O quarto episódio de “Jornada nas Estrelas Picard” intitulado “Franqueza Total”, repetiu mais ou menos o que vimos no episódio anterior: um plot mais fraco e outro mais razoável desenvolvidos simultaneamente, onde mais elementos são introduzidos paulatinamente. Para podermos falar desse episódio, vamos precisar lançar mão dos spoilers.
O episódio começa no planeta Vashti, no quadrante Beta, quatorze anos antes dos acontecimentos atuais da série, ou seja, mais um flashback. Picard, de chapéu Panamá e tudo, chega a um centro de transferência romulano, prometendo que a Federação fará o reassentamento. Picard é amigo de um grupo religioso de romulanas, o Qowat Milat, que cria um pequeno menino, Elnor, a quem Picard tem certa afeição filial. O clima entre Picard, as religiosas e Elnor é o melhor possível, o que nos traz um certo alívio, pois temos visto Picard ser esculachado por muitas pessoas ao longo dos episódios. Parece até uma série no estilo “Todo Mundo Odeia o Picard”. Mas não vemos isso no “mosteiro” romulano. Esse grupo religioso também é interessante no sentido de que vemos uma diversidade na cultura romulana, que sempre foi muito carregada de uma visão belicista, desconfiada e ardilosa. Se vimos a construção da cultura klingon mais trabalhada em TNG, parece que em “Picard” isso se dará com os romulanos. Mas Picard, que lê “Os Três Mosqueteiros” para Elnor e brinca de espada com ele, precisa retornar em virtude do ataque dos “sintéticos” a Marte.
Após a abertura, o episódio começa com uma conversa filosófica entre Jurati e Rios sobre a definição de espaço e sobre o livro que ele lê que fala do drama existencial ao termos consciência da finitude de nossa morte. Foi um momento meio arriscado, pois ele quase caiu naquelas falas meio loucas de Tilly em Discovery. Ainda bem que não chegou a tanto. O Chabon se segurou. Raffi, tresloucada como ela só, reclama que a nave desviou o curso e Rios explicou que Picard mandou desviar o curso para Vashti e a senhora bipolar reclama mais uma vez dizendo que Picard precisa de uma nave para lidar com o próprio remorso, mais uma vez esculhambando o protagonista. Picard, por sua vez está num programa de holograma de hospitalidade (um nome mais pomposo para o holodeck), conversando com um dos hologramas de Rios que reproduziu o vinhedo com bastante acurácia. A conversa calma é interrompida por Raffi, que reclama do desvio do curso (ao que Picard faz uma expressão impaciente) e Rios, que reclama dos hologramas de hospitalidade lançando mais um palavrão no fim do século 24. Aqui houve um fan service, pois quando bateram à porta do holograma de hospitalidade, Picard soltou o seu “Come!” característico, embora ele tenha falado um pouco mais alto que o esperado (na verdade, ele praticamente berrou).
Numa reunião com Jurati, Raffi e Rios, Picard explica o motivo de ir a Vashti. Ele quer entrar em contato novamente com o Qowat Milat, pois as religiosas ajudaram muito na evacuação dos romulanos e elas são guerreiras temidas pelo Tal Shiar. Ele precisa da ajuda delas nessa nova missão, e elas o ajudarão se acharem pertinente, pois elas são adeptas da chamada “Franqueza Total” onde se manifestam, sem rodeios, sobre o que pensam de uma determinada coisa. Raffi ainda tenta convencê-lo a ir para Freecloud, mas Picard diz que pode ser a última vez que ele vá a Vashti. Como Raffi estava num modo mais calmo dessa vez, ela se calou e simplesmente fechou os olhos, se compadecendo do amigo. Outra informação importante dada por Rios é que Vashti fica numa região controlada por grupos criminosos que outro grupo, os Rangers de Fenris, não conseguiram controlar.
Ao chegarem a Vashti, eles encontram um sistema de defesa praticamente impenetrável e não recebem autorização para descer, mesmo quando o nome de Picard foi citado. Logo depois, vemos Picard sendo teletransportado para a superfície do planeta, depois de Rios ter sugerido que “o uso do dinheiro é sempre apropriado”. Ou seja, molharam a mão da guarda da superfície do planeta para deixarem Picard entrar. Ou foi isso que ficou implícito. Todos na superfície do planeta ignoram Picard sistematicamente, menos as religiosas do Qowat Milat.
No cubo Borg, Soji vê antigas gravações de Ramdha falando de uma espécie de Dia da Destruição final para a cultura romulana, onde o destruidor, Seb-Cheneb levaria isso a cabo. Numa conversa entre Soji e Narek fica claro que os dois têm coisas a esconder um do outro, o que torna o clima tenso entre os dois. Narek acha que Soji mente com relação a alguns aspectos de seu passado e a chama de mentirosa, além de atiçá-la com o seu acesso a informações confidenciais do banco de dados borg que ela quer sobre a nave onde Ramdha estava quando foi assimilada. Foi um plotzinho um pouco enjoado esse, com direito a ficarem escorregando idilicamente pelos corredores do cubo borg.
De volta ao núcleo de Picard, Raffi e Rios descobrem que Picard foi reconhecido e uma ave de rapina romulana antiga de Kar Kantar, o criminoso local, está a caminho. Picard disse que precisa de mais tempo na superfície do planeta. Elnor está chateado com o tratamento frio de Picard e a religiosa pede que Picard veja Elnor com mais cuidado, pois ele precisa de um lugar para se fixar, pois o Qowat Milat é uma ordem feminina e a vida do moço pode estar em perigo se ele continuar sem eira nem beira. Ainda, Picard pede ajuda a religiosa dizendo que luta sozinho contra o Tal Shiar.
Picard explica a natureza de sua missão a Elnor e pede sua ajuda, já que ele é um excelente guerreiro e espadachim e Elnor fica revoltado, pois Picard só o procurou quando precisava dele. Elnor ainda chamou Picard de velho e lhe deu as costas. Ou seja, mais um na série a esculachar Picard. Pelo menos, já está começando a parecer que Picard, pelas suas entonações de voz, está perdendo a paciência com esse tipo de tratamento. Picard diz que vai voltar a nave e precisa esperar a abertura da defesa do planeta em sete minutos. Enquanto isso, ele anda pela vila e recebe novamente olhares hostis. Ele para em frente a uma birosca com placa “somente romulanos” e a arranca, além de entrar na birosca. Parece que ele se cansou de todas as esculhambações que sofreu na série até agora, pirou na batatinha e ficou disposto a arrumar confusão. Confesso que gostei disso, pois a postura dele contra os que os hostilizavam na série tem sido submissa demais para o meu gosto. Um homem, se dizendo ex-senador romulano, reclamou das promessas vazias de evacuação que Picard tinha oferecido e da sua desistência de resgatá-los, desafiando-o para um duelo de espadas. Picard joga a espada no chão e se recusa a fazer o duelo. Elnor aparece do nada e pede para o ex-senador escolher viver. O ex-senador parte para cima de Picard e Elnor o decapita. Mais um exagero aqui. Decapitações em Jornada nas Estrelas? Ah, sim, já vimos em “Discovery”. Mas isso ficou uma violência demasiado gratuita. Seria muito mais interessante Elnor render o ex-senador, colocar a espada em seu pescoço prestes a cortá-lo e Picard dar um berro, detendo a decapitação no último instante, mostrando a toda a vila romulana que Picard se importava com a vida dos romulanos ali. Ao invés disso, Elnor diz publicamente que está ao lado de Picard e quem tentar fazer alguma coisa com o almirante vai morrer. Picard tenta remendar o estrago se desculpando com a comunidade dizendo que falhou com eles no plano de resgate. Ou seja, o filme do Picard só ficou mais queimado ainda, quando era a chance dele se redimir com aquela comunidade. Um romulano ainda iria tentar alvejá-los com uma arma, mas eles se teletransportaram antes disso. Na nave, Picard finalmente age como um capitão e dá um baita de um esporro em Elnor, dizendo que ele não devia ter matado o senador e que, se Elnor quer ficar sob a liderança de Picard, só usará seus dotes guerreiros com ordem de Picard. Estava demorando que nosso capitão tomasse uma atitude mais enérgica nessa série. Até porque, pior do que vários personagens esculhambarem o Picard ao longo desses quatro episódios, é a gente sentir que os roteiristas faziam a mesma coisa, pois Picard tinha atitudes complacentes demais com as hostilidades que estava recebendo. Neste quarto episódio, finalmente Picard chuta o pau da barraca, apesar de ainda mostrar uma fraqueza aqui ou ali. O mais curioso é que Elnor só se alia a Picard em virtude de ser da tradição se aliar a causas perdidas, enfatizando o caráter suicida da missão.
No cubo borg, Rizzo provoca Narek, dizendo que Soji pode estar manipulando-o e Narek diz que tem que ir devagar com Soji, pois pode ativá-la como aconteceu com Dahj na Terra e ela pode ser destruída. Mas Soji, antes de ser destruída, precisa revelar a Narek onde estão os “outros”. Rizzo estrangula Narek e o relembra que Soji é a Seb- Cheneb, a destruidora. Soltando o pescoço de Narek, Rizzo dá mais uma semana de prazo para ele descobrir onde estão os outros. Caso contrário, a violência será usada para descobrir.
Voltando a Vashti, a ave de rapina chegou e estava atacando a nave de Rios, que acionou um holograma para ajudá-lo no combate e que falava espanhol. Foi show! Uma pequena nave aparece para ajudar Picard e eles conseguem imobilizar a ave de rapina romulana. A pequena nave está prestes a explodir e Picard dá a ordem de teletransportar o piloto para a ponte. E, eis que aparece Sete de Nove, ferida e prestes a desmaiar. Mas, claro, ela tem que dar antes um esporro no Picard, dizendo que este a deve uma nave. Fim do episódio.
Que podemos dizer de positivo nesse episódio? As religiosas guerreiras do Qowat Milat foram bem apresentadas, melhor que o infame Zhat Vash. Elas, pelo menos, não ficam dando esporro no Picard. Falando nisso, nosso almirante parece que finalmente perdeu a paciência com as hostilidades e está reagindo à altura, embora o pedido de desculpas na comunidade romulana pareça ter sido demasiadamente humilhante. Não que ele não devesse pedir desculpas, mas as coisas ficaram, dentro do contexto apresentado, exageradas e Picard pareceu muito submisso. A batalha final de naves deu alguma ação à coisa, sem se precisar de cenas de karatê e kung fu. E, claro, Sete de Nove está de volta, o melhor de tudo. Esperemos que não esculachem nossa borg mais amada. A conversa entre Rizzo (uma boa personagem vilã) e Narek ficou bem legal, até porque ela torceu um pouco o pescoço do chato do irmãozinho em tom bem ameaçador, lançando todo o seu ódio contra a “seb-cheneb” Soji, que tem também seus planos. Ainda, Narek levantou a questão de que existem outros sintéticos e Soji pode ser ativada como a irmã. Foram mais elementos novos no quebra-cabeça do filme.
E os problemas? O bate papo entre Soji e Narek ficou um tanto entorpecente e chato, com aqueles escorregões idílicos pelo corredor do cubo borg, antes de surgir uma primeira situação tensa entre Narek e Soji, o que, por sua vez, foi algo interessante. O problema é que, toda semana o episódio apresenta elementos novos, na base do conta-gotas, e assim a trama parece não engatar. Lembrando que já estamos chegando na metade da temporada. Ainda, as violentas hostilidades a Picard, até pela forma em que a história foi construída, incomodam um pouco. Elas poderiam ter sido mais relativizadas. Alguém naquela vila, além das religiosas e de Elnor poderia ter dado ouvidos a Picard no seu pedido de desculpas. O pior é que ele tem tido uma postura muito complacente com essas hostilidades. Pelo menos, parece que nesse episódio ele finalmente está reagindo a isso, como já foi dito acima.
Resta, agora, esperar o próximo episódio e ver como Sete de Nove entra em tudo isso. Lembrando que a produção do quarto, quinto e sexto episódios está a cargo de Alex Kurtzman, o que sempre é de se deixar os cabelos em pé.