Um filmaço da fase americana de Fritz Lang. “Casamento Proibido” (“You and Me”, 1938) já seria um grande filme simplesmente pela presença da fofíssima Sylvia Sidney, mas a película tem outros atrativos sendo, sobretudo, um filme de forte conteúdo social. Para podermos falar sobre esse filme, os spoilers de oitenta e dois anos estão liberados.
O filme fala da trajetória de um casal, Helen (interpretada por Sidney) e Joe (interpretado por George Raft). Os dois são colegas que trabalham numa loja de departamentos. E têm algo em comum: os dois tiveram um passado de crimes, cumpriram pena na prisão e estão em liberdade condicional. Essa coincidência aconteceu, pois o patrão dos dois, o senhor Morris (interpretado por Harry Carey) acredita que quem passou pela cadeia fica marcado pela sociedade e ninguém quer dar uma segunda chance, ou seja, um novo emprego. Morris decidiu então empregar em sua loja de departamentos somente pessoas que estejam em liberdade condicional para dar essa segunda chance, para desespero de sua esposa, que pensa como a maioria da sociedade e vê os ex-presidiários com suspeita. Joe teve um passado de crimes violento e decidiu sair do emprego e da cidade para se afastar de seus antigos companheiros de crime, que constantemente o chamavam para voltar às antigas atividades ilícitas. Mas ele desiste de ir embora depois que Helen disse que o amava. Os dois se casam imediatamente, embora não o pudessem fazer, já que estão na condicional. Ainda, Joe não sabe do passado de crimes de Helen, que esconde isso dele de todo o jeito. Joe começa a desconfiar de Helen, inicialmente achando que ela tem outro, mas depois sabendo de seus amigos de crime que ela tinha também um passado negro. Irritado com as dissimulações de Helen, ele decide voltar para seus colegas de crime e assaltar a própria loja do Sr. Morris, em que trabalhava. Mas Helen, que já estava grávida de Joe, diz tudo ao Sr. Morris, que espera os bandidos com um monte de seguranças e a própria Helen na loja. O Sr. Morris dá um esporro federal nos ladrões, que são todos os seus empregados, e deixa Helen sozinha com eles, à pedido da própria moça. Aí, ela começa uma explicação aos bandidos de que o crime não compensa, sob risadas gerais e começa a fazer num quadro negro todo um conjunto de contas, ao bom estilo de “colocar tudo na ponta do lápis”, para ver se o que cada bandido que participaria do assalto ganharia, pois somente um percentual do roubo iria para a quadrilha, isso sem falar em gastos com um carro para a fuga, caminhões para transporte do roubo, suborno dos seguranças, etc. etc. Ao fim, a quantia que cada um teria seria irrisória, isso sem falar que eles voltariam a ser procurados pela polícia. Todo mundo ficou com uma tremenda cara de tacho, e Joe, muito enfurecido, gritava com ela, que foi embora. Os próprios ladrões disseram que “todo homem tem o direito de gritar com uma mulher (ê 1938!), mas não na frente dos outros”. Joe grita com eles também e sai à toda revoltado. Com a cabeça mais fria, ele pega um perfume na loja, paga na caixa registradora e o leva. Mas quando chega ao apartamento que dividia com Helen, esta já foi embora e lhe deixou uma carta de despedida. Desesperado, vai ao agente da condicional e ainda descobre que ela está grávida. Sem saber o que fazer, vai aos seus amigos de bandidagem que procuram Helen pela cidade toda, até a descobrirem num Hospital, onde dava à luz. O filme termina com um happy end clássico, onde o casal se reencontra, com um monte de bandidos o cortejando.
O grande barato de “Casamento Proibido” é a questão social que Lang levanta, vista também em “Vive-se Só Uma Vez”: como recolocar na sociedade aqueles que já cumpriram suas penas e estão em liberdade condicional? O trailer do filme enfoca demais essa questão e Lang criou um casal bem simpático para o grande público ter empatia com quem vive nessa condição. Mas Joe era um homem de passado violento, algo difícil de se desvencilhar. Assim, ele era muito duro contra mentiras e omissões, agindo de forma exagerada contra uma doce Helen, tornando Joe um verdadeiro trouxa, com a ajuda do machismo latente da época. Mas se Helen era doce e frágil, também vimos o seu momento de empoderamento, ao denunciar o assalto ao Sr. Morris e depois ainda explicar aos seus colegas (a maioria trabalhava na loja) por que não compensava trocarem seus empregos por um assalto, provando tudo por a mais b. Essas atitudes de Helen fazem a gente amar Sylvia Sidney com todas as nossas forças nesse filme. E a coisa vai soando cada vez mais simpática, pois, mais ao final da película, os próprios colegas de crime de Joe se transformam numa espécie de alivio cômico na ajuda em fazer o casal ficar junto novamente, o que deu a condição de que o filme tivesse um happy end que não fosse fora de contexto. Assim, Lang consegue fazer um filme que trabalha uma temática social de uma forma leve e suave, não muito tensa.
Dessa forma, “Casamento Proibido” é um dos filmes mais simpáticos de Lang, pois usa o trunfo de Sylvia Sidney, trabalha uma temática social altamente pertinente e adéqua um happy end a uma situação de humor mais ao final do filme. Veja o filme neste link, acionando as legendas, ou em inglês, ou num português sofrível: https://www.youtube.com/watch?v=bVrv-bQoWEc&t=109s
Dando sequência às nossas análises de episódios de Jornada nas Estrelas Lower Decks, vamos ao quarto episódio intitulado “Moist Vessel”. Spoilers liberados.
O plot é o seguinte. A Cerritos vai rebocar, junto com a nave Merced, uma antiga nave alienígena com a sua tripulação em estase e com reservatórios de líquidos inorgânicos que conseguem fazer terraformação. Enquanto a capitã Freeman conversa com seus oficiais seniores e com o capitão da Merced, Durango, um telarita, Mariner boceja de forma altamente inconveniente e provocativa, numa piada que não tem a menor graça. Esse teaser inicial tem relação com o resto da história, não sendo uma piada destacada.
A capitã e sua filha discutem no escritório da capitã e Mariner sai com atitudes muito debochadas. Ransom entra e sugere à capitã para colocar a filha fazendo somente atividades que sejam desagradáveis para a própria Mariner pedir para sair da Cerritos.
Os alferes veem suas tarefas e Mariner tem a triste notícia, enquanto que Tendi está toda feliz da vida, pois vai fazer uma espécie de ascensão espiritual. Mas ela destrói sem querer a mandala de areia do guru que fica irritadíssimo com ela. Tendi tenta reparar seu erro mas o sujeito a trata muito mal. Já Mariner começa a fazer suas tarefas mais complicadas e ela arruma uma forma de se divertir com elas, para o desespero da capitã. Mas Freeman tem outra ideia: ela promove a filha a tenente, algo que ela não vai suportar, pois ela vai ter que conviver com todos os oficiais seniores e fazer as mesmas coisas que eles, como reuniões sem sentido, jogar pôquer, fazer treinamento de gestão, etc. (um deboche de quem escreveu o episódio com os fãs mais antigos, habituados a acompanhar a rotina dos oficiais seniores nas séries mais antigas). Boimler, que estava limpando as vidraças da janela (lembrando que as janelas não têm vidro em virtude do campo de força, mas quem escreve os roteiros dessa animação não sabe disso) fica desesperado ao ver que a colega (e rival) tem uma promoção, num comportamento um tanto destrutivo para pessoas que vivem no século 24.
Enquanto isso, Tendi continua a tentar ajudar o guru que a repele constantemente chegar a ascensão. Já Boimler, ao descobrir que Mariner continuou quebrando as regras e, mesmo assim ganhou a promoção, pensa em estratégias para quebrar as regras e também ganhar uma promoção para ele.
O capitão Durango, competindo com Freeman, manda mudar de posição a sua nave com relação à Cerritos (ambas as naves estão rebocando a nave alienígena com o raio trator). E isso acaba causando um acidente, onde toda a matéria inorgânica passa a ser atraída pelo raio trator e provocar terraformação nas duas naves. Nesse momento, Boimler entra na ponte e, propositalmente joga café em Ransom que praticamente o pega pelo pescoço. Mas a terraformação é um problema muito mais urgente. No meio de toda a confusão, Tendi começa a discutir com o guru e diz que não está interessada na ascensão dele, mas sim no fato de que ele não gosta dela, que ela fica muito mal quando alguém não gosta dela. E o tal guru disse que a ascensão era algo falso e que ele fazia isso para conseguir atenção. Como a ascensão não vinha e ocorreu o acidente com a mandala, ele passou a culpar Tendi para se esconder atrás disso. Ela então diz que os dois são idiotas, pois mentiram para que alguém gostasse deles.
Enquanto isso, Freeman e Mariner quebram rochas com outros pedaços de rochas e ficam batendo boca, mostrando que são iguais no comportamento. Elas resolvem o problema da terraformação juntas (Mariner parece levar o crédito, mas ela leu o relatório da missão da mãe). Já Tendi vê o seu amigo finalmente ascender, depois que ele a salva de morrer esmagada por uma rocha.
A Merced está praticamente destruída e Freeman, juntamente com Mariner, teletransportam a tripulação da nave semi-destruída para a nave que está sendo rebocada. As duas se abraçam, mas logo se afastam uma da outra em teimosia mútua.
Depois de toda a crise contornada, as duas vão receber os cumprimentos de um almirante. Freeman diz que gostou de trabalhar com a filha, e Mariner diz que também gostou de trabalhar com a mãe. A capitã vislumbrou a possibilidade das duas trabalharem juntas, mas Mariner não gostou muito da ideia. Tanto que debochou da forma como o almirante falava a palavra “sensor” e voltou a bocejar, para ser rebaixada de propósito e não trabalhar com a mãe. Já Tendi, apesar de perceber que a vida é muito curta para dar importância ao que as pessoas pensam dela, continua preocupada com isso. O episódio termina com Mariner e Boimler conversando, com ela dizendo que “se rebaixou”, para desespero de Boimler que nunca consegue o que Mariner consegue. A moça lhe dá então um cartão que dá acesso aos replicadores de comida dos oficiais seniores. Fim do episódio.
O que podemos falar do episódio “Moist Vessel”? Em primeiro lugar, foi um episódio que seguiu um pouco a linha do anterior, ou seja, o conflito entre Mariner e os oficiais seniores. Aqui vimos até algo que era esperado, ou seja, como a moça se relaciona com a sua mãe, que é a capitã da nave. Mas, ainda assim, a coisa é muito tensa, pois a alferes não quer de jeito nenhum ficar entre os oficiais seniores e, principalmente, sua mãe, voltando sempre para os lower decks. Aliás, tem sido um pouco irritante ver como os oficiais seniores são vistos como idiotas na série. Tudo aquilo que víamos nas séries antigas, como o jogo de pôquer e as reuniões, é sumariamente ridicularizado aqui, como se houvesse uma espécie de desrespeito com os fãs mais antigos. Tudo bem que temos uma animação de humor, mas esse humor tem estado em baixa nos últimos episódios, dando lugar a uma tensão entre os tripulantes dos lower decks e os oficiais seniores e, quando o humor aparece, parece que ele faz uma chacota com os fãs mais antigos, algo que está aborrecendo, e muito.
Algo que está ficando recorrente nos episódios é o fato de que sempre a Cerritos encara uma tragédia de grandes proporções, bem ao estilo de “qual é o desastre da semana”. Isso parece refletir um pouco a falta de criatividade de quem está escrevendo esses episódios. Não seria possível uma trama envolvente sem uma catástrofe repetitiva?
Pelo menos, esse episódio teve uma coisa boa, que foi a História B. Estou começando a achar que a Tendi é o que Lower Decks tem de melhor. Sua insegurança e preocupação com o que os outros pensam dela não chega a ser algo agressivo (embora ela dê uma chave de braço em Rutherford no final do episódio) e muitas pessoas devem se identificar com ela por causa disso. Mesmo com essa insegurança, Tendi está sempre preparada para encarar experiências novas para se engrandecer como indivíduo. Confesso que Tendi é a personagem que mais me agrada, enquanto que Boimler e, principalmente, Rutherford, ainda não disseram ao que veio. E já estamos quase na metade da temporada.
Assim, “Most Vessel” é um episódio que repete as tensões entre personagens do último e que não trabalha o humor como esperado, sendo que, quando o faz, parece ser para fazer piadas de mau gosto com os fãs mais antigos de uma forma agressiva. Está parecendo que Mariner vai ser outra personagem mala sem alça da era Kurtzman. Mas, pelo menos, tem a Tendi, com sua simpática insegurança e hiperatividade. Abençoada seja Órion!
A série Jornada nas Estrelas é conhecida por mostrar uma sociedade utópica do futuro onde todos os problemas enfrentados pela humanidade foram praticamente resolvidos e a humanidade progrediu mostrando o seu melhor. É verdade que, dentro das séries de Jornada nas Estrelas, a distopia apareceu em algumas séries, mas o espírito inicial sempre foi a utopia. Ainda, em Jornada nas Estrelas, além de temas pertinentes à ciência, referências de ordem histórica, social e política também se faziam presentes nos episódios e séries, nesses mais de cinquenta anos de franquia. Um dos temas abordados foi o fascismo, talvez um dos regimes mais cruéis que a humanidade forjou. Vamos aqui conversar um pouco sobre essa presença do fascismo em Jornada nas Estrelas, analisando, basicamente, dois momentos da franquia. O primeiro deles foi o episódio “Padrões de Força”, da série clássica, realizado apenas vinte e três anos depois do término da Segunda Guerra Mundial. O outro episódio, “Tempestade Temporal”, um episódio duplo de Jornada nas Estrelas Enterprise, foi realizado cinquenta e nove anos depois do término da Segunda Guerra Mundial. Para podermos analisar os episódios propriamente ditos à luz do que foi o fascismo, será feita aqui uma breve digressão do que foi o fascismo, as condições que levaram ao seu surgimento e como ele se processou na Europa, sobretudo nos casos italiano, alemão e espanhol. Em seguida, analisaremos o episódio “Padrões de Força” e, logo a seguir, o episódio “Tempestade Temporal”. Ao final, apresentaremos as conclusões dessas análises.
Uma Breve História do Fascismo
Ao fim da Primeira Guerra Mundial, a Europa, destruída, vivia uma violenta crise econômica, onde houve uma pequena recuperação ao longo da década de 20. Entretanto, em 1929, viria a Grande Depressão, que agravou novamente a situação. Os grupos políticos socialistas culpavam, em 1918, a burguesia pela crise, já que o processo imperialista surgido ainda no século XIX, já tinha ocorrido em virtude de uma crise econômica de superprodução que foi sanada quando as grandes potências europeias se voltaram para a África, Ásia e América Latina para explorar suas fontes de mão-de-obra, de mercados consumidores e de matérias-primas. O desentendimento entre as potências européias nessa exploração imperialista foi um dos fatores (senão o mais importante) que levaram à Primeira Guerra Mundial. Tudo isso em virtude de uma burguesia que atuava livremente para enriquecer, sem qualquer controle do Estado. Ao chamar a atenção para esses fatos, os grupos socialistas começaram a receber apoios de operários e intelectuais, ganhando mais e mais deputados nas eleições dos países europeus no pós-guerra. Os grandes empresários e patrões temiam a explosão de revoluções socialistas pela Europa. A única forma de deter isso seria acabando com os governos democráticos e impondo uma ditadura que assegurasse o capitalismo e reprimisse os socialistas. A classe média e a pequena burguesia percebiam que seus padrões de vida caíam e acreditavam que as greves de operários aumentavam a inflação (alta dos preços). Assim, a classe média e a pequena burguesia também começaram a apoiar uma alternativa mais autoritária de governo. Dentre os próprios operários e camponeses havia grupos que queriam um governo que “restaurasse a ordem”. Assim, se os grupos socialistas ganhavam deputados, as requisições de um governo forte também deram força aos grupos de extrema-direita. Eles defendiam a instalação de um regime autoritário que “combatesse a baderna, a corrupção dos políticos e os movimentos grevistas de esquerda”. Era necessária a presença de um líder incontestável. A democracia era considerada um regime fraco e corrupto que permitia ascensão de grupos de esquerda ao poder. Tais ideias estavam ligadas a um movimento político chamado fascismo, cuja expressão vem da palavra fascio, que era um machado que os juízes da Roma Antiga possuíam e que era uma espécie de símbolo de poder.
Apesar de se declarar revolucionário, o fascismo defendia o capitalismo, ou seja, o regime fascista é uma ditadura favorável à burguesia. Apesar da forte presença do Estado, a maioria das empresas continua sendo de propriedade dos burgueses. A democracia acaba, não havendo eleições, greves, liberdade de imprensa e os críticos do governo sofrem prisões. O único partido aceito é o fascista e os sindicatos devem obedecer incontestavelmente ao governo. Dentre as principais ideias fascistas, podemos citar: anticomunismo (os fascistas abominavam a igualdade social proposta pelos socialistas, pois acreditavam em povos superiores e inferiores; Adolf Hitler, em seu livro Mein Kampf – Minha Luta – dizia que devia haver duas categorias de cidadãos: os que haviam prestado serviço militar, que pertenciam à uma casta superior e que teriam mais direitos, e os demais civis que, por não terem prestado o serviço militar, seriam de uma casta inferior com menos direitos); antiliberalismo (o regime democrático é fraco e corrupto, dominado pelos enganadores do povo; já os fascistas defendem um regime ditatorial); totalitarismo (o indivíduo deve obedecer ao Estado sem contestação, pois, caso ele conteste o governo, ele é um inimigo da pátria; o Estado controla todas as atividades, mas a propriedade privada e o capitalismo continuam existindo); militarismo (a guerra é vista como a atividade mais nobre do Homem, onde o mais forte deve vencer o mais fraco e o diálogo é considerado uma atividade dos mais fracos); xenofobia (o fascismo é ultranacionalista, onde o governo deve controlar os investimentos estrangeiros no país, e é xenófobo, ou seja, odeia tudo aquilo que é estrangeiro, considerando as pessoas de outros países como inimigas da pátria e inferiores); racismo (ocorreu mais na Alemanha, dentro do regime nazista, onde havia uma “superioridade da raça branca” sobre as demais, consideradas inferiores, devendo ser eliminadas por contaminar o sangue puro ariano; as mulheres deviam ser submissas); culto ao chefe supremo da nação (o líder da nação é uma espécie de pai simbólico que protege a nação com toda a sua autoridade, sendo praticamente cultuado como um Deus); irracionalismo (os fascistas acreditavam que o racionalismo era limitado, e a força bruta é o mais importante, onde a verdade é aquilo que o mais forte consegue impor; por isso mesmo, os fascistas davam grande importância à propaganda política, onde o Ministro da Propaganda Nazista, Joseph Goebbels, dizia que “Uma mentira falada mil vezes se tornava uma verdade” e, por serem críticos do racionalismo, eram também críticos do movimento iluminista, embora os nazistas tenham usado práticas bem racionais para a matança em campos de extermínio).
O fascismo inicialmente se desenvolveu na Itália, que, logo após a guerra, estava em profunda crise econômica, a um passo de uma revolução socialista. Surgiu, então, o Partido Fascista, inicialmente um agregado de ex-soldados, desempregados e policiais que reprimiam com violência operários grevistas, mediante pagamento de empresários. Com o tempo, esse grupo se tornou um partido político com ideias próprias, embora não tivesse parado a violência contra seus inimigos. Em 1922, com o apoio da burguesia, os “Camisas Negras” fascistas fizeram a marcha sobre Roma, exigindo que o Rei da Itália nomeasse o líder fascista Benito Mussolini como Primeiro-Ministro. Isso acabou acontecendo e Mussolini convocou eleições fraudulentas que inundaram o Parlamento Italiano de fascistas. Quem se opunha a isso era assassinado. É importante notar que isso aconteceu bem antes da Crise de 1929. Foi Mussolini quem cedeu o Vaticano à Igreja Católica no Tratado de Latrão de 1929.
O fascismo também se desenvolveu na Alemanha, sob o nome de nacional-socialismo, cuja abreviação, o nazismo, ficou mais conhecida. Apesar de ser um movimento de extrema-direita, o nazismo adotou o termo socialismo por ser muito popular na época. Ao fim da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha criou uma República Democrática, conhecida como República de Weimar, abandonando o Império após a abdicação do Kaiser Guilherme II. O termo Weimar foi adotado pois, em virtude das sérias turbulências políticas, a constituição não foi escrita em Berlim, mas na cidade próxima de Weimar. Os nazistas viriam a tomar o poder somente em 1933, e todo o período da República (1918-1933) foi de extremas dificuldades, onde os alemães passaram por uma inflação violentíssima em 1923, lutas entre grupos de extrema esquerda e extrema direita, onde os primeiros eram severamente punidos pela justiça, enquanto que havia grande impunidade para o segundo grupo (Hitler tentou dar um golpe e ficou menos de um ano na cadeia), além de assassinatos de políticos que queriam um melhor relacionamento com os países europeus que impunham severas restrições aos alemães pelo Tratado de Versalhes.
Adolf Hitler era um ex-sargento da Primeira Guerra Mundial que queria ser artista e foi reprovado duas vezes na Academia de Artes de Viena (Hitler era austríaco, não alemão). Desempregado, começou a ler publicações antissemitas e foi contratado como olheiro da polícia para se infiltrar em grupos de esquerda e fornecer informações. Numa de suas missões, Hitler se infiltrou no Partido dos Trabalhadores Alemães, como sétimo membro. Hitler começou a manipular os membros do partido com suas ideias e o fez crescer, transformando-o mais tarde no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Hitler tinha excelente oratória e acusava os judeus e comunistas de desgraçarem o país. Ele falava em combater a desordem e recuperar o orgulho de ser alemão. Tais palavras eram de grande impacto numa sociedade empobrecida e faminta. Com o tempo, os nazistas conseguiram fazer deputados no parlamento, mas com a crise de 1929, onde o desemprego chegou a 44% da população economicamente ativa, Hitler percebeu que não precisaria mais dar um golpe para chegar ao poder. Com as forças antinazistas divididas (os socialistas e social-democratas), os nazistas, que tinham apoio dos militares e dos empresários, estavam unidos, e aproveitaram uma brecha no sistema de poder da Alemanha para poder chegar ao poder. Ou seja, os nazistas chegaram ao poder pelas vias legais, ao contrário do que havia acontecido na Itália. Ao subirem ao poder, a primeira medida dos nazistas foi botar fogo no parlamento alemão e acusar os socialistas, sendo esse o pretexto para os partidos políticos serem fechados e a policia secreta (Gestapo) ser colocada nas ruas. Hitler contornou a crise econômica fazendo um plano econômico semelhante ao New Deal dos Estados Unidos, mas com a ajuda da iniciativa privada ao invés dos investimentos estatais que Roosevelt fez nos Estados Unidos.
Outro local onde o fascismo se instalou na Europa de forma muito pronunciada foi na Espanha, depois de uma guerra civil de três anos (1936-1939). Houve uma eleição disputada pelos militares fascistas espanhóis (liderados pelo General Francisco Franco) e as forças antifascistas democráticas e republicanas, que ganharam as eleições. Os fascistas não aceitaram a derrota e a guerra civil se instaurou. O governo republicano reagiu à tentativa de golpe e armou a população. Os republicanos também receberam ajuda de socialistas, social-democratas, anarquistas, da União Soviética e de brigadas internacionais. Já os fascistas receberam de Hitler a ajuda da Luftwaffe (a Força Aérea Nazista), de Mussolini (que enviou tropas), dos empresários, dos grandes fazendeiros e da Igreja Católica, declaradamente anticomunista. Em 1939, os fascistas ganharam a guerra civil espanhola, que foi considerada uma espécie de ensaio para a Segunda Guerra Mundial, que também começaria naquele ano. Pablo Picasso retratou em seu mural “Guernica” todos os horrores do bombardeio nazista a essa cidade espanhola e hoje esse mural está na sede das Nações Unidas em Nova Iorque para que todos se lembrem dos horrores da guerra.
Jornada nas Estrelas, A Série Clássica: Padrões de Força (S02 Ep 21 – “Patterns Of Force”, escrito por John Meredith Lucas)
Falemos, agora, do primeiro episódio de Jornada nas Estrelas que abordou a questão do fascismo. Trata-se do vigésimo-primeiro episódio da segunda temporada da série clássica (The Original Series, mais conhecida como TOS), chamado “Padrões de Força” (“Patterns of Force”), escrito por John Meredith Lucas, exibido pela primeira vez em 16 de fevereiro de 1968, ou seja, apenas vinte e três anos depois do término da Segunda Guerra Mundial.
O plot do episódio é o seguinte. A Enterprise vai para um sistema planetário onde há dois planetas habitados: Ekos e Zeon. O primeiro planeta tem uma civilização belicosa, ao passo que o segundo planeta tem uma civilização pacífica e desenvolvida tecnologicamente, sem guerras há várias gerações. O historiador terráqueo John Gill foi enviado pela Federação como Observador Cultural, mas não deu mais qualquer sinal de vida e, agora, a Enterprise vai ao sistema para buscar saber o que aconteceu. Ekos lança uma ogiva nuclear contra a Enterprise, justamente o planeta que tem uma tecnologia menos avançada, sendo que a ogiva nuclear é mais avançada que as tecnologias dos dois planetas. Spock frisa que John Gill é um historiador que trabalha a História mais em torno da questão de causas e motivações do que em datas e eventos, ou seja, uma abordagem sobre a História que era uma novidade para a época em que a série era produzida. Ao descerem à superfície de Ekos, Kirk e Spock descobrem que há um Estado Nazista governando o planeta e que trata os zeons exatamente como os nazistas tratavam os judeus na época da Segunda Guerra Mundial, matando os zeons, linchando-os ou pisoteando-os (os próprios nomes dos personagens zeons lembram nomes de origem judaica: Davod, Isak, Abrom). Os nazistas, no transcorrer do episódio, na maioria das vezes apontavam as armas para alguém, sempre sob uma música militar de fundo (referência ao militarismo dos fascistas). Há todo um discurso de erradicação dos zeons do planeta Ekos, bem ao estilo da chamada “solução final” implementada pelos nazistas no momento em que os aliados passaram a estar em vantagem na guerra e, para que a situação de crimes de guerra dos campos de concentração não fosse descoberta, os nazistas passaram a focar no extermínio sistemático dos judeus para a sua erradicação total (embora devamos nos lembrar que os nazistas também exterminavam comunistas, homossexuais e ciganos). Os nazistas de Ekos se referiam aos zeons como “suínos” e, com a erradicação, os zeons “profanariam os ekosianos pela última vez”, numa clara alusão ao racismo nazista que à “raça pura” ariana, opunha o sangue contaminado dos judeus, que deviam ser eliminados para não contaminar o sangue puro dos arianos.
É interessante também perceber que havia uma tela de TV que fazia a propaganda nazista ekosiana, repetindo continuamente o discurso de ódio contra os zeons. Uma notícia chama a atenção: que os ekosianos haviam repelido um ataque zeon, destruindo a nave agressora, numa alusão ao ataque à Enterprise. Nesse momento, Kirk diz a Spock que ele parecia bem inteiro para quem foi destruído num ataque. Essa fina ironia contra a mentira da notícia ekosiana é uma clara referência às técnicas de propaganda de Joseph Goebbels e à sua famosa frase “uma mentira falada mil vezes torna-se uma verdade”.
E quem seria o “Führer” desse Estado Nazista Ekosiano? Seria o próprio John Gill, para a perplexidade de Kirk. Mais um mistério a se resolver aí. Por que um historiador consciente das atrocidades nazistas violaria a Primeira Diretriz e implementaria um regime nazista num planeta para onde ele foi apenas como um observador cultural?
É claro que nossos personagens protagonistas vão ter que agir para descobrir o que está acontecendo. E, para isso, eles vão precisar usar disfarces nazistas. Há duas passagens muito curiosas quanto a isso. Spock está disfarçado com um capacete nazista encobrindo estrategicamente suas orelhas vulcanas. Kirk, ao perceber o detalhe, diz que o capacete nazista cobre todos os pecados de Spock. Essa ironia muito provavelmente foi dirigia aos conservadores WASPs (sigla inglesa para branco, anglo-saxão e protestante) dos Estados Unidos que haviam reclamado que o personagem de Spock lembrava o demônio. Nada mais irônico que um disfarce nazista para encobrir os “pecados” da fisiologia vulcana de Spock, um disfarce cuja ideologia poderia muito bem estar em sintonia com a ideologia da direita conservadora estadunidense que tanto criticava Spock. Já Kirk conseguiu um uniforme de uma patente superior e mais bonito que o de Spock, ao que valeu o comentário do vulcano de que o capitão estaria um nazista bem convincente, o que provocou um olhar ressabiado de Kirk. Todo trekker de carteirinha sabe dos rompantes autoritários de Kirk para com sua tripulação e a piada foi bem oportuna aqui.
Quando Kirk e Spock são aprisionados, outros detalhes interessantes aparecem. Eles foram chicoteados e as marcas de chicoteamento em Spock eram todas verdes por causa de seu sangue. Já Kirk estava todo vermelho, mas as manchas pareciam ter sido feitas de batom. Um dos nazistas que mantinha os dois presos (e que ia se revelar uma espécie de agente zeon infiltrado) se chamava Eneg, que é “Gene” ao contrário. Uma coisa que incomoda aqui é uma certa arrogância com que Kirk se dirige aos nazistas, dizendo que só responderia as perguntas se ele pudesse falar diretamente com o Führer e uma certa passividade dos nazistas contra tal empáfia. Bom, ele é o herói da série, mas… Temos, ainda, a argumentação dada por Isak do motivo pelo qual os ekosianos odiavam os zeons. Ficou claro na fala de Isak que o ódio aos zeons era o que unificava os ekosianos, como se sua belicosidade dividisse os ekosianos em vários grupos. Quando pensamos na ideologia nazista baseada numa pureza de raça que justificasse as ações conquistadoras dos nazistas contra os inimigos de uma raça inferior, esse fator de uma raça ariana pura provavelmente também foi usado como um elemento aglutinador, já que a agressividade dos nazistas levava a divisões entre eles. Um caso emblemático disso é a “Noite das Facas Longas” onde cerca de duzentos membros das SAs foram massacrados. As SAs (Sturmabteilung, Destacamento Tempestade), eram forças paramilitares criadas em 1921 e que tinham como objetivo inicial proteger líderes nazistas em comícios e assembléias. Com o tempo, essa força passou a ter cerca de 4,5 milhões de integrantes, mais do que os cem mil soldados do exército alemão. Em 1934, as SAs eram lideradas por Ernst Röhm e eram vistas por Hitler como uma ameaça ao seu poder. Assim, o Führer ordenou o massacre de suas lideranças, desbaratando o movimento. As SAs seriam substituídas pela SS (ShutzStaffel, Tropas de Proteção), liderada por Heinrich Himmler e idealizada inicialmente por ele como última linha de defesa de Hitler, uma espécie de tropa de elite, que depois se tornou um importante braço armado nazista.
Outra característica muito curiosa do episódio é a visão que os zeons têm dos ekosianos. Como os zeons eram uma espécie pacífica que não tinha guerras há várias gerações, e os ekosianos eram belicosos, os zeons se sentiram no direito de tutelar os ekosianos e levar a “civilização” zeon para a “barbárie” ekosiana. Esse foi o mesmo discurso que motivou a invasão imperialista da Europa à África, Ásia e América Latina, na virada do século XIX para o XX. E o argumento de se levar a “civilização” para a “barbárie” muitas vezes se amparava no darwinismo social, que é uma interpretação equivocada da Teoria da Evolução das Espécies de Charles Darwin, e que colocava os europeus como raças humanas mais evoluídas e superiores às africanas e asiáticas, justificando as invasões europeias. Ou seja, os argumentos nazistas usados para justificar suas posturas agressivas e beligerantes na Segunda Guerra tinham origem no processo imperialista de décadas anteriores e em “Padrões de Força” são usadas ironicamente como uma justificativa da intervenção zeon no planeta Ekos, ou seja, levemos a civilização para os bárbaros. Isak lembra também que os ekosianos eram belicosos, mas não tão perversos. Isso aconteceria justamente com a chegada de John Gill ao planeta.
Mais uma alusão ao que acontecia no nazismo aparece quando Kirk, Spock e Isak se libertam da cela e vão procurar os comunicadores no laboratório. Eles passam por um soldado e Kirk diz que está levando o zeon para o laboratório para fazer experiências, numa clara referência às experiências de Joseph Mengele, principalmente com irmãos gêmeos, onde ele fazia as experiências genéticas mais terríveis com o irmão gêmeo mais fraco, ao melhor estilo de se usar uma cobaia humana. Todas as experiências que dessem certo com o gêmeo mais fraco eram aplicadas no gêmeo mais forte. Mengele também amputava membros de bebês para ver o seu poder de regeneração, assim como injetava corantes azuis nos olhos de crianças para verificar se a íris ficaria azul.
Na parte final do episódio, mais referências explicitas ao nazismo. Quando Kirk, Spock, Isak e a espiã Daras, tomada como herói nazista ekosiana, entram na chancelaria, o disfarce é uma espécie de equipe de filmagem onde são feitas tomadas da herói nacional Daras (impossível não se lembrar de Leni Riefensthal e seus filmes de propaganda). Há, também, o vice-führer, Melakon, talvez aqui uma espécie de Goebbels. A respeito de John Gill, este estava imóvel no local de seu discurso e aí surgiram as especulações: distanciamento semi-divino (como os líderes fascistas eram tratados), drogado ou psicose (sempre houve essa alegação de que os líderes fascistas eram psicopatas; mas fica aqui um questionamento: será que um fenômeno político como o fascismo, que surgiu em vários países de culturas bem diferentes, teria todos os seus líderes tomados como psicopatas? Tal hipótese não daria peso demais ao indivíduo para um fenômeno social?). De qualquer forma, Gill era drogado por Melakon no final das contas. Foi isso que Gill disse ao ser “reanimado” por McCoy para que Kirk pudesse conversar com o historiador e entender o que ocorria. E a opção pelo nazismo? Nas palavras de Gill, o planeta Ekos estava fragmentado e o modelo de Estado Nazista foi usado por ele, pois esse era o exemplo de estado mais eficiente. Spock concordou com isso, pois a Alemanha era um país abalado e falido que foi transformado numa potência pelo nazismo em poucos anos. Kirk rebateu dizendo que o Estado Nazista foi brutal, pervertido e que foi destruído a um custo terrível. Spock retruca dizendo que Gill deve ter acreditado que podia usar esse Estado de forma benigna, alcançando sua eficiência sem sadismo. Gill disse que no início funcionou, mas Melakon assumiu o comando e passou a drogar o historiador. Kirk consegue fazer Gill discursar para ordenar o fim da matança e acusar Melakon de traição, que alveja Gill com uma metralhadora antes de ser morto por Isak. Moribundo, Gill diz a Kirk que errou e que a Diretriz de Não Interferência é o único caminho. Gill ainda diz que até os historiadores falham em aprender com a História, repetindo os mesmos erros do passado. Pode até ser. Mas quem não aprende com a História tem muito mais chances de repetir os erros do passado.
Ao fim do episódio, fica a reflexão entre Kirk, Spock e McCoy de que o grande erro de Gill foi, mesmo com a melhor das intenções, acumular muitos poderes e não resistir à tentação de ser Deus. Ou seja, que poder absoluto corrompe absolutamente. Spock não podia deixar de ser sarcástico, lembrando que a História da Terra está coberta de exemplos de homens que acumularam poderes, brincando de ser Deus.
Vendo o desfecho do episódio e o que vimos sobre o fascismo, cabem aqui umas últimas palavras. A alegação de que o Estado Nazista foi o mais organizado que surgiu é baseado num pragmatismo que não leva em conta as origens de tal Estado. Por mais eficiente que esse Estado tenha sido em recuperar a Alemanha, ainda assim devemos lembrar que a sua origem é autoritária para garantir a manutenção de uma elite econômica burguesa no poder, desqualificando totalmente a democracia, rotulando-a de fraca e corrupta, pois ela permitia a ascensão de grupos socialistas ao poder. E essa recuperação da Alemanha tinha um objetivo bem específico: buscar a vingança contra aqueles que haviam derrotado a Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Ou seja, o Estado Fascista foi todo construído num espírito de ódio, autoritarismo e revanchismo. Ver tal Estado sendo usado de forma benéfica é algo um tanto complicado, pois ele foi forjado sob parâmetros altamente negativos desde a sua origem. Se, de um ponto de vista pragmático ele obteve resultados positivos, isso não significa que seja um modelo de Estado ideal. Ainda mais porque esse Estado permitia o poder absoluto nas mãos de uma só pessoa, algo que corrompe absolutamente, nas próprias palavras da tríade de Enterprise. Não é a toa que o Barão de Montesquieu apresentou, na época do Iluminismo, a sua Teoria dos Três Poderes, onde os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário substituiriam o poder absoluto dos reis do Antigo Regime, pois, quando temos três poderes, um vigia o outro, impedindo que um poder sobressaia e assim nós temos uma forma mais democrática e livre de governo. A democracia, mesmo com seus defeitos (nenhum sistema de governo ou Estado é totalmente perfeito), ainda assim é o sistema mais justo de governo.
Jornada nas Estrelas, Enterprise: Tempestade Temporal (S04 Eps 01 02 – “Storm Front”, escrito por Manny Coto)
Falemos, agora, do episódio duplo do início da quarta temporada de Jornada nas Estrelas Enterprise, intitulado “Tempestade Temporal”. Exibido pela primeira vez em 8 de outubro de 2004, esse episódio duplo está a cinquenta e nove anos do fim da Segunda Guerra Mundial e aqui o nazismo é mais visto como um pano de fundo do plot principal que é a Guerra Fria Temporal, onde os nazistas invadiram os Estados Unidos (Lênin foi assassinado, não houve a Revolução Russa e a Alemanha Nazista não tinha a União Soviética como grande preocupação, o que possibilitou a invasão à América). Ou seja, esse episódio duplo ficou com uma tremenda cara de decalque de “O Homem do Castelo Alto”, mesmo tendo sido feito anos antes para a TV (mas já com a referência do livro de Philip K. Dick). Um grupo de alienígenas do século XXIX fez uma aliança com os nazistas trocando tecnologia por recursos para construir um conduíte temporal para retornar ao século XXIX. Caberá a Archer e sua tripulação destruir o conduíte para que esses alienígenas não cumpram sua missão e não alterem o passado. Dentro de um plot como esse, a discussão sobre o nazismo acabou muito deslocada e tivemos apenas umas poucas referências esporádicas. Dentre elas, a conversa entre um soldado nazista e Archer que dizia que os estadunidenses não eram bons soldados, mas que tinham um bom cinema. Ou a conversa entre o alienígena e o oficial nazista onde o primeiro pode fornecer pragas a serem colocadas na água que faria o serviço dos campos de concentração, assim como a comparação que o alienígena faz entre a espécie dele e os nazistas: ambos abraçam ideais de pureza e perfeição e ambos enfrentam inimigos que poderiam destruí-los. Houve, também, o discurso do alienígena na construção do conduíte, que se aproximava bastante dos discursos e rituais do nazismo. Ainda, tivemos a violência nazista nas ruas e o ato de um nazista zombar, de forma racista, a companheira negra de resistência do Archer. Mas talvez a principal referência ao nazismo está no cinejornal ao início do segundo episódio, onde vemos a chegada de Hitler a Nova Iorque (alusão da chegada de Hitler a Paris). Além disso, o cinejornal diz que Hitler promete extirpar os parasitas que assolam a economia americana desde 1929, ou seja, os grandes empresários capitalistas que fizeram investimentos de risco que ajudaram a levar os Estados Unidos para a crise de 1929. Lembrando que Hitler tinha uma grande aproximação com a iniciativa privada (ele lançou mão da ajuda de empresários para fazer um plano semelhante ao New Deal na Alemanha), essa repulsa aos empresários estadunidenses soa como falsa (talvez ela fosse mais pertinente com Goebbels, que via o capitalismo de forma negativa, pois acreditava que a modernidade que vinha com o capitalismo poderia destruir as tradições alemãs). O cinejornal ainda dizia que a aliança Estados Unidos-Alemanha faria os trabalhadores estadunidenses voltarem ao emprego, numa referência à crise de 1929, onde o Führer tiraria os Estados Unidos da crise e do desemprego.
Conclusões.
Vimos como Jornada nas Estrelas, em toda a sua riqueza cultural, extrapola os limites da ficção científica e discute também temas de ordem política e social. Tomando como exemplo os episódios de Jornada nas Estrelas que abordam a questão do fascismo, pudemos perceber como “Padrões de Força” possui uma discussão muito mais rica sobre o tema, muito provavelmente por estar mais próximo ao fim da Segunda Guerra Mundial. Apesar do episódio levantar uma hipótese de que o Estado Fascista seria muito eficiente e ele poderia ser usado de uma forma benigna, devemos lembrar que esse Estado Fascista nasceu dentro de uma referência autoritária, odiosa e revanchista. Entretanto, o desfecho do episódio descarta totalmente o uso do Estado Nazista na tese do “poder absoluto que corrompe absolutamente”. Já em “Tempestade Temporal”, produzido quase seis décadas depois do fim da guerra, o fascismo foi mais usado como um pano de fundo para o arco da Guerra Fria temporal, que trabalha mais a noção de história alternativa. Ainda assim, o episódio deu margem para analisarmos umas poucas características do fascismo, mais presentes no cinejornal visto ao início do segundo episódio. Só é de se lamentar que ficou aqui registrado um Hitler que baniria o empresariado, quando tínhamos a situação oposta na vida real. De qualquer forma, a análise desses episódios é um excelente exercício para algumas reflexões sobre o regime fascista e de por que ele não deve jamais ser retomado sob qualquer circunstância na História da Humanidade.
Dentre as análises da carreira americana de Fritz Lang, falemos de “O Diabo Feito Mulher” (“Rancho Notorius”, 1952), o terceiro Western do diretor austríaco, que conta com a participação toda especial de Marlene Dietrich. Só quero dizer inicialmente que simplesmente odeio o título em português do filme, além de achá-lo uma tremenda duma sacanagem com Marlene Dietrich. Para podermos falar mais sobre o filme, vamos liberar os spoilers de sessenta e oito anos.
O plot é o seguinte. Vern Haskell (interpretado por Arthur Kennedy) tem a sua noiva assassinada num assalto. Ele vai atrás dos assaltantes com alguns homens e o xerife da sua cidade, mas todos recuam quando chegam aos limites legais da jurisdição do xerife, sem falar que dali para a frente era território Sioux. Vern, revoltado, continua sozinho. Ele acha um dos bandidos, que foi alvejado pelo assassino de sua noiva numa discussão e extrai do homem moribundo apenas que o outro bandido foi para um lugar chamado Chuck-a-Luck. Vern sai procurando por aí, até que, numa barbearia, ao mencionar o nome Chuck-a-Luck, é interpelado de forma agressiva por um homem, que menciona o nome de Altar Keane. Os dois começam uma luta de vida e morte e Vern mata o sujeito que era procurado por assaltar diligências e, ao invés de ser preso, ainda recebeu uma recompensa do xerife, que Vern deu de bom grado ao dono da barbearia, que foi destruída na luta. Mas Vern aproveitou a oportunidade para perguntar sobre Alter Keane. Ele descobriu que ela era uma espécie de cantora e dançarina de cabarés e bares, que pulava de cidade em cidade. Vern seguiu os passos da estranha mulher até chegar em Frenchy Fairmont (interpretado por Mel Ferrer), que a conhecia. O homem estava preso e Vern deu um jeito de ser preso também e libertar Frenchy, para conquistar a confiança dele. Frenchy o leva então para um distante rancho, cuja dona é Alter Keane (interpretada por Dietrich). Ela conseguiu o rancho depois de se demitir de um bar onde era cantada de forma agressiva com os homens e ganhar uns jogos de roleta com a ajuda de Frenchy, que se apaixonou por ela. Keane criava cavalos e abrigava bandidos procurados no rancho. Vern, para verificar se o assassino de sua esposa estava pro lá, se tornou atrevido o suficiente para se aproximar de Keane, que cai em suas graças e desperta os ciúmes de Frenchy. Este organiza um assalto a um banco, enquanto que o assassino da noiva de Vern descobre que este está atrás dele e tenta matá-lo, em vão. Vern encara o assassino mas o xerife chega primeiro e o prende. Mas os demais bandidos do rancho libertam o assassino. Vern vai entregar a parte dela no assalto e abre o jogo com Keane, reclamando que ela abriga bandidos e o assassino de sua noiva. Keane pretende deixar tudo, mas Frenchy chega, tentando demovê-la. Os demais bandidos, liderados pelo assassino da noiva de Vern chegam e querem todo o dinheiro do assalto. Um tiroteio generalizado começa, provocando a morte de quase todos, com exceção de Vern, Frenchy e alguns bandidos que são dominados. Keane é alvejada e morre. O filme termina com os dois homens que disputaram Keane indo embora juntos e a canção que permeia todo o filme dizendo que os dois lutaram até a morte.
Esse foi o primeiro Western que tem uma canção que “conta” a história, somente a título de curiosidade. Reza a lenda, também, que o relacionamento entre Dietrich e Lang não foi dos melhores durante as filmagens. A atriz, inclusive, se referia a Lang como um “homem horrível”. E é um Western que joga para escanteio o “happy end”, pois a mulher disputada pelos protagonistas morre no tiroteio. Mulher essa que assume uma posição forte e independente na época, com a ajuda de Frenchy, mas é colocada numa incômoda posição na trama, pois ela usa o seu rancho para abrigar foras-da-lei e facínoras de toda a espécie. Quando ela abre os olhos para seus malfeitos em virtude da caçada de Vern, já é tarde e ela acaba vitimada pelo tiroteio provocado pelos varões que ela abrigava em sua casa, tal como se fosse uma espécie de punição por sua vida de crimes e por sua “empáfia” em ser uma mulher forte numa terra e época onde os homens davam as cartas. Esse é um dos motivos pelos quais odeio o título em português do filme, pois somente aumenta a visão ultramachista sobre a ousadia da personagem Keane na película. E aí, temos um desfecho deprimente, com Vern e Frenchy abandonando juntos o rancho e ainda com a música dizendo que os dois morreram em duelo, algo que pode ter acontecido depois do final da película, ou somente caiu no campo da lenda, já que os dois desapareceram juntos. Pelo menos, ficou aqui a impressão de que Lang mais uma vez deixou a sua visão de que “a morte não é uma solução”, pois a vingança, tão corriqueira nos Westerns, não apresentou qualquer resultado positivo aqui, já que Keane, disputada por dois homens, morre ao final. Talvez nem tão disputada assim, pois Vern apenas cortejava Keane para pôr em prática o seu plano de vingança. Ou seja, uma mulher mais velha, que se apaixonou por um rapaz mais novo, ainda teve essa decepção de se sentir usada por ele. Tudo isso perante um Frenchy que realmente a amava e ficava submisso a ela.
Dessa forma, “O Diabo Feito Mulher” é mais um Western de Lang que questiona a vingança corriqueira dos Westerns e, se mostra a personagem de Dietrich como uma mulher forte que comanda muitos homens, também pune essa mesma personagem por sua empáfia de desafiar uma cultura ultramachista como a do Velho Oeste Americano. Um filme para refletir, e muito. Infelizmente, não foi achada uma versão na íntegra no Youtube. Fique com o trailer do filme.
Dentre as nossas análises de filmes de Fritz Lang, vamos para a única película que ele filmou na França, depois de ter fugido da Alemanha Nazista. “Coração Vadio” (“Liliom”, 1934), é um filme estranho, para dizer o mínimo, pois ele começa com uma pegada muito realista para terminar com um lúdico de amargo gosto real. Para podermos falar desse filme, vamos precisar liberar os spoilers de oitenta e seis anos.
Vemos aqui a trajetória de Liliom (interpretado por um jovem e vigoroso Charles Boyer), cujo trabalho é atrair clientes para o carrossel de um parque de diversões. Um dia, ele começa a flertar com uma jovem, Julie (interpretada por Madeleine Ozeray), despertando ciúmes na patroa de Liliom, a Madame Moscat (interpretada por Florelle). Liliom perde seu emprego e começa a viver com Julie e a tia da moça. Enquanto Julie faz as tarefas pesadas da casa e trabalha para sustentá-la, Liliom leva uma vida malandra e boêmia, maltratando a moça a agredindo-a. Ele está perto de desistir de Julie quando descobre que ela está grávida e fica muito feliz com a possibilidade de ter um filho. Só que, agora, ele vai ter que arrumar dinheiro de algum jeito. E aceita a sugestão de um amigo para praticar um assalto. Mas o plano vai por água abaixo e, perseguido pela polícia, Liliom se mata com uma facada no peito. Quando chega ao céu, dá de cara com o comissário de polícia que constantemente o chamava para a delegacia na Terra. Para os pobres, não há a presença de Deus, somente os rigores da justiça, assim como na Terra. Liliom passará por um interrogatório para se justificar por que agredia a sua esposa e por que se suicidou quando ela mais precisava dele. Ficou claro que Liliom se arrependeu do que fez, mas mesmo assim ele não foi poupado de ficar dezesseis anos no purgatório para depois ter direito a um dia na Terra para falar com sua filha. O tempo passou e um envelhecido Liliom foi para a Terra e encontrou com sua filha (também interpretada por Madeleine Ozeray). A moça diz que não conheceu o pai. Sua mãe diz que ele é um excelente pai e foi para os Estados Unidos. Liliom diz a ela a verdade, falando que seu pai era ruim e agredia sua mãe. A menina, indignada, se afasta de Liliom. Enquanto vemos nosso protagonista agindo na Terra, um anjo e um demônio jogam pesos numa espécie de balança celestial onde o lado que pender mais definirá o destino de Lilion (céu ou inferno). À medida que a filha dele ficava mais irada com suas palavras, o peso para o inferno aumentava. Tudo levava a crer que nosso Liliom iria para o inferno, mas, no último momento, a filha de Liliom pergunta à sua mãe Julie se seu pau batia nela. A mãe diz que sim, mas que, mesmo assim, o amava. Então, com esse argumento meio rodriguiano de que mulher gosta de apanhar, a balança pendeu para o lado do bem e nosso Liliom, que descia o cacete em uma moça inocente e indefesa, vai para o céu.
Muito estranho aos nossos olhos, não? Bom, nosso personagem principal não tinha apenas defeitos, mas o argumento que definiu se ele ia para o céu ou para o inferno é que não cola muito hoje. De qualquer forma, a mensagem principal do filme é que os menos favorecidos nunca têm qualquer tipo de chance ou privilégio, seja neste mundo , seja no mundo celestial. A eles somente restam os rigores da lei. Ou seja, temos uma amarga realidade de periferias na grande parte do; filme para depois entrarmos em uma história mais lúdica de um celestial eivado de realidades terrenas amargas. Realmente o machismo latente de Liliom e sua covardia de se suicidar para resolver todos os problemas foram punidos com os dezesseis anos de purgatório, mas ele teve outra chance de se redimir, ficando um dia na Terra com sua filha. E mesmo assim ele deu com os pés nas mãos, não aproveitando a chance. O que o salvou foi a candura pura de sua esposa, que o amava mesmo com os vacilos da parte dele, que a agredia sistematicamente. Julie sim, merece uma passagem ao paraíso. Mas se seu comportamento rodriguiano de amar mesmo apanhando salva Liliom em 1934, dificilmente o faria em 2020. Pelo menos, foi muito legal ver a atuação de Charles Boyer, todo vivaz e vibrante, em oposição total ao homem calado e amuado de “Jardim de Alah”, em sua fase americana, com Marlene Dietrich. E nunca devemos nos esquecer que foi Boyer que inspirou o gambá Pepe, de Looney Tunes, que sempre agarrava a gatinha que ficava com uma mancha acidental de tinta branca em suas costas, não aguentando o cheiro do gambá.
Dessa forma, “Coração Vadio” é um filme estranho. É dito que ele foi um fracasso comercial e foi muito mutilado pelos produtores que extraíram as partes mais “germânicas” do filme, com medo da não aceitação do público francês. Ainda assim, podemos testemunhar o que foi a parceria Fritz Lang – Erich Pommer na França. Infelizmente, não temos o filme para exibir aqui. Fiquem com o trecho da morte de Liliom.
Voltando às nossas análises sobre filmes de Fritz Lang em sua fase alemã, vamos falar de “M, O Vampiro de Düsseldorf” (“M, Eine Stadt Sucht einen Mörder”, 1931). Essa película deu à Lang a sua maturidade política, pois ele chegou a ter boicotadas as gravações de seu filme, pois houve um boato de que ele estaria fazendo um filme contra o governo. Quando ele explicou que estava fazendo “apenas” um filme sobre um assassino de crianças, ele voltou a ter autorização para fazer as gravações. Para podermos analisar esse filme, vamos ter que liberar os spoilers de oitenta e nove anos.
O filme, como já foi dito acima, é sobre um serial killer de crianças, que inferniza a cidade de Düsseldorf. Os atos do assassino incomodam os pais, incomoda a polícia, que precisa fazer incursões que incomodam os moradores da cidade, incomoda o crime organizado, que vê uma presença maior da polícia nas ruas atrapalhando as suas atividades. Há um clima de desconfiança no ar e qualquer um que tome uma atitude minimamente suspeita já é acusado pela população de ser o serial killer. Ou seja, os nervos estão à flor da pele na cidade. É muito curioso perceber todas as estratégias altamente metódicas que a polícia toma para capturar o assassino que, entretanto, são completamente em vão. Já o crime organizado, também muito metódico, tem mais sucesso ao catalogar todos os mendigos da cidade numa rede de informações que acaba chegando ao assassino Hans Beckert (interpretado por Peter Lorre, que depois participaria, no cinema americano, de “Casablanca”). Beckert estava com uma menina quando ele compra um balão com um mendigo cego que nota que o assassino assovia um tema de Edvard Grieg, “Na Gruta do Rei da Montanha” (“M” será o primeiro filme falado de Lang e ele já usa o som com uma importância pronunciada na trama). O mendigo cego, após o assassinato da menina, escuta mais uma vez o assovio e pede para um rapaz segui-lo. Ele vai colocar a letra M (de “Mörder”, assassino) em sua mão e irá encostar sua mão no ombro de Beckert, deixando-o marcado, para uma mais fácil identificação. Beckert notará que está sendo perseguido pelos criminosos da cidade e se esconde num prédio de escritórios que é invadido pelo crime organizado da cidade para aprisioná-lo. Beckert será então levado a julgamento pelo crime organizado da cidade, assistido pela população, que exige a sua cabeça. Beckert diz que comete seus assassinatos orientado por uma espécie de desejo, de voz interior. Seu “advogado de defesa exige que Beckert seja entregue para a justiça, mas a massa quer que ele seja executado ali mesmo, o que acabaria acontecendo se a polícia não conseguisse descobrir o local do julgamento. O filme termina com o Estado julgando Beckert e as mães das crianças assassinadas lamentando que, qualquer que seja o veredicto, isso não trará as crianças de volta. Ou seja, como diz o próprio Lang “A morte não é uma solução”.
O filme é muito inquietante, pois o clima de perseguição ao assassino nos lembra um pouco o antissemitismo. Até a marca M lembra as estrelas de Davi amarelas que os nazistas colocavam nos judeus para marcá-los, mesmo que o filme tenha sido feito em 1931, dois anos antes dos nazistas assumirem o poder. Sabemos que o antissemitismo na Europa não é uma exclusividade nazista e ele já acontecia muito antes de Hitler chegar à chancelaria. Inquietante, também, são as afirmações de Beckert que atribuem seu impulso assassino a algo que o manipula, que o instiga a matar. Seria uma alusão de Lang aos tempos violentos da Republica de Weimar? Uma república combalida, em 1931, pela crise de 1929, e que mostrava todo um exército de mendigos à serviço do crime na caça ao assassino.
Fica uma curiosidade aqui. O fanfarrão inspetor Lohmann, que vemos em “O Testamento do Dr. Mabuse”, já dava o ar de sua graça em “M”, também interpretado por Otto Wernicke. Será Lohmann que irá pressionar um dos punguistas que invadiram o prédio de departamentos e vai conseguir a informação de onde Beckert está.
Dessa forma, “M, O Vampiro de Düsseldorf” é um filme de Lang que mais uma vez dialoga com os dias turbulentos de Weimar. Uma população que está com os nervos à flor da pele, em tempos de severas dificuldades econômicas e uma referência ao antissemitismo. Vale a pena dar uma olhada na película completa legendada em português abaixo.
Dentro das análises dos filmes da fase alemã de Fritz Lang e, encerrando nossa maratona dos quatro filmes do Dr. Mabuse, vamos falar de “Os Mil Olhos do Dr. Mabuse” (“Die 1000 Augen des Dr. Mabuse”, 1960). Depois de dois filmes na década de 20 e um filme em 1933, o maligno personagem volta agora em plena década de 60, renovado e repaginado, interagindo com a tecnologia da época. Para podermos falar desse filme, vamos liberar os spoilers de sessenta anos.
O filme começa com o assassinato de um repórter que será investigado pelo Comissário Kras (interpretado por Gert Fröbe). As investigações levam ao Hotel Luxor, que tem toda uma ligação com uma série de crimes e assassinatos onde os envolvidos têm alguma relação com o Hotel. Nesse hotel, vive um homem que herdou as práticas do Dr. Mabuse, usando circuitos internos de câmeras e TV para controlar todo o Hotel, com uma rede de capangas o ajudando. O Comissário Kras investiga três suspeitos que podem ter alguma relação com todos esses crimes: uma jovem suicida, Marion Mehil (interpretada por Dawn Addams), Cornelius, um cego vidente (interpretado por Wolfgang Preiss), e Hyeronimous Mistelzweig, um corretor de seguros (interpretado por Werner Peters). Temos, ainda, o americano Henry Travers (interpretado por Peter van Eyck), um milionário dono de usinas nucleares, que se apaixona por Mehil. Dentre as investigações de Kras, vemos tentativas de assassinato ao Comissário, explosões de usinas nucleares, e muito uso da tecnologia eletrônica da época para a espionagem, ocorrendo um verdadeiro jogo de gato e rato em torno desses três suspeitos principais, com direito a plot twists aqui e ali, até que descobrimos o herdeiro de Mabuse, que é Cornelius, mas também o médico particular de Marion, ou seja, mais uma vez a questão dos disfarces de Mabuse, que acaba morrendo depois que seu carro cai de uma ponte num rio durante uma perseguição policial.
Esse é um filme que retoma o espírito dos filmes anteriores, com uma trama policial intrincada, onde a quadrilha do gênio do crime age de forma mais oculta. Somente um dos capangas de Mabuse se revela desde o início do filme. Os outros são personagens secundários do filme que somente se revelam capangas nos momentos derradeiros da película.
É curioso ver como esse Mabuse da década de 60 lança mão de toda a tecnologia da época para cometer seus crimes. Ele usa um hotel com toda uma parafernália eletrônica para controlar todo o ambiente, além de usar uma arma de última geração criada pelo exército americano para cometer seus assassinatos. Mabuse também tem novos alvos nesses tempos modernos: as usinas nucleares, capazes de estragos muito mais apocalípticos. Ou seja, se a tecnologia traz possibilidades de muitos progressos, o mau uso delas também traz muitas possibilidades de destruição. O filme também deixa claro que os crimes de Mabuse caíram no esquecimento em virtude de um motivo muito pertinente: os horrores do nazismo, que foram muito maiores que os tentáculos de Mabuse.
Falemos dos personagens principais. Quanto ao chefe policial que investiga o caso, o Comissário Kras, este não tem o estilo fanfarrão de Lohman em “O Testamento do Dr. Mabuse”, embora não tenha uma lisura total de um Wenck. Talvez ele esteja numa espécie de meio termo entre os outros policiais das outras películas de Mabuse. A parte ocultista e expressionista ficou por conta de Cornelius que, antes de se revelar Mabuse, impressionava por seus dons premonitórios e seus hipnotizantes olhos brancos. Já Mistelzweig se destaca por sua inconveniência e Mehil, por seu passado misterioso, assumiu uma postura ambígua, transitando entre a vítima da quadrilha ou uma possível cúmplice. Talvez o personagem menos interessante seja justamente o mocinho do filme, Travers, que serve como uma espécie de escada para toda a trama.
Um detalhe sobre o roteiro. Parece ingênuo um chefe do crime tão inteligente concentrar todas as suas atuações num hotel, o que supostamente facilitaria as investigações da polícia. Mas o hotel do filme tem toda uma simbologia, pois foi erguido pelos nazistas em 1944 e construído de forma a facilitar as atividades de espionagem. Mabuse então usaria esse aparato perfeito para as suas atividades criminosas. Como “O Testamento do Dr. Mabuse” foi proibido pelos nazistas na Alemanha em 1933, agora em 1960, Lang tem a liberdade total de associar seu chefe do crime ao nazismo e ele não perde a possibilidade.
Dessa forma, “Os Mil Olhos do Dr. Mabuse” conseguem dar um desfecho digno a essa série de quatro filmes sobre o gênio do crime, sobretudo pelo uso de uma trama que deu certo nos outros três filmes, acrescida de uma modernização tecnológica e de uma herança nazista (realmente hotéis do tipo que vemos no filme, com aparatos de espionagem, foram construídos pelos nazistas. É incrível como alguns elementos permeiam esses quatro filmes de épocas diferentes, sobretudo o ocultista e expressionista, constituindo-se numa espécie de personagem à parte. E não deixe de ver o filme na íntegra abaixo, legendado em português.