Mais um filme da fase americana de Fritz Lang. “Almas Perversas” (“Scarlet Street”, 1945) mostra novamente os elementos vistos aqui nos outros três filmes analisados do diretor: um claro/escuro bem ao gosto de um “Noir” com tons expressionistas, e um filme que expressa estados interiores da alma. A alusão a culturas africanas, asiáticas e da Oceania é, entretanto, deixado de lado um pouco aqui. Mas podemos ver um forte drama de tons levemente policiais mais ao final, indo um pouco diferente da vibe dos filmes anteriores, mais regados a um suspense. Vamos falar aqui do filme, lembrando que os spoilers de setenta e cinco anos estão liberados.
Qual é o plot dessa película? Vemos aqui a vida de Christopher Cross (interpretado por Edward G. Robinson), um bancário que gosta de pintar quadros nas horas vagas. Funcionário exemplar, Cross lamenta não ter tido um grande amor. Ele, para não ficar sozinho, casou-se com uma viúva que o tripudia constantemente. Um belo dia, ele encontra uma mulher sendo agredida por um homem na rua e vai defendê-la. O homem foge. Cross fica então sabendo que a moça se chama Kitty (interpretada por Joan Bennett) e começa uma amizade com ela, apesar da nítida diferença de idade entre os dois. O grande problema aqui é que o homem que agredia Kitty era Johnny (interpretado por Dan Duryea), o namorado da moça e um tremendo de um vigarista mau caráter. Ele vai combinar com Kitty de se aproveitar da amizade com Cross para arrancar dinheiro dele. Kitty, apesar de titubear em passar para trás Cross, também não é uma pessoa muito virtuosa e entra na jogada. Ela consegue fazer com que Cross alugue um apartamento para ela, onde ele também vai usá-lo como ateliê, já que sua esposa, na sua chatice insuportável, ameaça jogar seus quadros fora. Como se não bastasse, Johnny e Kitty conseguem vender seus quadros, que são reconhecidos como grandes obras de arte, a altos preços, com Kitty assumindo a autoria. Cross, sempre benevolente, aceita tudo isso. Até que o antigo marido da esposa de Cross retorna. Ele, que era visto como uma pessoa virtuosa, era também de um caráter duvidoso, e chantageia Cross para que ele não avise a esposa que está vivo.
Cross, que não aguenta mais a esposa, praticamente a entrega de mãos beijadas, para se casar com Kitty. Mas essa zomba das atitudes de Cross e o ofende tanto quanto a esposa dele o fazia. Cross, que passou a roubar dinheiro do caixa do banco para sustentar Kitty, e ainda aceitou que ela assumisse a autoria de seus quadros, entra em desespero e mata Kitty com um picador de gelo. O grande detalhe aqui é que, de acordo com todo o rumo dos acontecimentos, Johnny foi responsabilizado e incriminado pelo homicídio, sendo condenado à morte. A Cross restou perder o emprego, pois seu patrão descobriu o desfalque, mas não queria colocá-lo na cadeia pelos longos anos e por ter compreendido que Cross se perdeu por causa de uma mulher. Tudo parecia que ia acabar bem para Cross, à despeito da perda do emprego. Mas, numa viagem de trem, ele conversa com três pessoas e uma delas fala uma coisa que irá lhe martelar a cabeça: nenhum criminoso escapa de sua pena. Mesmo que ele seja julgado e inocentado, ou nem isso, a sua consciência irá lhe aplicar a punição. E é isso que acontece com Cross, que tem a sua vida completamente destruída por não suportar a culpa de ver o casal que tentava lhe aplicar um golpe acabar morto. E o desfecho da película é melancólico, com Cross vagando pelas ruas como um mendigo atormentado pelas vozes dos vigaristas mortos.
Uau! Se compararmos esse filme com os outros três analisados aqui, podemos começar realmente pelo fim, ou seja, aqui o happy end foi violentamente chutado para escanteio, ao contrário do que vimos em “Gardênia Azul”, “Maldição” e “O Segredo da Porta Fechada”. Edward G. Robinson, conhecido por filmes de gangster, aqui é a figura humana boa e sensível por excelência, expressa claramente em seu próprio nome Christopher Cross. Nosso protagonista foi sempre infeliz no amor, mergulhando num casamento humilhante justamente para não ficar sozinho. Ponto para a atriz Rosalind Ivan, que fez Adele, a esposa velha, feia e agressiva, que tripudiava de Cross o tempo todo e o obrigava a lavar a louça e botar avental, na sociedade ultramachista de 1945. Tentando escapar desse inferno, ele cai nas garras de Kitty, que o explora juntamente com Johnny, obrigando-o a roubar o caixa do próprio banco onde trabalhava com honestidade. Não é à toa que o título do filme em português é “Almas Perversas” (geralmente, os títulos em português que arrumam para os filmes aqui no Brasil não têm nada a ver com o título original; no nosso caso aqui essa receita se repete, já que o título original é “Scarlet Street”; entretanto, poucas vezes um título em português esteve tão adequado ao contexto do filme). Cansado de ser mal tratado por todos os lados, comete o homicídio e sai praticamente incólume dele.
Mas sua boa índole não consegue viver com o sentimento de culpa e provoca sua ruína. Aqui entra o Fritz Lang raiz, que transforma todo esse drama psicológico no obscuro do “Noir”. As alucinações de Cross, ouvindo as vozes de Kitty e de Johnny se dão num quarto escuro. E o fim de Cross é vagando nas ruas à noite, tido como louco e desacreditado em suas confissões de culpa. Mais uma vez o subjetivo aqui se estabelece, sendo que dessa vez de forma extremamente trágica, um fim bem expressionista que não se deixou contaminar pelo happy end americano como nos outros filmes examinados aqui.
É interessante perceber também que o subjetivo aparece de uma outra forma, que é a visão do artista plástico e do valor das obras de arte, sobretudo quando Cross pinta uma florzinha bem ordinária num copo como algo fulgurante e vistoso. Aliás, os quadros desse filme são realmente grandiosos, sobretudo o autorretrato de Kitty, que desafia a decadência de Cross ao final da película, sendo o castigo final para esse personagem que apenas ousou ser feliz, mas que as almas perversas do mundo não o permitiram. Talvez as artes plásticas aqui façam o papel das culturas primitivas das quais Lang tanto gosta, sendo outra herança expressionista, já que temos aqui uma pintura bem moderna. Só para darmos a autoria dos quadros, elas são de John Decker, qe trabalharva na parte de arte de filmes.
Outra coisa da qual não podemos nos esquecer. Temos aqui um excelente roteiro, pois toda a sequência de eventos do filme, que tinham como objetivo desgraçar a vida de Cross, acabaram ajudando a inocentá-lo do crime que ele cometeu. A gente só percebe isso depois que vemos os depoimentos dos personagens do filme no processo contra Johnny. Ou seja, devemos dar créditos para os autores do romance no qual foi inspirado o roteiro, Georges de La Fouchardière e André Mouëzy-Ëon, além do roteirista Dudley Nichols.
Dessa forma, podemos dizer que o filme “Almas Perversas” pode ser encarado como uma obra-prima de Lang em sua fase americana, considerado pelo próprio diretor um de seus filmes preferidos. Mais um filme “Noir”, só que muito mais fundeado no drama psicológico e no subjetivo, sem direito a um happy end. Um filme memorável que você poderá assistir na íntegra logo aí embaixo.