Uma
co-produção França/Bélgica. “Quem Você Pensa Que Sou” aborda o universo das
redes sociais e suas mentiras, aliada a questões mais ancestrais como o
adultério e a forte dependência emocional. Um filme para se assistir no divã.
Vamos lançar mão dos spoilers aqui.
O plot é o seguinte. Claire (interpretada por Juliette Binoche) é uma mulher de meia idade que tem um relacionamento com um homem mais novo. Numa certa altura da relação, ela desconfia que o companheiro a trai. Claire, então, vai criar um perfil falso nas redes sociais e começa uma amizade com um amigo de seu companheiro, Alex (interpretado por François Civil), com a intenção de espionar o que seu companheiro faz. Mas o detalhe é que Claire começa a se envolver com Alex, que está, na verdade, apaixonado pelo perfil falso que Claire construiu, que é uma moça muito mais nova do que ela. Logo, logo, a relação se aprofunda de uma forma que eles se encontrarão pessoalmente e o segredo terá que ser revelado. O detalhe é que, ao encobrir a sua idade, Claire mergulhará em outros problemas bem mais sérios.
Por que esse filme chama tanto a atenção? Porque ele se passa meio que no divã, onde sua terapeuta, a Dra. Catherine (interpretada soberbamente por Nicole Garcia) escuta a história de Claire, mantendo o distanciamento necessário para ajudar a sua paciente, que esconde alguns detalhes de sua vida para a terapeuta, revelando somente pouco a pouco. E aqui percebemos como a mentira e a omissão são subterfúgios ancestrais, embora geralmente atribuídos a internet, reificada como o espaço das mentiras. Mas a internet é, nada mais, nada menos do que uma ferramenta, e temos bons ou maus frutos de acordo com o uso que fazemos dela. Aqui, Claire acaba caindo na própria armadilha que construiu, ficando dependente da figura de Alex, com o mesmo acontecendo com ele. A dor da separação dos dois será inevitável, com a impressão de que ela é maior ainda, pois não houve nem a chance dos dois se conhecerem pessoalmente e a relação não sofreu nenhuma espécie de desgaste, acabando abruptamente, sendo mais traumática essa situação.
Não
fossem todos esses problemas, o companheiro de Claire ainda descobriu as
artimanhas dela e inventou uma história de que Alex havia se suicidado. Isso
mergulhou Claire num desespero ainda maior e ela somente pôde sanar isso
criando uma história entre ela e Alex onde ela morre atropelada no final.
Ainda, Claire revela a Dra. Catherine que a moça que ela criou para seu perfil
falso na verdade era uma moça que ela conhecia e que havia fugido com um antigo
marido dela. Assim, ela usa a imagem da moça como uma espécie de vingança, uma
espécie de rejuvenescimento, nem que seja no meio virtual. Mais divã impossível.
Mesmo
que Claire se considere “velha” e tenha criado o perfil falso para se aparentar
mais jovem, a coisa soou um tanto falsa, já que a mocinha usada no filme como o
perfil falso acabou totalmente ofuscada por Binoche, que esteve muito
deslumbrante nesse filme, algo realmente acima da média que estamos acostumados
a ver. A dobradinha que ela faz com Nicole Garcia na relação paciente/terapeuta
foi um deleite para os olhos e valeu o ingresso. As duas estavam muito belas e
elegantes, além do show de interpretação.
Dessa
forma, “Quem Você Pensa Que Sou” é um grande filme com uma história cativante e
grandes atrizes fazendo um ótimo trabalho. Um filme que aborda uma temática
muito atual como a internet, mas que, ao mesmo tempo, desmitifica a rede
mundial de computadores como inventora de fakes, mostrando que a criação de mentiras
e dissimulações é mais antiga do que a gente imagina. Vale a pena dar uma
conferida.
Um
bom filme histórico brasileiro. “Legalidade”, de Zeca Brito, evoca os tempos de
turbulência da renúncia de Jânio Quadros e a resistência dos militares contra a
posse do vice-presidente João Goulart, conhecido como Jango. Seu cunhado,
Leonel Brizola, à época governador do Rio Grande do Sul, defende o cumprimento
da constituição e encabeça a chamada Campanha da Legalidade, onde busca
garantir a posse de Jango. Houve forte resistência por parte dos militares e
até ameaças de bombardeio do Palácio Piratini, do Governo do Rio Grande do Sul.
Mas Brizola (interpretado soberbamente pelo falecido ator Leonardo Machado) não
perdeu a coragem e manteve a campanha de pé, assegurando a posse de Jango. O
teor histórico do filme é ratificado por imagens de arquivo estrategicamente
ordenadas pela montagem. Mas o filme também nos fala de outros lances
interessantes como o encontro de Brizola com Che Guevara no Uruguai, algo cujo
registro, se existe, é mais raro de se encontrar por aí.
O filme também tem um relacionamento amoroso, eivado de romantismo revolucionário, entre o antropólogo Luís Carlos (interpretado por Fernando Alves Pinto) e Cecília (interpretada por Cleo Pires, que agora só aparece nos créditos como Cleo), uma jornalista do The Washington Post. Há, ainda, um arremedo de triângulo amoroso onde entra o irmão de Luís, o repórter Tonho (interpretado por José Henrique Ligabue), mas o conflito é pouquíssimo trabalhado. O que é mais visto nesse filme é mesmo a relação entre Luís e Cecília, onde o antropólogo esquerdista que trabalha com índios se envolve com a correspondente que trabalha a serviço dos americanos. Cecília acaba mudando de lado e vai heroicamente com Luís para a guerrilha, desaparecendo da História junto com ele. Quem segue os passos de Cecília é, no ano de 2004, sua filha, Blanca (interpretada por Letícia Sabatella) que, ao final do filme (alerta de spoiler) se encontra com Brizola em sua fazenda no Uruguai para conversar sobre a mãe. Confesso que achei essa parte do filme um pouco entediante, sendo ficcional.
O que realmente é hipnotizante é toda a história em torno de Brizola e da resistência montada por este, a ponto de montar uma pequena estação de rádio nos porões do Palácio para transmitir a campanha e armar quem trabalhava na sede do governo. Nisso, o filme vale o ingresso, e muito. Me lembrei dos tempos em que o caudilho era governador do Rio de Janeiro e da forma corajosa (e, principalmente, muito engraçada) com a qual ele era implacável com seus adversários políticos. É uma figura que faz muita falta hoje, nesses tempos tão sombrios. Pelo menos esse filme, pouquíssimo divulgado por sinal, traz de volta a memória e a combatividade dessa figura pública que, se tinha seus defeitos (gostava de concentrar muito poder em torno de si), era também eivado de muitas virtudes (pensava com sinceridade nos menos favorecidos, até por sua origem humilde, e foi uma das pessoas mais corajosas que vi), combatividade essa extremamente necessária nos dias de hoje e que, com o exemplo de Brizola, mostra ser perfeitamente possível.
Dessa
forma, “Legalidade” é um programa imperdível e obrigatório, não somente por sua
importância como documento histórico inspirador, mas também por sua
cinematografia muito bem cuidada, com bons atores (como eu lamentei saber do
falecimento de Leonardo Machado!) e suas imagens de arquivo, muito bem montadas
na narrativa. Assistir a esse filme chega a ser uma missão cívica.
Um impressionante documentário brasileiro. “Tsé”, dirigido por Fábio Kow, narra a trajetória da sua avó, a judia polonesa Tsecha Szpigel, que teve a sua família assassinada por nazistas em campos de concentração, e só não morreu, pois sua mãe a atirou do vagão do trem justamente quando as duas iam para um campo. Ainda bem pequena, a menina teve que vagar por uma Europa em guerra e escondida dos nazistas. Com a guerra terminada, ela não quer mais saber da Europa e migra para o Brasil em 1949 com o seu namorado, estabelecendo raízes e toda uma família por aqui. Vamos lançar mão de alguns spoilers para compreender melhor o documentário.
E é justamente essa família, juntamente com Tsé (o carinhoso apelido de Tsecha) a grande protagonista do filme. Vemos aqui toda uma série de depoimentos de muitos e muitos parentes, indo dos filhos, passando pelos netos e chegando até os bisnetos, tudo muito bem amarrado por Fábio Kow, que tem uma extensa memória visual de câmara VHS que ele começou a coletar quando ainda era criança, trazendo à vida muitos parentes e personagens (por que não históricos?) para os olhos do espectador em sala, num ritual que mais pareceu uma espécie de materialização de pessoas já falecidas e outras não.
O filme acaba sendo um curioso documento, não somente da história de Tsé, que é muito sofrida, mas também muito rica, assim como um documento da própria família e de como os seus entes se relacionam. Um exemplo disso é que, pouco antes de falecer, alguns parentes estavam em litígio e isso parece ter afetado muito a Tsé, que morreria logo em seguida, o que levou a uma reconciliação. A anciã e matriarca da família teria dito antes de morrer algo do tipo: “todos brigam, todos são idiotas”, numa alusão a sua própria família, mas talvez também a toda a humanidade, já que ela havia sofrido demais desolada e sozinha durante a guerra, em plena infância. Assim, apesar dos depoimentos dos familiares passarem a impressão de que tudo ia bem naquela família, as entrelinhas espelhavam conflitos, que são normais em toda e qualquer família, mas que, obviamente, não foram destrinchados, já que o documentário tinha o objetivo de traçar a trajetória de Tsé e homenageá-la.
Dessa
forma, “Tsé” vale a pena ser visto, pois podemos testemunhar a trajetória de
uma sobrevivente do holocausto ainda viva, uma história contada pela própria,
e, ainda por cima, podemos ver também um documentário sobre a família que essa
sobrevivente construiu por aqui. Vale pela curiosidade e pelo testemunho
extremamente rico de Tsé.
Uma co-produção França/Bélgica um tanto engraçada, um tanto lúdica. “Branca Como Neve” brinca com o conto de fadas tradicional, dando-lhe uma roupagem moderna e substituindo os sete anões por sete “príncipes”. Além disso, conta com a presença da diva Isabelle Huppert, no papel de madrasta. Para podermos falar do filme, vamos lançar mão de spoilers aqui.
Nesse conto de fadas moderno, Claire (interpretada pela belíssima Lou de Laâge) faz as vezes de Branca de Neve. Ela trabalha no hotel do falecido pai sob os cuidados da madrasta Maud (interpretada por Huppert). Tudo vai bem com as duas até o momento em que Maud descobre que seu namorado está perdidamente apaixonado por Claire. Assim, Maud ordena o sequestro e assassinato de Claire. A moça é enfiada no porta malas de um carro e enviada a um local muito ermo, mas a sequestradora bate com o carro e Claire foge, sendo rendida pela sequestradora novamente. Quando Claire vai ser assassinada, ela é salva por um homem, que mata a algoz, e Claire é levada para a casa dele. Esse será o primeiro dos sete “príncipes” que irão entrar na vida de Claire, que vai manter relações com todos eles, algumas sexuais, outras não, mas todas muito intensas. Ou seja, a moça, que somente sonhava e não vivia, vai passar por uma espécie de liberação e começará a viver, em suas próprias palavras, não sendo de ninguém. O detalhe é que esses sete príncipes têm personalidades e características muito diferentes, e Claire vai ter muito jogo de cintura para interagir com tamanha diversidade masculina. Entretanto, Maud descobre que a enteada está ainda viva, morando no interior, e vai até lá para acabar com a moça, com direito até a maçã envenenada.
O
filme desperta sentimentos variados. A ampla fauna masculina que vemos na
película tem uma variedade psicológica intrigante e, até certo ponto, muito
perturbadora. Temos um gago, um hipocondríaco, um masoquista, um psicopata
leve, um padre, um angustiado e um garotão. Dá para perceber como Claire teve
uma ampla gama de experiências na sua iniciação a vida. O filme também tem uma
forte dose de humor, podendo ser negro ou não, seja nos esquilos que observam
as aventuras sexuais de Claire dentro de um carro, seja no esquilo que morre
envenenado ao comer a famigerada maçã.
As atrizes foram muito bem. Lou de Laâge conseguiu tocar muito bem a sua personagem não só lançando mão de sua beleza angelical, mas também com muito talento, dando um teor de sedução enorme e irresistível à sua personagem, fazendo os homens de gato e sapato a seu belprazer. Já Isabelle Huppert mais uma vez destilou toda a sua elegância e talento, fazendo uma madrasta tomada por ciúmes da enteada,já que seu namorado se apaixona por ela. Ela consegue ser uma grande vilã, mas a sequência em que ela entorpece Claire é altamente sedutora, pois as duas dançam juntas numa espécie de transe eivado de toda uma enorme sensualidade entre dois corpos femininos que se relacionam ao som de uma tórrida música. Foi esteticamente muito bonito.
Assim, “Branca Como Neve” foi uma releitura ousada do conto de fadas com direito a muita sensualidade e humor, tudo isso amparado pela interpretação magistral de duas atrizes e uma fauna de personagens masculinos variados, usados como uma espécie de joguete por uma protagonista que se abre para a curtição da vida. Vale pela experiência.