O oitavo episódio de “Jornada nas Estrelas Picard” intitulado “Fragmentos” mais pareceu uma terapia de grupo. Depois dos dois bons fan services dos episódios anteriores, “Fragmentos” apresentou um obrigatório amarrar de pontas soltas, mas isso foi feito com doses exageradas de melancolia e clima altamente depressivo, pois juntou toda uma vibe um tanto tristonha e amargurada de três personagens numa única nave. Pelo menos, houve alguns contrapontos que puderam fazer o pesado episódio fluir com um pouco mais de suavidade. Para podermos entender o que aconteceu, spoilers serão necessários.
O episódio começa com um ritual meio místico, meio rúnico (bem ao espírito de Alex Kurtzman) há quatorze anos (isso, mais um flashback de início de episódio), num planeta cercado por oito sóis (algo impossível, pois a violenta energia gravitacional num lugar como esse inviabilizaria a existência de vida e do próprio planeta) de nome Aia, que teve uma civilização muito antiga. Essa civilização antiga teria deixado uma “advertência” que seria justamente o perigo de se criar formas de vida sintéticas que acabariam destruindo a todos (uma ressurreição do antigo mito de Frankenstein, que Asimov rechaçou com seus romances sobre Robôs na primeira metade do século XX). Quem comanda o ritual rúnico é a orelhuda comodoro Oh, que agora sabemos, é uma mestiça romulana/vulcana. O Zhat Vash teria nascido dos ancestrais romulanos que teriam sobrevivido a advertência. Aquele grupo liderado por Oh tem a incumbência de evitar uma leva de destruidores que podem acabar com tudo. No grupo, vemos Rizzo e Ramdha, que agora sabemos que é a tia de Rizzo. As mulheres do ritual devem ver a advertência e sairão fortalecidas se conseguirem sobreviver a terrível visão. A grande maioria delas morre, cometendo suicídio (explodindo a cabeça com phasers ou mesmo pedradas). Confesso que esse foi um momento demasiadamente desagradável para mim. Jornada nas Estrelas, nos longínquos tempos utópicos, era uma série otimista com relação ao futuro. Agora, como se não bastasse uma distopia instaurada, ainda temos que ver cenas altamente inquietantes de desespero e suicídio coletivo. É nessas horas que a gente sente que essa distopia em “Jornada nas Estrelas” pode estar indo longe demais. Notemos duas coisas nas cenas da advertência: além de toda uma destruição, vemos rapidamente Data de relance e um gato (seria Spot, o gato de Data?). Bom, de toda essa loucura inicial do episódio, somente Rizzo escapou incólume à visão. Sua tia Ramdha também escapou mas, como já sabemos, ficou meio lelé. Oh e Rizzo conversam e a comodoro diz que vão começar a deter os sintéticos em Marte, ficando claro que o ataque dos sintéticos no planeta vermelho foi coisa do Zhat Vash.
A história corta para o tempo presente da série e vemos Rizzo conversando com sua tia Ramdha inconsciente, dizendo que ela descobriu o ninho de sintéticos. Depois, ela fala com seus subordinados perguntando sobre a localização de Elnor. O romulano élfico foi encontrado e será perseguido. Começam as cenas de caratê que só são interrompidas quando Sete de Nove aparece subitamente passando fogo em todos os romulanos que atacam Elnor. Ela pergunta por Hugh e o que está acontecendo no cubo, com a resposta de Elnor sendo um forte abraço em Annika. Só para deixar esse texto datado, não há prevenção a coronavírus que resista a um abraço tão desejado desses. Começa a abertura.
Após a abertura, vemos um Rios embasbacado olhando para Soji, sendo acordado aos berros por Picard, que pede que ele consiga um canal para a Frota e trace um curso para a Base Estelar 12. Rios diz que vai fazer isso e que depois vai cair fora, fazendo uma birrazinha. Raffi implica com Soji em virtude do ocorrido com Jurati e chega a apontar uma arma para a moça. Mais uma instabilidade dessa personagem que num momento melhora, noutro piora. Picard não acredita muito nas desconfianças de Raffi para com Soji, mais uma vez fazendo o papel de velhinho enganado (parece que o Picard das antigas não voltou de todo, mesmo com o puxão de orelha de Troi no episódio anterior). Ele somente escuta Raffi quando esta diz que ela e a unidade médica de emergência de Rios acreditam que Jurati matou Maddox. Mas, mesmo assim Picard custa a acreditar nos dois, o que é um pouco irritante. Raffi acaba dando uma argumentação convincente sobre Jurati e sobre não confiar cegamente em Soji e a única reação de Picard é ficar com cara de pastel. Para piorar, Picard entra em contato com a comandante em chefe boca suja da Frota Estelar pedindo um esquadrão. A comandante em chefe concorda mas não sem dizer um “cala essa porra dessa boca” para o almirante. Mais esculhambações para cima do protagonista da série com direito a muita baixaria. Pelo menos, Picard disse que se ela não o ajudasse ela seria uma inutilidade. Mas confesso que nunca mais queria ver essa personagem na minha frente e essa infeliz foi usada mais uma vez na série. O mais deprimente é ver Picard batendo a palma da mão na outra como se dissesse “consegui!” depois da queda de braço da comandante em chefe. Isso não seria uma atitude de um Picard de TNG. Parece que ele está numa posição muito inferiorizada. Será que o ostracismo da aposentadoria vai ser tão pesado no século XXIV como o é no século XX?
Raffi procura Rios para conversar sobre suas teorias sobre Jurati e Soji, mas este encontra-se confinado. Cabe a Raffi então conversar com todos os cinco hologramas de Rios, o que nos ajuda a ver todo o talento de Santiago Cabrera, que interpreta seis personagens e serviu como uma espécie de alívio cômico responsável (não como o carnavalizante de Star Dust City) nesse núcleo da La Sirena, que ficou muito melancólico e depressivo nesse episódio.
Voltando para o cubo, Rizzo descobre o comunicador dos Rangers de Fenris no chão e descobre que Sete de Nove está no cubo junto com Elnor. Os dois estão nos aposentos da rainha borg e Sete de Nove quer formar uma espécie de microcoletividade para acionar os borgs para lutar contra os romulanos. O problema é que se esses borgs e a própria Sete de Nove forem assimilados, pode ser que eles não queiram se desassimilar. Rizzo, ao perceber a regeneração do cubo, segue a sugestão de seu centurião de ordenar o lançamento dos borgs para o espaço.
Voltando a La Sirena, Picard e Soji comem e o almirante escuta a crise existencial de Soji com relação à dúvida de se suas memórias são delas mesmo ou são implantes de outras pessoas, ao melhor estilo Blade Runner. Picard retruca dizendo que ela tem um passado a recuperar. Soji acha que Picard se refere a Data e os dois começam a conversar sobre o robô de TNG, onde Picard vai se lembrar de todas as virtudes do amigo. Essa conversa pode ser vista como um mini fan service, pois ajudou também a aliviar o clima pesado da nave e ajdou a aproximar Soji de Picard. Ela, inclusive, disse ao almirante que Data o amava, para uma certa perplexidade de Picard.
Nas conversas de Raffi com os hologramas de Rios para se descobrir a total inquietação deste último, surgiu uma coisa que incomoda demais. A questão do sistema estelar óctuplo seria impossível e ele somente ocorreria se fosse construído artificialmente. E aqui caímos na questão da ficção científica demasiadamente fantasiosa que acaba se tornando boba e pueril. Por mais avançada que uma civilização seja, soa muito estranho ela ter a capacidade de unir oito sóis e um planeta somente para chamar a atenção para a advertência. É implausível demais, mesmo para os vôos mais pirados de ficção científica, o que torna a história boba de tão espetaculosa. Outro dispositivo bem mais simples poderia ser utilizado para se chamar a atenção para essa advertência. É claro que Jornada nas Estrelas já fez uns vôos meio loucos, mas este meio que ultrapassou todas as escalas. Coisa de rede micelial para baixo. Ainda, uma civilização tão desenvolvida a ponto de juntar oito estrelas e um planeta num sistema seria destruída por robôs? A coisa não encaixa muito. Bom, na conversa que Raffi tem com os cinco hologramas de Rios (um dos melhores momentos do episódio), ela descobre que Rios teve um problema pregresso com uma moça chamada Jana e o capitão de Rios nos tempos de Frota Estelar, Alonzo Vandermeer, que teria se suicidado. Mas somente Rios sabe o real motivo.
Picard conversa com Jurati quando esta acorda e fala que a moça deverá se entregar às autoridades na Base Estelar 12 pelo assassinato de Maddox. Ele não entende por que ela o matou e Jurati falou do encontro que ela teve com a comodoro Oh e de como sua mente foi envenenada pela comodoro, mas não consegue falar sobre isso em virtude de um bloqueio psíquico colocado nela. Jurati ainda diz que a única forma dela aliviar essa dor das visões terríveis que tem é pensando em suicídio todos os dias (mais uma pensando em suicídio, ratificando o clima pesado do episódio). O mais curioso é que, mesmo com o bloqueio imposto a mente de Jurati, ela conta toda a história para Picard: que as visões horríveis foram implantadas por uma civilização que viveu milhares de séculos atrás, que tudo foi culpa dos sintéticos e que eles devem ser detidos para que… aí Soji entra dizendo que é para que Seb-Cheneb, a destruidora (ou seja, ela mesmo, Soji) não triunfe. Jurati aproveita a oportunidade para conversar com Soji e fica maravilhada com suas características humanas (fome, sede, sono, sonho, choro, etc.), assim como as imperfeições no corpo de Soji (pintas, manchas, um dedinho torto, etc.). Jurati diz que Soji é uma obra-prima e a moça pergunta se ela é uma pessoa, deixando a Jurati sem saber o que dizer, realçando o drama existencial da andróide. Soji sabe que Jurati foi mandada por Oh para matá-la. Mas Jurati disse que, depois de conhecer Soji, que jamais a mataria. Esse diálogo foi um tanto tenso em alguns momentos, mas acabou apaziguador, outro elemento para aliviar o clima pesado da nave.
Enquanto Jurati e Soji conversam, Raffi consegue furar o bloqueio de Rios e os dois conversam sobre Vandermeer, o capitão que Rios via como um pai. Rios e seu capitão estavam na nave Ibn Majid quando detectaram uma pequena nave com apenas dois passageiros, estabelecendo um Primeiro Contato. Os dois tripulantes eram um embaixador que respondia pela alcunha de Flor Bonita (hein???) e sua pupila, Jana (que é a cara da Soji e trouxe a história de Vandermeer à tona na memória de Rios). Pois bem. Algumas horas depois de desembarcar na Ibn Majid, Vandermeer matou os dois a sangue frio por ordem da Federação por serem sintéticos. Caso Vandermeer não fizesse isso, a Ibn Majid seria destruída. Rios criticou severamente a atitude de Vandermeer que se suicidou com um tiro de phaser na boca. Rios encobriu tudo para que a Frota não soubesse o motivo do suicídio e a Ibn Majid não sofresse alguma represália (aqui fica a dúvida: Vandermeer cumpriu as ordens da Frota e se matou. Por que a Ibn Majid seria punida pelo suicídio de Vandermeer? Ficou um pouco mal contada essa histõria). Algum tempo depois, Rios foi dispensado por disforia traumática. E agora conhecemos toda a melancolia do capitão da La Sirena. Pesadíssimo, não? Provavelmente, esse foi o episódio que mais abordou a questão do suicídio de toda a franquia.
Todos se reúnem na La Sirena para conversar e Raffi e Picard falam aos demais sobre a advertência, ao desejo de destruição de andróides pelo Zhat Vash, e a infiltração de Oh como espiã na Frota Estelar depois da construção de Data pelo Dr. Soong. O Zhat Vash provocou o ataque a Marte. Ainda, o diplomata assassinado por Vandermeer seria do planeta dos andróides onde Maddox os construía. O Zhat Vash achou esse mundo depois que Soji deu mole para Narek. Isso irritou a moça andróide que esmurrou a mesa onde conversavam. Soji sequestra a nave, colocando um campo de força na ponte e tentando acionar a nave para ir ao planeta dos andróides. Rios canta uma canção de ninar em espanhol de sua mãe que desativa o campo de força. Picard pede que Rios vá para onde Soji quer ir e senta na cadeira de capitão para tentar ativar a nave, mas não consegue pilotá-la. Mais uma cena para desvalorizar escandalosamente o protagonista da série. Rios aciona a dobra e La Sirena parte para o planeta dos andróides.
No cubo borg, chegam várias naves romulanas para partir para o planeta dos sintéticos. Rizzo quase é linchada pelos xBs mas se teletransporta. As naves romulanas partem para o mundo dos sintéticos. Sete de Nove facilmente se desassimila e ela e Elnor assumem o cubo.
Na La Sirena, Picard conversa com Rios sobre como superar o medo e a traição com otimismo, franqueza e curiosidade, sendo esses os passos para a construção do futuro. Essa boa conversa onde se lembra que Jornada nas Estrelas é utopia e otimismo é interrompida por Soji que diz que eles chegaram. A La Sirena sai de dobra e entra por uma espécie de portal, seguida por uma nave. Seria Narek? Fim do episódio.
Quais são os pontos positivos desse episódio? Toda a parte do cubo borg, que teve algumas cenas de ação, mas que foi tomado por uma Sete de Nove que quase se assimilou e ficou com um exército de borgs à disposição. Alguns acham que a idéia dos borgs ejetados foi boa, pois depois seria complicado um cubo totalmente fora de controle nos dois últimos episódios. Eu confesso que preferia um cubo cheio de borgs como um elemento a mais nesses dois episódios finais. Outra parte boa do episódio foi o alivio cômico dos vários hologramas de Rios que, pouco a pouco, deram as pistas do passado do capitão e de sua melancolia. Aliás, esse foi o episódio que teve como função principal amarrar todas as pontas soltas para que tenhamos um bom desfecho em dois episódios. Ainda, as conversas entre Picard e Soji sobre Data, Jurati e Soji, sobre a humanidade da última, e a conversa final entre Picard e Rios sobre esperança no futuro e otimismo, ajudaram a amenizar a coisa no ambiente pesadíssimo da La Sirena.
E os pontos negativos? Em primeiríssimo lugar, a ficção científica barata e esdrúxula do sistema dos oito sóis. Sabemos que, às vezes Jornada nas Estrelas beira o inverossímil (viajar no tempo dando uma volta quase em dobra dez em torno do Sol, por exemplo). Mas pegar oito estrelas e juntá-las em torno de um planeta cheira a fantasia para lá de barata. Tudo tem um limite nessa vida e contar uma história nesses termos a deixa infantiloide demais. Outro problema: a forma agônica e suicida com que a tal da advertência é apresentada. Nunca um episódio de Jornada nas Estrelas evocou tanto a questão do suicídio, justamente uma série que é conhecida por ter uma visão otimista de futuro. O pessimismo doentio que vemos no ritual ocorrido neste sistema estelar artificial completamente inverossímil, competiu palmo a palmo com o pessimismo dentro da Sirena, com uma Jurati lançando mão de tendências suicidas para se livrar dos pesadelos da advertência e do trauma de Rios de ver seu querido capitão se matar na sua frente por causa do assassínio dos andróides. Dá uma vontade danada de fazer terapia.
Estamos na reta final. Dois episódios e um campo de batalha aparentemente montado. Vamos ver o que vem por aí…