E temos o filme brasileiro escolhido para concorrer aos finalistas de Melhor Oscar Estrangeiro para o próximo ano. “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, fala da condição feminina numa sociedade machista e tradicional de meados da década de 50. Um filme de duas irmãs à frente de seu tempo, cada uma a seu modo, que precisam enfrentar todas as pressões de um mundo dominado pelos homens. Para podermos falar sobre o filme, precisamos lançar mão de spoilers.
As irmãs em questão são Eurídice (interpretada por Carol Duarte) e Guida (interpretada por Julia Stockler). A primeira é mais recatada e tem o objetivo de ser uma pianista de carreira internacional. Já Guida é mais impulsiva e namora um marinheiro grego. As irmãs são carne e unha, mas um evento vai separá-las pelo resto da vida: Guida sai escondida de casa para se encontrar com seu namorado e decide fugir com ele para a Europa para se casar. Enquanto isso, Eurídice acaba aceitando um casamento praticamente arranjado, tendo uma vida sexual que é um verdadeiro pesadelo. Um belo dia, Guida volta ao Brasil sem seu marinheiro grego, mas grávida de um filho dele. Ao chegar a casa de seus pais, é expulso pelo pai, um padeiro português de mentalidade altamente conservadora, não sem antes escutar dos pais que Guida está na Europa, com uma promissora carreira de pianista. A partir daí, vemos as vidas paralelas dessas irmãs que nunca se encontram, onde a única coisa em comum entre as duas é o fato delas assumirem uma postura altamente transgressora frente ao tradicionalismo de uma sociedade brasileira da década de 50.
É um filme tocante, pois dá um dó desgraçado ver as duas jovens irmãs, cheias de sonhos e esperanças no futuro, serem massacradas pela vida real e por toda uma sociedade que coloca a mulher numa posição totalmente subalterna perante o homem. Eurídice lutava contra isso ferozmente agarrando-se às suas aulas de piano e na prova para entrar no conservatório, enquanto que Guida lutava pela sobrevivência, criando uma nova família cheia de crianças na condição de mãe solteira, numa época em que nem havia divórcio. O mais curioso é que, mesmo que as irmãs não se encontrassem, as duas escreveram cartas uma para a outra que nunca chegavam, sendo que somente Eurídice recebeu as cartas de Guida já em idade altamente avançada, onde Eurídice é interpretada por Fernanda Montenegro em rápida e curta aparição. Apesar da grande dama estar em cena ao final do filme, essa sem dúvida é uma película de Carol Duarte e Julia Stockler. Se Julia Stockler e sua Guida parecem, num primeiro momento, mais carismáticas, à medida que a vida conjugal de Eurídice se desvela, o carisma dela também se revela em toda a sua plenitude, sobretudo na explosão paroxista da personagem ao descobrir que o destino de sua irmã foi escondido pelo pai, tirando-lhe o direito de se encontrar com ela, a irmã que ama tanto. Ou seja, nem o direito de duas irmãs que são carne e unha se reencontrarem a sociedade machista e patriarcal assegurou, já que uma delas violou as convenções tradicionais e acabou sendo apagada da família por “vergonha”. Tal omissão será demais para Eurídice, onde sua vida irá desmoronar numa psicose maníaco depressiva. Seu sonho de viver de música no conservatório depois de ser aprovada em primeiro lugar no concurso irá por água abaixo quando, num acesso de fúria, Eurídice queima seu piano e suas próprias mãos (sim, o filme tem fortes toques de trágico em alguns momentos). Com essas duas irmãs marcadas por toda uma opressão e uma vida sofrida onde os sonhos caem como peças de dominó, fica bem evidente o trabalho difícil que essas jovens atrizes tiveram pela frente, conduzindo com muita maestria suas personagens.
Após a exibição da película (a assisti em pré-estreia no Odeon), o diretor Karim Aïnouz, Julia Stockler, Carol Duarte e Barbara Santos apareceram em carne e osso na sala e responderam perguntas do público, sempre ressaltando a reflexão do filme sobre como o Universo feminino é tratado por uma cultura machista não somente nos anos 50 do século XX como até hoje. Ou seja, há, ainda, muito conservadorismo e machismo por aí e temos que ficar de olho nesses tempos altamente sombrios.
Dessa forma, “A Vida Invisível” é um bom filme brasileiro que trata de questões muito contemporâneas, ainda que essa seja uma película de época. Um machismo e conservadorismo latente que é enfrentado por duas irmãs à frente de seu tempo, com cada uma delas fazendo essa empreitada à seu jeito. Vale a pena dar uma conferida.