Um documentário perturbador na Netflix. “Indústria Americana” ganhou o Oscar de Melhor Documentário esse ano e revela uma das faces mais cruéis do capitalismo no mundo contemporâneo pós-guerra fria. Um filme que mostra os rumos perigosos que o mundo está tomando e que nos faz refletir, e muito. Esse documentário teve a participação de Barack Obama entre os produtores. Para podermos falar sobre esse filme, vamos lançar mão de spoilers.
O filme começa com o fechamento de uma fábrica da GM em Ohio e a consequente demissão de todos os seus trabalhadores, ficando totalmente desguarnecidos em virtude da crise econômica que aflorou em 2008. Mas, alguns anos depois, um fio de esperança apareceu, pois uma empresa chinesa decidiu abrir uma fábrica de pára-brisas, empregando a mão-de-obra local. Até aí, tudo bem. Mas haveria um primeiro problema nesse aparente feliz casamento entre chineses e americanos: superar as barreiras culturais. O estranhamento se faz inevitável, pois as visões de mundo de americanos e chineses eram muito diferentes e logo entrariam em conflito. Os americanos, acostumados com os direitos trabalhistas e os altos salários motivados pelo “welfare state” não estavam acostumados com a disciplina milenar dos chineses, que pensavam mais no sucesso da empresa do que em ganhar salários. Os chineses achavam que os americanos estavam num patamar inferior, pois não se dedicavam a um maior ritmo de produção. E os americanos reclamavam que os chineses não cumpriam as leis trabalhistas básicas, como a segurança no trabalho. Para colocar um ingrediente nesse conflito, os chineses abominavam a presença do sindicato entre os trabalhadores e fizeram de tudo para dissuadi-los dessa presença. Numa queda de braço desigual, a gente já sabe muito bem quem sai perdendo nessa história e o desfecho do filme não tem nada de esperançoso ou promissor.
O mais irônico aqui é que os chineses, originariamente de um país socialista, agem como se estivessem no capitalismo mais selvagem dos anos iniciais da Revolução Industrial, onde não havia qualquer direito trabalhista. Na fábrica da China, por exemplo, os trabalhadores vão à fábrica aos sábados e domingos e praticamente vivem nela, vendo seus entes queridos uma ou duas vezes por ano, chegando a trabalhar doze horas por dia. No caso dos Estados Unidos, a diretoria da fábrica era dividida entre chineses e americanos. Mas, assim que as metas começaram a não ser cumpridas, os americanos da diretoria foram todos demitidos e os chineses passaram a controlar tudo, o que somente aumentou a exploração sobre os trabalhadores. Os americanos também reclamavam dos baixos salários e do tratamento que recebiam dos chineses. Já os chineses achavam que essa atitude dos americanos era uma consequência da criação de pessoas que foram muito mimadas na infância. As ameaças com quem se ligava aos sindicatos também logo se concretizariam com demissões.
Ao fim das contas, esse filme mostra uma situação que acontece em nível global e que já foi assinalada no bom documentário “Dedo na Ferida”, de Silvio Tendler. Enquanto ocorria a guerra fria e o antagonismo socialismo X capitalismo, as potências capitalistas ocidentais lançaram mão do famoso “welfare state” ou “estado de bem estar social”, ou seja, garantir direitos sociais e trabalhistas para sua população, já que isso acontecia nas potências socialistas, mesmo que houvesse ditaduras. O caso mais conhecido do “welfare state” estava nos países escandinavos, casos de Noruega, Finlândia e Suécia. Com o fim da guerra fria e dos países socialistas, as potências capitalistas não se viram mais obrigadas a garantir o “welfare state” e, consequentemente, os direitos trabalhistas começaram a cair por terra, enquanto grupos de direita avançavam ao poder. Para piorar a situação, as crises econômicas pelas quais o capitalismo passou nos últimos anos ajudaram a aumentar a instabilidade. Então, o que vemos hoje é uma progressiva derrubada dos direitos trabalhistas, do enfraquecimento dos sindicatos e da queda de salários, além do aumento de horas de trabalho. O mais irônico aqui é que é uma empresa chinesa, de um país teoricamente socialista, aplica o capitalismo mais selvagem em trabalhadores de um país que era a Meca do capitalismo, e eles vão precisar lutar por seus direitos e se sindicalizar, numa total inversão de papéis. Some-se a isso a mecanização do trabalho, que é mais um elemento a aumentar o desemprego e temos um cenário muito negativo para o futuro. Esse será um dos desafios que a humanidade vai ter que enfrentar nesse século.
Dessa forma, “Indústria Americana” é um documentário obrigatório, não somente pelo Oscar conquistado, mas pela forma como ele mostra os rumos bem crus que o sistema capitalista toma em todo mundo após o fim da guerra fria. Um filme que nos convida a uma reflexão profunda.