Dando sequência às nossas análises de filmes que concorrem ao Oscar 2021, vamos falar hoje de mais uma película que está no Netflix, “Crip Camp, Revolução Pela Inclusão”, que concorre à estatueta de Melhor Documentário. Para podermos falar sobre esse filme, vamos precisar de spoilers.
Vemos aqui a história da luta dos portadores de necessidades especiais por acessibilidade nos Estados Unidos durante as décadas de 70 e 80. Mas tudo começa no início da década de 70, quando vários portadores de necessidades especiais se conheceram no campo Jened, uma espécie de colônia de férias para portadores de necessidades especiais que funcionava de forma experimental, onde vários hippies administravam o campo. Lá, esses portadores finalmente conheceram a inclusão social e eram tratados com o respeito que sempre mereceram, não sendo vistos como um peso ou com pena. Os hippies deram aos portadores uma vida muito feliz, com direito a esportes, música e até amor livre, o que gerou uma “epidemia” de piolhos na região do púbis. O Campo Jened seria o balão de ensaio para criar toda uma geração de portadores de necessidades especiais que teria um papel de muita importância na luta pelos direitos civis, reivindicando a acessibilidade em universidades, hospitais, prédios públicos, etc. A luta foi muito tortuosa e inglória, com direito a ocupação de prédios públicos por muitos dias e viagens à Washington para pressionar políticos, inclusive o próprio presidente dos Estados Unidos na época, Jimmy Carter. Aliás, o filme deixa bem claro que, independentemente do partido político que o presidente fizesse parte, o trato com os portadores de necessidades especiais nunca foi satisfatório, com leis que não eram aprovadas e, quando aprovadas, não eram cumpridas. Essa luta continua até hoje e, mesmo com a idade avançada, a geração do Campo Jened ainda tem um papel fundamental nessa luta.
É um documentário simplesmente maravilhoso. Produzido, dentre outros, por Barack e Michelle Obama, podemos ver imagens caseiras em preto e branco do Campo Jened e de como sua geração se forjou naquela época. Surgia em destaque a figura de Judith Heumann que, desde cedo, tomou uma posição de liderança no campo, fazendo uma votação entre as pessoas para se ver o que elas queriam no almoço. Vai ser Judith que, na idade adulta, irá encabeçar todas as lutas pelos direitos civis dos portadores de necessidades especiais, onde a ocupação do prédio público por mais de vinte dias será o ponto alto do documentário, pois tais portadores necessitam de cuidados especiais e, mesmo com todas as dificuldades, eles não arredaram o pé, recebendo a solidariedade e ajuda de vários grupos na luta pelos seus direitos, como os Panteras Negras. Depois de muita luta, eles conseguiram dobrar o governo e conseguiram o direito a acessibilidade, o que tornou possível que muitos deles pudessem até sair para trabalhar. Mas ainda há muito o que fazer, com os portadores tendo que vencer todos os preconceitos que a sociedade tem sobre eles, como o fato de serem encarados como não produtivos numa sociedade que exige tanto que as pessoas produzam como a capitalista. Outra forma de preconceito foi vista no caso de Denise Sherer Jacobson, que, ao sentir fortes dores abdominais, foi operada de apendicite pelo médico, mas o apêndice estava normal. O motivo pelo qual Denise sentia dores foi uma gonorreia que ela contraiu, mas o médico não acreditava que ela podia ter uma vida sexual, por ser portadora de necessidades especiais e, portanto, “feia”. Denise vai superar isso voltando a estudar e fazendo um mestrado em sexualidade.
A geração de Jened e a forma como ela foi tratada no campo ganham ainda mais importância quando vemos um hospital que cuidava dos portadores de necessidades especiais, com uma carência enorme de funcionários, sendo uma câmara de horrores, onde os pacientes viviam nus, sujos com fezes e urina e altamente subnutridos, pois havia pouca gente para alimentá-los, o que os levava a um definhamento total. Apesar de tudo isso ser denunciado na mídia, o mito dos portadores serem pouco ou nada producentes ainda imperava na sociedade, o que dificultava e muito a luta deles.
Ao fim do documentário, vemos os membros da geração de Jened que ainda estão vivos (muitos deles morreram cedo) voltando ao terreno onde era o campo, que não existe mais e onde há uma construção. Antigos amigos que se reviam tinham um carinho muito grande entre si e para com o lugar. Denise chega a dizer que queria beijar o chão de onde existia o campo, numa prova de que aquela experiência de inclusão foi importante para a vida de muita gente, não somente as que viveram no campo, mas também a de muitos portadores de necessidades especiais que foram beneficiados com as leis aprovadas em virtude da luta da geração de Jened.
Dessa forma, “Crip Camp, A Revolução Pela Inclusão” é um película obrigatória, pois conta a bonita história da luta dos portadores de necessidades especiais feita por uma geração que teve a grande experiência de inclusão no Campo Jened, organizado por um setor marginalizado pelos setores mais conservadores da sociedade, que são os hippies. A gente se emociona e tem um carinho todo especial por esses personagens reais.