Dando sequência às nossas análises de episódios de Jornada nas Estrelas, revisitemos Voyager no quarto episódio da primeira temporada, intitulado Fagia.
Qual é o plot desse episódio? A Voyager se aproxima, por indicação de Neelix, de um planetóide Classe M rico em dilítio. Quando o grupo avançado desce ao planetóide, suas cavernas parecem totalmente naturais aos olhos do grupo, mas na verdade há toda uma construção com uma espécie alienígena. Neelix, em sua busca por dilítio, encontra um dos alienígenas, que o alveja com uma pistola de raios. Chakotay e Kim o levam para a enfermaria e o Doutor, depois de sedá-lo, constata que Neelix não tem mais seus pulmões e morrerá em cerca de uma hora, depois que a oxigenação que o Doutor fez no corpo de Neelix acabar. A única opção é Neelix ter implantado seu pulmão de volta. Janeway, Tuvok e Kim voltam ao planetóide para isso e descobrem a construção depois de perceberem uma diferença de temperatura nas rochas e desfazer o campo de força com um phaser.
O Doutor, usando o padrão de Neelix do teletransporte, cria um pulmão holográfico para mantê-lo vivo, mas em estado vegetativo. Kes, que está na enfermaria, aceita essa intervenção, pois a alternativa é a morte de Neelix. A implementação do pulmão holográfico é um sucesso. Neelix recobra consciência e ele fica sabendo de sua condição. Sua reação é ele zoar o teto da enfermaria e perguntar para o Doutor se ele não sabe cantar (olha só, no quarto episódio da primeira temporada). Mal humorado, o Doutor não responde às brincadeiras. Neelix demonstra ciúmes para com Kes, pois Paris está a apoiando nessa situação drástica. Kes diz que Neelix esta com medo do que está acontecendo e que não é para ele se preocupar.
O grupo avançado descobriu um laboratório e os tricorders mostram que os sinais de dilítio vêm desse laboratório, que tem uma série de órgãos guardados, mas os pulmões de Neelix não estão lá. Janeway descobre que uma forma de vida esteve no laboratório há poucos minutos e o grupo avançado vai atrás dela. Eles encontram o alienígena, que consegue fugir para a sua nave e entrar em dobra. Janeway ordena o teletransporte do grupo avançado e a perseguição à nave em dobra máxima. O alienígena deixou para trás um dispositivo que parece ter a função de extrair órgãos de seres vivos.
Neelix fica muito ansioso por estar preso ao pulmão holográfico e começa a hiperventilar. O Doutor é obrigado a sedá-lo e chama Kes para acalmar o talaxiano. Kes pergunta se o Doutor está bem e ele se mostra incomodado por ser uma unidade médica de emergência que não está preparada para amparar psicologicamente um paciente na condição de Neelix. Kes diz ao Doutor que ele está indo muito bem e que pode aprender, com sua experiência a suprir essa deficiência.
A nave perseguida pela Voyager sai de dobra e entra num asteróide. Janeway decide levar a Voyager também para o interior do asteróide. A nave entra numa grande câmara dentro do asteróide e eles veem várias imagens da Voyager e da nave alienígena, que são uma espécie de reflexão das naves originais. As naceles de dobra da Voyager passaram a ter a sua energia drenada pela câmara. Kim acha as coordenadas e Janeway manda dar um tiro de phaser enfraquecido nessas coordenadas somente para identificar a nave alienígena e não provocar danos na Voyager caso o phaser ricocheteie e atinja a nave. Eles acham a nave com dois sinais de vida e Janeway ordena que se trave o teletransporte neles. Eles são os vidianos, que precisam roubar órgãos de outras espécies, já que são atacados por microorganismos que consomem seus corpos. Janeway pede o pulmão de Neelix de volta, mas ele já foi enxertado em um dos vidianos. Os vidianos falam que a capitã não pode entender a situação, pois os vidianos eram um povo educador e amante das artes e teve que tomar atitudes tão deploráveis para poder sobreviver. Janeway diz que, agora está numa escolha muito difícil, pois não sabe como vai escolher entre a vida de Neelix ou do vidiano, pois isso é deplorável na cultura dela. Ela, inclusive, por estar muito longe da Terra, nem pode prendê-los e levar a julgamento. Assim, ela só tem uma alternativa, que é deixar os vidianos irem embora. Mas, caso eles voltem para roubar órgãos, ela vai responder enérgica e mortalmente. O vidiano que está com o pulmão de Neelix, diz que quer ver o talaxiano, pois a medicina dos vidianos é muito avançada e pode fazer algo. Janeway concorda. Os vidianos percebem que um pulmão pode ser doado para Neelix com todas as adaptações necessárias que eles sabem fazer. Kes se oferece para a doação. A operação é um sucesso e o episódio termina com o Doutor dizendo a Kes, ainda no leito da enfermaria, que ele conseguiu a autorização de Janeway para treinar a moça como assistente de enfermaria. A ocampa agradece ao Doutor e o Doutor agradece a ela, pois a moça o fez pensar em muitas coisas. Fim do episódio.
O que podemos falar do episódio “Fagia”? Em primeiro lugar, temos um excelente episódio aqui. Devo confessar uma coisa: sempre gostei muito do Neelix. Apesar de muitas pessoas acharem que o talaxiano é um chato, ele tem um espírito altamente altruísta e, na minha modesta opinião, ele é o personagem que encarna com mais perfeição os ideais utópicos da Federação, pois sempre está às ordens para ajudar a todos. E aí, vemos Neelix preso numa cama de enfermaria e isso pode acontecer para o resto da vida. É Jornada nas Estrelas trabalhando, mais uma vez por metáforas, questões da vida real, pois sabemos da existência de pacientes em estados vegetativos e fica a questão de se praticar ou não a eutanásia neles. No caso de Neelix, ele desejou a sua morte ao invés de ficar num estado vegetativo. E o Doutor, um holograma com uma multiplicidade de programas médicos, não sabia como tratar de forma mais humana um paciente nessa situação. O toque para isso veio justamente com Kes, que ajuda o Doutor a lidar com essa situação e, consequentemente, ele quer a Ocampa por perto, para ser a sua assistente na enfermaria. Ou seja, foi um baita dum episódio de construção desses três personagens (Neelix, o Doutor e Kes). Hoje, sabendo o que aconteceu com a personagem Ocampa na série, a gente lamenta muito que Kes não tenha dado certo na série depois que vemos um episódio tão bem escrito como esse.
Mas o episódio foi além. A introdução dos vidianos na série trouxe junto um pesado dilema moral que é a reflexão principal do episódio. Tidos como uma civilização amante da educação e das artes, a bactéria que destrói o corpo dos vidianos os mergulhou numa barbárie imperdoável na luta pela sobrevivência, que é roubar órgãos de outros seres para garantir a manutenção de seus corpos. Janeway entende a situação dolorosa dos vidianos e lamenta profundamente o que aconteceu com eles, mas não dá para perdoar a atitude de destruir a vida de um ser vivo para salvar a de outro. E a força das circunstâncias a obrigou a fazer escolha semelhante, o que a deixou profundamente revoltada com a espécie vidiana, a ponto dela ameaçá-los de morte caso se deparasse com eles de novo. È a distopia dando o ar de sua graça em Voyager já no seu quarto episódio. A situação é tão dramática e sem solução aparente que até o vidiano que recebeu o corpo de Neelix aceita a pena de morte caso seja a solução da querela. Só que isso não alivia a complexidade da questão, não havendo uma saída que não provoque dor. Qualquer que seja a opção para tentar resolver o que vemos vai provocar alguma dor em algum lugar. Um problema praticamente insolúvel, que foi muito bem pensado antes de ser escrito (foi um episódio escrito por Skye Dent, Brannon Braga e Tim de Haas).
Dessa forma, podemos dizer que “Fagia” é um episódio de excelente qualidade de Jornada nas Estrelas Voyager, pois fez um bom trabalho de construção de três personagens (Neelix, Kes e o Doutor) e ainda levantou uma reflexão de uma questão de ordem moral completamente insolúvel, num dilema que não nos deixa alheios e que mostra Janeway nos primeiros passos para uma distopia na série. Esse episódio merece demais ser revisto, dada a sua grande qualidade.