Dando sequência às nossas análises de episódios de Jornada nas Estrelas, retornemos à série clássica para investigar “Onde Nenhum Homem Jamais Esteve”, o segundo piloto de Jornada nas Estrelas que fez a série pegar no tranco e se transformar em todo o Universo que conhecemos. Sabemos como é, todos merecem uma segunda chance.
E qual é o plot? A Enterprise recebe um sinal de socorro de uma nave perdida há mais de dois séculos. Spock e Kirk jogam xadrez tridimensional e sabemos o basicão do vulcano: ele não tem emoções humanas, mas é filho de uma terráquea com um vulcano. Uma espécie de sonda muito pequena é detectada e teletransportada para dentro da nave por um Scott que é mais um figurante do que personagem. A sonda guarda informações da nave em que estava e é expelida antes da nave explodir. Kirk ordena que a sonda seja ligada ao computador da nave para se ver quais são as informações em suas “fitas”.
Kirk e Spock vão para a ponte e, na navegação está o senhor Mitchell (interpretado por Gary Lockwood, que trabalhou em “2001, Uma Odisseia no Espaço”). Kirk ordena que a nave saia de dobra e deixa a tripulação à parte da sonda da antiga nave S. S. Valiant. Ele recebe uma equipe de membros da tripulação (onde temos um Sulu calado como um bom figurante) e, entre esses membros está a psiquiatra Dra. Dehner, cuja missão é verificar a reação da tripulação em emergências. Mitchell joga um gracejo para Dehner e esta o coloca em seu lugar. Ao receber o fora, fala com o colega ao lado que a doutora é um congelador ambulante, por não ter caído no seu gracejo, em mais uma manifestação machista da década de 60, como já vista em outros episódios de TOS. Spock lê os dados da sonda e descobre que a S. S. Valiant interagiu com uma espécie de grande força desconhecida que atiçou a percepção extrassensorial (PES) dos tripulantes, sendo que, ao final, o capitão mandou destruir a nave.
Kirk ordena que a nave entre em dobra 1 e ela atravessa uma espécie de barreira que tem algo que é detectado pela nave, mas não é sabido muito bem o que é. Mitchell e Dehner são atingidos por uma força desconhecida e perdem os sentidos. A Enterprise atravessa a barreira. Houve nove mortos nessa passagem da Enterprise pela barreira, sinal que os roteiristas carregavam nas tintas no início da série (o KIrk nem ficou tão abalado assim, justamente ele, que pira na batatinha quando perde um tripulante). Mitchell acorda e está com os olhos totalmente prateados.
A Enterprise está sem força de dobra e KIrk se pergunta o que aconteceu com a Valiant, já que ela também atravessou a barreira. Só foram atingidos pela energia desconhecida aqueles que tinham percepção extrassensorial, ou seja, os nove tripulantes que morreram, Dehner e Mitchell. Os dois últimos tinham alta PES e não morreram. Mitchell, com a maior PES de todas, ficou com os olhos prateados. Kirk e Spock desconfiam desse dom de Dehner e Mitchell.
Kirk visita Mitchell na enfermaria e este diz que está se sentindo bem e quer voltar ao seu posto. Ele está estranho, meio desafiante, meio petulante. E lendo filosofia de forma muito rápida. Kirk ordena a Spock que se façam exames completos em Mitchell e que ele seja vigiado.
Dehner visita Mitchell e esse tenta impressioná-la alterando as leituras do seu corpo. Um outro tripulante que conserta a nave o visita e Mitchell recomenda os consertos certos lendo a mente do tripulante. Este reporta a situação na sala de reuniões para Kirk e os demais tripulantes. Dehner entra na sala determinada a defender Mitchell, mas Kirk, Spock e os demais mostram grande preocupação com o crescimento das habilidades de Mitchell, que pode afetar severamente a segurança da nave. Quando a reunião termina, Spock dá duas opções ao capitão: ou deixar Mitchell sozinho num planeta minerador (Delta Vega, onde eles tentarão obter o dilítio para recuperar o motor de dobra), ou matá-lo. Kirk decide pela primeira opção. Devemos nos lembrar que o personagem de Spock ainda estava em desenvolvimento e essa opção por matar Mitchell estava em sua pura visão lógica dos fatos para proteger a Enterprise. Nimoy não gostou nada disso e, como veríamos mais tarde, o vulcano teria a chance de abraçar opções muito mais fraternais e multiculturalistas (leia-se a Horta; mas isso é em outro episódio que será discutido no momento oportuno).
O grande problema é que Mitchell já sabe dos planos contra ele e, ao ser recebido por Kirk, Spock e Dehner na enfermaria, joga uns raiozinhos no capitão e no primeiro oficial. Mas conseguem imobilizá-lo e sedá-lo. Todos eles descem para a superfície do planeta, cujas instalações mineradoras parecem a fachada do Palácio da Alvorada, em Brasília. Mitchell é confinado a uma cela com campo de força e fala de forma ameaçadora com os demais, dizendo que é melhor realmente matá-lo. Ele se joga contra o campo de force e, enfraquecido volta ao normal por uns segundos (seus olhos passam a ser o que eram antes), mas logo se recupera, dizendo que vai ficar cada vez mais forte. E, quando isso acontece, Mitchell mata um tripulante, joga mais uns raiozinhos em Kirk e Spock e passa a controlar a Dra. Dehmer, alem de desligar o campo de força da cela. A doutora também fica com os olhos prateados. Eles fogem. Kirk é reanimado pelo médico e vai atrás de Mitchell e Dehner. Ao encontrar com eles, Kirk tenta convencer Dehmer a voltar a ser psiquiatra e dar um prognóstico a Mitchell. Este, já se sentindo um deus e totalmente corrompido pelo poder, deixa clara toda a sua arrogância e Kirk mostra isso a Dehmer, que joga uns raiozinhos em Mitchell, que responde o fogo e se enfraquece. É a deixa para Kirk entrar em luta corporal com Mitchell, ficar com marcas de sangue, camisa rasgada, etc. Ao fim, Kirk consegue, com um rifle phaser, atirar numas pedras que soterram e matam Mitchell. Quando Kirk vai prestar assistência a Dehmer, ela também morre, dizendo, em suas últimas palavras a Kirk, que ele não sabe o que é estar perto de ser um deus.
Na ponte, Kirk, registra que Dehmer e Mitchell morreram no cumprimento do dever, pois não foi por vontade deles tudo o que aconteceu. Spock diz que lamenta também a morte dos dois. Kirk diz a Spock que ainda pode haver uma esperança para ele, já que ele expressou ali uma emoção. Fim do episódio.
O que podemos dizer do novo episódio piloto de TOS “Onde Nenhum Homem Jamais Esteve”? Em primeiro lugar, esse episódio foi possível depois do rejeitado “The Cage”, pois o pessoal da NBC decidiu dar uma segunda chance, já que eles mesmos haviam aprovado o roteiro que depois acharam muito cerebral com a execução do episódio. Assim, “Onde Nenhum Homem Jamais Esteve” foi executado tendo somente Leonard Nimoy e Majel Barrett do episódio original. Houve, de cara, uma preocupação em construir o personagem Spock, o alienígena de orelhas pontudas que assustava os puritanos WASPs por se parecer com o demônio. Já sabemos, nos primeiros minutos, que Spock parece não ter emoções, mas é um mestiço alienígena, pois sua mãe é terráquea. A frieza vulcana é até mal vista ao longo do episódio quando Spock dá a Kirk apenas duas alternativas para salvar a nave e a tripulação de Mitchell: ou abandoná-lo num planeta deserto ou matá-lo. Kirk aceita a primeira alternativa, mas não sem muita relutância. Pelo menos, ao final do episódio, com a morte de Mitchell e as palavras de lamento de Spock, Kirk disse que o vulcano ainda poderia ter salvação, como realmente o teve posteriormente. De qualquer forma, analisando toda a crise de forma fria e pragmática, não podemos deixar de concordar que Spock tinha a sua razão.
Esse foi também um episódio que falou muito de percepção extrassensorial, um assunto que parecia estar muito em voga naqueles anos. Eu me lembro muito bem quando Uri Geller veio ao Brasil, uns dez anos depois de “Onde Nenhum Homem Jamais Esteve”, e ficava entortando colheres e garfos na TV usando a força da mente (depois falaram que era tudo uma tremenda duma mutreta). No caso, a percepção extrassensorial tinha origem na grande barreira e funcionava como a vilã da história, pois dava ao ser humano poderes ilimitados que o corrompiam totalmente, tornando-se verdadeiros deuses que usavam de forma completamente imoral o poder que tinham. E aí está a grande reflexão do episódio: até onde o ser humano está preparado para assumir um grande poder e, consequentemente, uma grande responsabilidade? Era Jornada nas Estrelas dando mais uma vez o cartão de visitas. Se em “The Cage” a execução do episódio foi mais cerebral, em “Onde Nenhum Homem Jamais Esteve”, houve a preocupação de se enxertar mais cenas de ação para o espetáculo televisivo, mas essa reflexão sobre poder absoluto que corrompe absolutamente estava lá nas entrelinhas.
No mais, vemos futuros personagens em participações tão furtivas que mais pareciam figurantes, leia-se Scott e Sulu, com pouquíssimas falas, mas que já estavam ali juntamente com Kirk e Spock. Nada de Uhura e McCoy, entretanto. Aliás, o médico era outro, Mark Piper (interpretado por Paul Fix).
Assim, “Onde Nenhum Homem Jamais Esteve” pode ser descrito como um episódio que começava a construir Jornada nas Estrelas tal como conhecemos. Questões reflexivas, as cenas de ação que a TV exigia, os personagens de TOS que depois seríamos bem íntimos, um machismo latente da década de 60 que insistia em dar o ar de sua (des)graça, etc. O mais divertido aqui será ver como cada pecinha dessas foi se alocando nesse quebra-cabeça com o passar dos episódios.