentro daquele espírito alemão de sutileza de um rinoceronte entrando a toda numa loja de cristais. Em nenhum momento, houve um receio de se questionar os rigores da ditadura e é notável que esse filme tenha chegado até nós. A sequência onde Maria visita Dieter na prisão e conversam sob os olhos de um guarda que, além de tirar-lhes completamente a privacidade, ainda se mete de forma ríspida na conversa, é altamente contundente. Tal filme vai muito na contramão de outros filmes da mostra, considerados simplórios demais, tendendo mais para uma leve comédia que nada questiona.
Como se já não bastasse essa grande virtude questionadora do filme, temos também outra característica que salta aos olhos: temos uma protagonista mulher, altamente atuante, com objetivos definidos de vida e que enfrenta o autoritarismo do sistema, além de tentar se impor perante os homens que a cercam. Quando atentamos para esses detalhes, não podemos nos esquecer de que se trata de um filme de 1965, onde a mulher era vista de uma forma bem mais machista que a de hoje, e ainda estamos vendo esse filme sendo produzido num país socialista, onde, teoricamente, a mulher teria uma condição de menor desigualdade perante o homem.
O filme é bem taxativo: enquanto Maria se envolve com os homens, ela sempre quebra a cara e se afasta dos objetivos que traçou para a sua vida. Ao lutar pela liberdade do irmão, ao se envolver com o juiz, a moça se mete em querelas que a transformam num mero joguete das circunstâncias, embora ela sempre tente ter a sua voz atuante e impor a sua vontade. Entretanto, a mensagem ao fim da película é clara: melhor só do que mal acompanhada e ela deve juntar os cacos das decepções passadas, levantar a poeira e dar a volta por cima, sozinha, buscando sua emancipação. Um notável caso de empoderamento feminino, em plenos anos 60, quando essa coisa não era muito vista (se é que era vista) no cinema capitalista do Ocidente, que ainda colocava a mulher muito submissa perante o homem.
Assim, se a Mostra “Imagens Para O Futuro, O Cinema Da Alemanha Oriental” parece ter alguns filmes um tanto enfadonhos, “O Coelho Sou Eu” vai inteiramente na contramão e prova ser uma excelente película, primeiro por desafiar o governo da época e segundo por mostrar o filme do ponto de vista da mulher e da luta por um lugar ao Sol numa sociedade notadamente machista. Era engraçado como, ao fim da película, Maria partia decidida para um novo rumo em sua vida e, enquanto andava pelas ruas, era sistematicamente cantada por todos os homens, dando-lhes um gelo maior que o iceberg que afundou o Titanic. Tais características fazem a gente dar uma atenção toda especial a esse filme e vale a pena ir atrás dele.
Já falamos aqui, em outras ocasiões, da Mostra Nouvelle Vague Soviética, que ocorreu na Caixa Cultural do Rio de Janeiro em fins de maio e início de junho do ano passado. Foi uma mostra muito boa, que reuniu grandes filmes soviéticos do pós-stalinismo, quando a cultura do país tinha mais autonomia para funcionar sem censuras, até a época de Brejnev, quando as proibições e restrições voltaram com força total. Doze filmes e uma palestra daquela mostra estão resenhados aqui na Batata Espacial. No mês de agosto de 2018, a Caixa Cultural do Rio de Janeiro fez outra mostra intitulada “Imagens Para O Futuro, O Cinema Da Alemanha Oriental”, onde foram exibidos vinte e cinco filmes e tivemos três palestras. Infelizmente, não pude acompanhar mais de perto essa mostra, mas dos poucos filmes que vi, não tive uma impressão muito positiva. Confesso que achei a coisa muito monótona a maioria das vezes e não pretendo falar de todas as películas assistidas. Um dos filmes que merecem atenção aqui é o bom “Os Assassinos Estão Entre Nós”, de Wolfgang Staudte, produzido em 1946 (portanto, um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial) e que tem 91 minutos de duração. Vamos analisar o filme aqui com os spoilers de sempre.
E por que tal filme é digno de ser resenhado aqui? Porque é uma película que fala da situação do povo alemão no imediato pós-guerra, quando eram obrigados a viver em condições precárias em cidades que eram pouco mais do que um amontoado de escombros. Um médico de nome Hans Mertens (interpretado por Wilhelm Borchert) anda bêbado pelas ruas, bares e prostíbulos. Ele pega um apartamento abandonado para viver e é mal falado pelos vizinhos. Até que, um dia, uma bela mulher bate à sua porta. É Susanne Wallner (interpretada por Hildegard Knef), que alega ser a dona do apartamento. Recebida de forma grosseira pelo médico, Susanne no entanto aceita que o mesmo viva dentro do apartamento. E assim, os dois começam a estabelecer uma relação que paulatinamente se torna um romance. Mas o problema é que Mertens descobre que um antigo militar que era seu superior no exército nazista, Ferdinand Brueckner (interpretado por Arno Paulsen), vive em uma casa aconchegante, cheio de luxos. Ele, depois da guerra, se tornou um próspero empresário capitalista, ao passo que a grande maioria da população vivia na miséria e fome totais. Brueckner havia ordenado a execução de muitos civis durante a guerra, inclusive mulheres e crianças, o que deixa Mertens com desejo de vingança. Assim, o antigo médico agora busca uma estratégia para executar seu antigo superior nazista.
O grande debate desse filme é se a vingança é algo justificável ou a reparação dos crimes de guerra deve ser feita na justiça. Ficamos seduzidos pela primeira alternativa, quando vemos toda a empáfia e arrogância de Brueckner, sem falar que ele era um nazista e um empresário capitalista inescrupuloso (ou seja, o cão chupando manga dentro dos parâmetros socialistas de uma produção cinematográfica da República Democrática Alemã). Mas o filme não cai em tal armadilha, pois a figura redentora de Suzanne impede que a vingança seja consumada e coloca Mertens nos trilhos, dando ao vilão a punição merecida, dentro do âmbito da lei e da justiça. Parece que tal desfecho era muito importante naquele contexto, pois as pessoas acabavam de sair de um conflito onde tudo, principalmente a vida, era desrespeitado. Seria importante a volta da vida civilizada dentro da lei voltar, depois de anos de sangue e de barbárie.
Outro detalhe que também chama muito a atenção no filme é a redenção do personagem Mertens. Um médico que tinha medo de sangue e que havia testemunhado um massacre, estava totalmente imerso na bebida, no trauma e na desesperança. A figura de Susanne chega na hora certa para salvá-lo. Assim, o médico salva a vida de uma garotinha fazendo uma traqueotomia e se esquecendo de seu medo de sangue, além de não cobrar nada por isso. E, pela figura de Susanne, ele abandona seu projeto sanguinário de vingança e opta pela justiça institucional. Uma verdadeira mudança da água para o vinho. Não é à toa que Wilhelm Borchert, o intérprete de Mertens, foi disparado o melhor ator do filme, dada todas as nuances de sua interpretação (o bêbado rude, o homem atormentado, o melancólico sem esperança, o sedento por vingança, e o racional que abandona a vingança). Já Hildegard Knef teve em suas mãos uma personagem demasiado plana, muito amorosa e de fala suave, não podendo demonstrar todo o seu talento, mas de uma beleza estonteante. Já Arno Paulsen teve o mesmo problema de mostrar um personagem plano, ficando só no terreno da empáfia e arrogância, mostrando mais talento nas cenas de desespero mais ao final do filme, quando é ameaçado pelo revólver de Mertens e depois atrás das grades jurando inocência.
Assim, “Os Assassinos Estão Entre Nós” pode até hoje em dia soar como um filme que nos impõe uma liçãozinha de moral ao final (“a vingança é a arma do otário”), mas ainda assim é um filme que muito nos faz refletir como era a vida das pessoas depois de uma guerra, onde tiveram ainda que viver muitos anos em condições precárias sob os escombros de um país destruído, sendo esse sim um dos grandes filmes dessa mostra aparentemente mediana (seria necessário ver mais filmes para se ter uma melhor impressão da produção da época). Deixo vocês agora com a introdução do filme…
Um suspense bem convencional. “Um Pequeno Favor” é uma história de mães de alunos que se envolvem numa trama aparentemente muito tortuosa mas de rápida explicação. Um filme que pode ser um tanto engraçadinho, mas também que pode enveredar por caminhos um tanto sinistros.
Vemos aqui a história de Stephanie (interpretada por Anna Kendrick), uma mãe solteira de arroubos um tanto infantis que tem uma vida solitária e tem um canal no Youtube onde ensina pequenas receitas e algumas prendas, digamos, domésticas. Ela é vista com um certo desdém até de forma meio ridicularizada por outros pais do colégio onde estuda o filho. Num belo dia, Stephanie conhece Emily (interpretada por Blake Lively), a mãe de um coleguinha de seu filho, que é o oposto a ela: Emily é descolada, fala e faz o que pensa e parece ter uma vida cheia de aventuras que ficam meio que encobertas pelo passado nebuloso da moça.
As duas se aproximam e tornam-se amigas. Será nesse contexto que Emily um dia irá ligar para Stephanie e pedir que ela busque seu filho, pois está enrolada no trabalho. Será a última vez que as duas amigas se falarão. Stephanie começa, então, a investigar o desaparecimento de Emily e teremos início a uma história de muito suspense com reviravoltas inusitadas em vários momentos da película.
Realmente é um filme de suspense que prende a atenção do espectador e a exige, pois a trama é relativamente elaborada, embora pareça encher mais linguiça em alguns momentos, já que a solução do desaparecimento de Emily é muito simples, não se precisando, por exemplo, pegar um táxi da Lapa até Botafogo, passando por Macapá. De qualquer forma, essa solução simples acaba sendo um alívio para o espectador que perdeu o fio da meada em algum momento, não precisando recuperá-lo para pegar a trama como um todo. De qualquer forma, para quem gosta, há muitos plot twists, sobretudo no momento do desfecho e solução do mistério.
O elenco não é composto de nomes muito conhecidos. Anna Kendrick fez par com Ben Affleck em “O Contador” e foi a Cinderela de “Caminhos da Floresta”. Foi a melhor atuação da película, pois sua personagem transitou da moça bobinha e desrespeitada por todos até a mulher que investiga o sumiço da amiga e desvela toda uma trama tortuosa, precisando ser bem durona em alguns momentos. Além disso, a atriz protagonista também consegue funcionar eventualmente como alívio cômico. já Blake Lively, conhecida pela série “Gossip Girl” e por ter participado de “Café Society”, de Woody Allen, fez mais uma personagem de uma característica só, sendo algo um tanto quanto plano, mesmo que sua personagem seja muito carismática. a atuação em conjunto dessas duas atrizes foi o que o filme produziu de melhor.
Assim, “Um Pequeno Favor” é um filme de suspense que prende a atenção do espectador e a exige, embora a trama seja, ao fim das contas, de fácil compreensão, não sendo necessários tantos rodeios. É um filme de atores um tanto medianos, ainda buscando seu espaço ao Sol, com destaque para a atriz Anna Kendrick, que pegou um papel um pouco mais complexo. A película não é de se encher os olhos, mas vale como entretenimento.