Um filme levemente tenso e um tanto intrigante. “Cézanne e Eu” fala da amizade entre o pintor Paul Cézanne e o escritor Emile Zola, que se estendeu por praticamente toda a vida dos dois. Esse é um filme que exige uma certa atenção do espectador, pois se prende demais nos diálogos entre os personagens protagonistas. Zola, um crítico ácido da burguesia, era uma pessoa contida e tímida. Já Cézanne tinha uma natureza bem mais vibrante e conflitante, arrumando brigas com meio mundo, não gostando de ninguém nem de si próprio. Apesar de ser um filme sobre uma amizade de toda uma vida, essa amizade não tinha nada de colorida, muito pelo contrário, pois nossos artistas brigavam como gato e rato depois de uma certa altura da vida, embora sempre nutrissem um afeto um pelo outro.
De qualquer forma, cada um pisava na bola de seu jeito. Se Cézanne era uma pessoa difícil e de temperamento explosivo, sendo pouco sociável e arrumando brigas com todos, o que aumentava ainda mais o seu arrependimento por suas atitudes e a sua compulsão por isolamento, por outro lado, Zola, ao conversar com outras pessoas sobre Cézanne, não poupava críticas aos defeitos do amigo, ao bom estilo de “falar mal pelas costas”. Como Cézanne escutou às escondidas algumas dessas conversas, tais palavras feriam diretamente o seu coração e o levavam a se esconder ainda mais do mundo. Esses momentos de sofrimento de Cézanne foram muito marcantes e doíam diretamente na gente.
Com essa breve explanação do filme, dá até para adivinhar qual ator se destacou mais. Guillaume Canet fez um bom Zola, centrado, contido, sóbrio, mas que também podia ser muito cínico e expansivo em alguns momentos, beirando a crueldade. Mas o grande nome do filme é, sem qualquer sombra de dúvida, Guillaume Gallienne. Seu Cézanne rouba totalmente a cena, seja nos dias de juventude, meia idade ou velhice.
Sua atuação foi intensa e vibrante, convencendo totalmente em seus momentos de alegria, tristeza, raiva, depressão ou melancolia. Por mais que Gallienne se esgoelasse tentando ser o mais intenso possível como seu personagem exigia, nada era mais poderoso que a força de seu olhar nos seus momentos de melancolia, vencido pela baixa autoestima e pela própria vida. É pela interpretação de Guillaume Gallienne que esse filme, relativamente enfadonho e lento, vale o ingresso. Há de se destacar, também, a forte fotografia, principalmente nas cenas de campo, onde a paisagem da imagem final do filme se mescla maravilhosamente com um quadro de Cézanne, numa linda plasticidade.
Assim, se “Cézanne e Eu” poderia ser menos denso nos diálogos, sem perder a erudição presente nos protagonistas, por outro lado mostrou uma atuação primorosa dos atores que faziam os papéis principais, com um destaque todo especial para Guillaume Gallienne, que rouba totalmente a cena. Típico filme de se ver pelo ator. Vale a pena dar uma conferida.
“Bacurau”,
de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, foi um filme que provocou grande
estardalhaço antes mesmo de sua estreia, pois ganhou o prêmio do júri em Cannes
e faz alusões aos dias autoritários em que temos vivido. Tudo isso criou um
clima de curiosidade em torno da película que foi sanado depois de sua estreia.
Para analisarmos o filme, vamos lançar mão de spoilers aqui.
Mas, no que consiste o plot do filme? Em primeiro lugar, ele se passa “daqui a alguns anos”, ou seja, num futuro não muito distante, mais exatamente no Oeste de Pernambuco, numa pequena cidadezinha de nome Bacurau. Como muitas cidades nordestinas, ela sofre com a crônica falta d’água, mas tem um estrato cultural muito forte, assim como seu senso de comunidade. Os moradores, por exemplo, repeliam com rispidez o prefeito da cidade, que concorria à reeleição, mas tinha promessas vazias quanto ao problema da água. Um belo dia, vários cavalos soltos de uma fazenda próxima invadiram a cidade. Dois moradores foram à fazenda. Ao mesmo tempo, um caminhão pipa chega com perfurações de bala, assim como dois motoqueiros de fora passam pela cidade. Esses três eventos estranhos mudarão para sempre a rotina da cidade, pois estão ligados à presença de americanos que gostam de alvejar as pessoas por esporte e com suas armas antigas somente para descarregar a tensão. Usando a tecnologia, pouco a pouco os americanos riscavam a pequena cidade do mapa: a apagaram do GPS, tiraram o sinal de celular e a energia elétrica, tudo para ter liberdade para exterminar todo mundo sem deixar rastros. De acordo com as circunstâncias, parece que a cidade não terá a menor chance. Mas como a população de Bacurau é muito apegada às suas tradições a ponto de manter um museu na cidade, e essas tradições estavam ligadas a uma quadrilha de cangaceiros, podemos dizer, no popular de hoje, que “deu ruim” para os gringos.
O
filme trabalha uma grande alegoria. O tom distópico encontrado na legenda
inicial “daqui a alguns anos” e nos fuzilamentos do Vale do Anhangabaú,
exibidos ao vivo na televisão ajudam a associar o macrocosmos do Brasil do amanhã
que todos nós tememos com a realidade microcósmica surreal que Bacurau é
obrigada a enfrentar: uma população sob risco de massacre por forças políticas
que usam como cães de guarda americanos belicistas e tresloucados, com o total
desprezo pela vida humana nativa, a quem os americanos associam a macacos. É de
se refletir ao ver todo esse panorama no filme e constatar, na vida real, ligações
um tanto torpes de grupos americanos e brasileiros que têm um projeto um tanto apocalíptico
para nosso país. Pode-se dizer, nesse ponto, que a alegoria funcionou muito
bem.
O
que podemos dizer dos atores? Temos aqui dois medalhões: Sônia Braga e Udo
Kier. A primeira faz Domingas, a médica local, uma personagem muito dura e de
arroubos erráticos, sobretudo na morte da líder local ao início do filme, onde
a doutora aparece bêbada e deprimida no velório. Sei não, mas esse timing não foi
muito bom para a personagem, que adentrou o filme visivelmente transtornada com
a perda e ficou com uma impressão inicial de ser ruim das ideias, quando não era
nada disso (Domingas consegue até ser bem racional). Já Udo Kier faz Michael, o
líder dos americanos zuretas e assassinos. Inicialmente frio, Michael faz um
percurso inverso ao de Domingas, abandonando a sua racionalidade e frieza para
se confirmar como o pior psicopata da trupe americana, matando até alguns de
seus colegas (ou eliminando a concorrência do jogo de “quem mata mais”?). O
encontro desses dois personagens, inevitável para o bom andamento do filme, foi
problemático, pois soou muito falso Michael não executar Domingas. Mas, da
forma que a história foi concebida, parecia não haver muito jeito, pois não dava
para Domingas metralhar Michael ou ela conversar com ele moribundo depois de
baleado, já que ele foi enterrado vivo e seu castigo era definhar consciente
com a falta de comida, água e, principalmente, ar.
Agora,
o grande lance foi o passado cangaceiro de Bacurau, manifesto no museu, que
assumiu tons macabros e salientou a ideia geral de que “contra a violência reinante
em nosso país, ninguém pode”. Mas também foi um embate entre a cultura local e
o intervencionismo estrangeiro, entre a tradição e a modernidade, com o humor
negro do ex-matador Pacote (interpretado por Tomás Aquino) perguntando aos citadinos
se as cabeças decapitadas não foram um exagero. Ainda, com relação à cultura
local, os psicotrópicos que entorpeciam a população também tiveram um destaque
especial, algo meio indígena de conhecimento de plantas locais que ajudou na
empreitada contra os estrangeiros.
Dessa forma, “Bacurau” foi uma grata surpresa, um thriller emocionante e um tanto surreal, que trabalha uma alegoria contemporânea e o embate entre o local e o estrangeiro, a tradição e a modernidade. Um filme que trabalha o tema da resistência, tão em voga nos dias de hoje. Programa imperdível.
Um filme esperado. “Yesterday”, de Danny Boyle, conta uma história engraçadinha usando como personagens principais as músicas dos Beatles. Mas o filme convida a uma reflexão bem ao estilo do “O que aconteceria se…”, da Marvel. O se aqui é exatamente o desaparecimento do sucesso dos Beatles da face da Terra. Para podermos analisar esse filme, vamos lançar mão dos spoilers.
Bem,
vamos ao plot. Jack Malik (interpretado por Himesh Patel) é aquilo que chamamos
por aqui de cantor de churrascaria. Ele sempre procura um lugarzinho para tocar
por uns trocados, recebendo pouquíssima atenção do público, mas é estimulado
pelos poucos amigos e, principalmente por Ellie (interpretada pela “Cinderela”
Lily James), um misto de empresária, amiga de infância e pseudo namorada. Numa
bela noite, Jack volta para casa de bicicleta e é atropelado por um ônibus
enquanto há um pico de energia de dimensões planetárias. O cara vai parar no
hospital sem os dentes da frente, despertando mais graça do que pena. E aí,
enquanto se recupera, ganha de presente de Ellie um violão, e começa a dedilhar
e cantar “Yesterday”, dos Beatles, deixando os amigos maravilhados, que
perguntam que música é aquela. Vai ser nesse momento que Jack percebe que
ninguém sabe mais quem são os Beatles. E aí ele aproveita a oportunidade e
começa a usar as músicas dos Beatles para alavancar a sua carreira, tornando-se
uma estrela mundial. O problema é que o estrelato trará algumas complicações,
como, por exemplo, o afastamento de Ellie de sua vida e a distorção do uso dos
Beatles em função do interesse contemporâneo pelo dinheiro.
O
filme perturba a nossa cabeça, pois ele nos dá a entender que, se os Beatles
tentassem a carreira hoje, eles não teriam muito espaço para algumas de suas
composições, já que, nos dias atuais, há toda uma tecnologia, um imediatismo e
um interesse pelo dinheiro rápido que não está em consonância com os dias mais
prosaicos da década de 60. Por exemplo, o álbum “Sargent Pepper’s Lonely Hearts
Club Band” foi rechaçado pelos empresários de Jack, pois era um título muito
grande e complicado. E o negócio é a rápida absorção, por parte do público, das
músicas para se impulsionar logo as vendas e se ganhar muito dinheiro. Vendo
essa questão levantada pelo filme a gente se pergunta: e nos anos 60? O
empresário dos Beatles também não estava interessado em ganhar dinheiro? É
obvio que sim. Entretanto, o ritmo das coisas e as mídias eram completamente
diferentes, como se elas permitissem mais brechas para uma liberdade criativa.
Uma
coisa que é hilária é que os Beatles não foram os únicos a desaparecer da face
da Terra. Outros ícones tais como a Coca Cola e Harry Potter também não existem
mais. E quando Jack via que as pessoas não conheciam tais ícones, ele saía
correndo em direção a um computador para pesquisar no Google, não encontrando
os resultados corretos. Mas, uma coisa é certa: um mundo sem os Beatles era
muito pior. Foi o que disseram a Jack dois fãs que ainda se lembravam dos
Beatles e que lhes deram o endereço de, ninguém mais, ninguém menos do que John
Lennon, que estava vivo, do alto de seus 78 anos. Jack o visitou e descobriu
que, nessa realidade alternativa, John teve uma vida muito boa e uma velhice
tranquila, sendo a coisa boa desse “O que aconteceria se…”. O mais
impressionante foi ver o ator que interpretou John Lennon, o veterano Robert
Carlyle, que já foi até vilão de filme de James Bond. O cara estava igualzinho.
Os
atores foram bem. Himesh Patel convenceu com o seu tom meio abobalhado e
perplexo pela situação inusitada que passava. E Lily James estava fofíssima e
serelepe, muito à vontade com sua personagem Ellie. Confesso que gostei muito
dela e de sua atuação, mais até do que Patel.
O
filme teve um momento mais lento, justamente quando Jack tentava emplacar as
músicas dos Beatles e a coisa não engrenava inicialmente. O senso comum do personagem
(e o nosso) dizia que o sucesso dos Beatles era algo automático. Mas não foi.
Ou seja, sempre se precisa pastar e correr atrás (como os Beatles correram),
mesmo se você tem obras-primas à mão. Até elas serem reconhecidas, demora. Outro
mito derrubado é o seguinte: mesmo sendo muito popular, não dá para guardar de
cabeça todas as músicas dos Beatles. Jack teve que pagar um dobrado para
relembrar as músicas e suas letras, agora que elas não existiam mais. Nosso
protagonista, inclusive, teve que fazer um tour por Liverpool para refrescar a
memória, o que foi um deleite para os espectadores, pois vários pontos turísticos
de beatlemaníacos apareceram na película.
Dessa forma, “Yesterday” até não é uma coisa de se encher os olhos, mas tem os seus encantos. A gente se diverte com as músicas e com a interpretação do casal protagonista. A gente reflete sobre as chances que os Beatles teriam hoje, num mundo mais controlado pela alta velocidade da informação (olha aí mais uma vez o embate tradição-modernidade, com a primeira sendo elencada como virtuosa). Por essas virtudes, vale a pena dar uma conferida. E não se esqueça de ficar na sala durante todos os créditos finais, pois tem “Hey Jude” cantada pelo Paul McCartney.
A Caixa Cultural do Rio de Janeiro realizou, no ano passado, a mostra “Cinema Centro América”, com uma seleção de vinte títulos do cinema recente da América Central. São produções da Guatemala, Belice, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Panamá. Infelizmente, só pude ver três filmes da mostra. Um desses filmes eu vou me poupar de falar aqui. E, também, por questões de delicadeza, não direi qual é. Já os outros dois foram muito bons e farei uma pequena análise.
O primeiro desses filmes vem da Nicarágua e se chama “La Yuma”, realizado em 2009, de noventa minutos de duração e dirigido por Florence Jaugey. A história se passa em torno da trajetória de Yuma (interpretada por Alma Blanco), uma jovem de vinte anos que mora na periferia, tem um físico forte e deseja ser lutadora de boxe. Seu bairro fica numa zona muito violenta, e seus amigos fazem parte de gangues, sendo que eles acham que, pelo fato de Yuma ser mulher, podem apitar em sua vida. Na casa da mãe, sua progenitora tem um namorado imprestável e pedófilo, que molesta seguidamente a irmãzinha e Yuma. Todo esse ambiente altamente inóspito obriga a nossa protagonista a ser muito braba, dura na queda mesmo. Mas nem tudo são espinhos. Por uma dessas coincidências da vida, ela começa a namorar Ernesto (interpretado por Gabriel Benavides), um jovem de classe média alta, e eles têm um romance altamente idílico. Mas o abismo social entre os dois faz das suas e eles acabam se afastando. Chorar pelos cantos? Jamais! O negócio é enfiar a porrada em quem melou o namoro. Mas o filme, abertamente compromissado com a realidade nesse ponto, não reata o namoro (ainda bem, um “happy end” dessa magnitude não teria espaço aqui). Um alívio cômico bem vindo no filme é a patroa de Yuma. Nossa protagonista, para ganhar a vida, precisa trabalhar numa “tienda” de roupas femininas, tendo inicialmente um pouco de dificuldade para isso, em virtude de seu jeito rude e bronco. Yuma tem uma patroa que atua como uma burguesa implacável com sua empregada em seu início mas, pouco a pouco, seu aspecto mais cômico e bonachão vai tomando conta da personagem e a gente acaba simpatizando com ela.
Uma coisa que chama muito a atenção é o desfecho. Se a diretora optou por um choque de realidade ao longo de todo o filme, no final ela lançou mão de um “happy end”. Mas não um “happy end” clichê como a volta para os braços de Ernesto, mas sim algo mais surpreendente e inusitado, dando um toque altamente lúdico para um filme que foi muito ácido pela denúncia social em quase toda a sua duração. Pode-se dizer que foi uma espécie de “cereja do bolo”.
Assim, “La Yuma” foi uma grata surpresa da Mostra “Cinema Centro América”, que foi organizada pela Caixa Cultural do Rio de Janeiro. Um filme de forte denúncia das más condições de vida das populações menos favorecidas; um filme que mostra a violência das periferias; um filme que mostra o abismo social entre dois amantes; um filme de toque lúdico ao seu final; e um filme de uma personagem forte, muito forte, em todos os sentidos, colocando por terra qualquer tentativa de empoderamento feminino anglo-saxão. A Gal Gadot precisava dar uma conferida nesse filme e conhecer Yuma.
Sempre considerei o cinema iraniano muito bom. Comecei a acompanhá-lo na segunda metade da década de 90, quando vi “O Balão Branco”, de Jafar Panahi. Aí, passei a ver muita coisa e o nosso circuitão passava muitos filmes. Mas alguns incautos passaram a dizer que o cinema iraniano era muito chato, etc., etc. E essa modinha de falar mal do cinema iraniano tirou essas películas de nossas telas. Confesso que amaldiçoo esses incautos até hoje. E assim, os filmes desse país muçulmano somente chegam para nós muito eventualmente. O último que chamou mais a atenção (embora outros tenham sido exibidos por aqui posteriormente) foi justamente “A Separação”, que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, onde o sistema jurídico de um Estado Teocrático penetrava na vida privada das pessoas e embananava muitas coisas. Havia, também, uma relação mais baseada no choque entre classes sociais. Pois bem. Agora chega para nós o curioso “Sem Data, Sem Assinatura”, realizado em 2017 por Valid Jalilvand e confirmando, novamente, o poder e a qualidade desse cinema, numa arte de se contar histórias bem característica e que foge um pouco do que vemos no Ocidente.
A história do filme começa bem simples. Um médico legista, Kaveh Nariman (interpretado por Amir Aghaee) anda com seu carro numa estrada à noite e, depois de abrir caminho para um carro em alta velocidade que resvala em seu espelho retrovisor, ele se choca com uma moto com uma família que vai ao chão. A família tem um menino de oito anos que, ao cair no chão, bate com a cabeça, mas aparentemente está bem. Apesar dos insistentes pedidos do médico em levar o garoto ao hospital, a família segue caminho. No dia seguinte, o médico, que trabalha num hospital que também é uma espécie de IML, recebe a notícia de que um garoto de oito anos com o mesmo nome do menino chega morto e seu corpo está preparado para a autópsia. Paralisado pela notícia, por medo de ter sido a sua culpa a morte do menino, ele omite a história do acidente para os colegas que diagnosticam que o menino morreu por intoxicação alimentar, pois o pai, Moosa (interpretado por Navid Mohammadzadeh), comprou carcaça de frango estragado num abatedouro, pois era mais barato. Desesperado, o pai foi até o abatedouro e agrediu o funcionário que lhe vendeu a carcaça, indo preso. Tudo isso despertou em Nariman o desejo de exumar o filho de Moosa e verificar numa nova autópsia se foi de fato a intoxicação alimentar ou o acidente que matou o menino, pois isso poderia significar a libertação de Mossa, mas também a condenação do próprio Kaveh.
Esse filme tem uma série de características que estão presentes nos filmes iranianos. Em primeiro lugar, uma história que começa com um evento muito simples, mais que vai paulatinamente se complexificando de forma a não saturar o espectador com um enredo enfadonho, muito pelo contrário, ou seja, as histórias do cinema iraniano têm a versatilidade de prender a atenção do espectador com uma volúpia pouco vista em outros cinemas do mundo. A gente fica meio que enfeitiçado pelo que vemos e nem sentimos o tempo passar nessas exibições iranianas. Em segundo lugar, os filmes iranianos não costumam se dividir entre protagonistas e antagonistas. Não há vilões e mocinhos, apenas pessoas normais do dia a dia, com suas virtudes e defeitos, suas coragens e fraquezas, personagens que podem errar não porque querem, mas porque a vida leva a caminhos que podem fatalmente induzir a um erro. E pessoas que sofrem com seus erros. Isso já foi visto claramente em “A Separação”, por exemplo. Cabe dizer aqui que essa característica de se apresentar personagens comuns do dia a dia sem estabelecer-lhes um juízo de valor é que aproxima o cinema do Irã ao neorrealismo italiano.
Outra característica que liga “Sem Data, Sem Assinatura” ao filme “A Separação” é a visão de estratos sociais e suas relações. Vemos aqui a classe médica, de um estrato social mais alto e de hábitos burgueses ocidentalizados interagindo com uma camada social mais baixa, essa ainda vinculada às tradições religiosas de seu país. Aqui, vemos mais um diálogo maniqueísta entre a tradição e a modernidade, enchendo a última de virtudes em detrimento da primeira em seus defeitos. Mas, mais do que isso, vemos esse pensamento mais moderno ligado a uma classe social mais alta, enquanto que as tradições e conservadorismo são uma coisa ligada aos mais pobres. Tal pensamento é um pouco preocupante, pois ele é capaz de criar alguns rótulos e estereótipos que nem sempre funcionam de forma precisa e cartesiana. Pode-se, perfeitamente, existir pessoas de camadas sociais mais baixas sintonizadas com um pensamento mais moderno e ocidentalizado, enquanto que as camadas mais altas também podem ter membros que guardam uma tradição. O perigo de se criar tais estereótipos vai justamente na direção de você colocar os mais ricos como mais cultos e liberais, ao passo que os mais pobres seriam mais “fundamentalistas” e machistas.
Para ainda estabelecer mos uma comparação entre “A Separação” e “Sem Data, Sem Assinatura”, enquanto que o primeiro deixou o final em aberto, onde qualquer desfecho levaria a situações de ganhos e perdas, o segundo tem um desfecho, se bem que nas entrelinhas, permitindo que o espectador raciocine e ligue os pontos para se compreender o desfecho. Ou seja, é um filme que respeita a inteligência de quem o assiste, numa mostra de outra virtude desse maravilhoso cinema que é o iraniano.
Assim, “Sem Data, Sem Assinatura” é um programa altamente recomendável, em virtude da excelência do cinema do Irã. E, em segundo lugar, porque essa película confirma mais uma vez a qualidade do cinema desse país que é tão malvisto pelo Ocidente em função de interesses escusos, mas que abriga uma cultura cinematográfica poderosíssima. Vale a pena dar uma conferida.
Um filme francês pouco convencional. “O Retorno do Herói” traz novamente Jean Dujardin, tão consagrado em “O Artista”, fazendo uma comédia. E uma comédia daquelas bem escrachadas, como poucas vezes vemos nas produções francesas que chegam por aqui. Me arrisco até a dizer que esse filme lembra um pouco o besteirol da década de 80 aqui no Brasil, que chegou ao teatro e à televisão. Isso seria, então, um problema no filme? Não, muito pelo contrário até.
A história da película se passa na França de 1809, onde Charles-Grégoire Neuville (interpretado por Dujardin) pede a mão de Pauline (interpretada por Noémie Merlant) em casamento. Entretanto, ele é chamado para a guerra e promete escrever para a moça. Só que nenhuma carta chega até Pauline, que fica inconsolável. A irmã de Pauline, Elisabeth (interpretada por Mélanie Laurent), revoltada com a patifaria de Neuville, começa a escrever cartas para Pauline assumindo a identidade do militar. Como a mentira já estava indo longe demais, Elisabeth dá um ponto final à farsa, escrevendo uma carta onde Neuville estaria cercado por tropas inimigas e na iminência de morrer. Pauline, depois de chorar rios de lágrimas de forma esganiçada, se casa com outro pretendente. Tudo parecia bem até que Neuville retorna e se traveste de grande herói, aproveitando toda a história criada por Elisabeth. Para que toda a mentira não seja revelada, Elisabeth e Neuville fazem uma espécie de acordo, digamos, turbulento, pois Elisabeth precisava esconder a mentira que ela própria inventou.
Uma coisa que muito chama a atenção no filme são as requintadas locações e figurinos. E aí, o contraste vem quando todo o humor escrachado se manifesta. Parece mesmo que a gente assiste a um programa da “TV Pirata” ou do “Casseta e Planeta Urgente”. E tudo funciona muito bem, pois há tiradas bem engraçadas e até antenadas com o que se tem passado em nossos dias, tais como a discussão de se a mulher deve ou não ganhar a mesma quantidade de dinheiro que um homem. Entretanto, o filme não é composto apenas de situações engraçadas e rápidas. A história em si, um tanto batida e já conhecida (a do vigarista que assume uma identidade falsa e se torna o gostosão da sua área, precisando se virar para manter a farsa) é contada aqui de uma forma cativante, que prende a atenção do público.
Os atores também ajudam. Dujardin, que faz boas comédias (mas também dramas; lembremo-nos de “A Conexão Francesa”), consegue fazer um cafajeste muito engraçado com o qual simpatizamos bem rápido, não sendo algo forçado. Laurent, a irmã séria e que precisa lidar com mau caratismo de Neuville, consegue ser uma boa “escada” para Dujardin e tem também os seus momentos de maior atenção, quando ela tem uma crise histérica que fica muito engraçada ou num jantar onde ela precisa desviar a atenção de um general de Neuville. Noémie Merlant é uma grata surpresa. No papel mais coadjuvante de Pauline, a moça consegue roubar a cena, seja nas explosões de choro como a pretendente abandonada, seja nas explosões de raiva da esposa, ou nas explosões de libido da amante, com tendências masoquistas. Pode-se dizer que Merlant é a grande surpresa do filme.
Por mais curioso que possa parecer, o filme tem em seu ponto mais alto o depoimento de Neuville para o citado general do que é estar no campo de batalha. Com um semblante fechado, ele conta com detalhes todos os horrores da guerra, o que arranca lágrimas das pessoas que estão na mesa (isso acontece durante um jantar). E aí, podemos ver os olhos marejantes dos atores com expressões petrificadas, num momento de grande emoção e plasticidade.
Assim, “O Retorno do Herói” é uma comédia um tanto despretensiosa, mas que dá muito certo pelo seu conteúdo de besteirol que destoa do requinte das locações e figurinos. Um filme de personagens bem construídos e, sobretudo interpretados por bons atores. E um filme com um trunfo que vai além de Dujardin: a boa presença de Noémie Merlant. Vale a pena dar uma conferida.
Mais um filme argentino. “O Futuro Adiante” tem o privilégio de trazer a belíssima Dolores Fonzi entre suas duas protagonistas (a outra é a atriz Pilar Gamboa). Mas, e a história do filme? Bom, não tem nada de muito espetacular. Ela mostra a trajetória da amizade de duas mulheres, da puberdade à separação e às duas filhas que parecem que vão dar continuidade à amizade. De qualquer forma, o filme é dividido em três momentos, cuja duração parece que os contemplou de forma muito equânime. Na adolescência, vemos as meninas muito unidas, com pouquíssimo espaço para desentendimentos. É uma coisa meio lúdica, com tremenda cara de Malhación, o momento mais fofo e tranquilo da película. O segundo momento, entretanto, já mostra algumas rusgas.
Tudo até começa relativamente bem, com Romina (interpretada por Fonzi) recebendo Florencia (interpretada por Gamboa) em sua casa para ficar uns dias. O relacionamento de Florencia com um mexicano ligado ao meio artístico está em frangalhos. Já Romina está bem casada e com uma filha pequena. Dá para perceber que Romina é bem mais centrada. Já Gamboa é meio porra louca, e essa diferença vai meio que afastar as duas. O terceiro momento é marcado pelo divórcio de Romina e agora Florencia está num relacionamento estável e com uma filha. As filhas das duas iniciam uma amizade assim como o fora com as mães que, obviamente, continuam se desentendendo volta e meia. Florencia acha que Romina deveria ser mais desencanada e que deveria aproveitar melhor a sua vida. Mas Romina não gosta da interferência da amiga em sua vida. E o pau quebra. Mas fica a indicação de que a briga sempre é passageira e as duas voltam a se falar.
Após todos esses spoilers descarados (desculpe, caro leitor, fiz de novo), o que a gente pode dizer de bom desse filme? Apesar de rotulado de comédia, o vejo mais como um drama que tem como objeto principal um choque de realidade envolvido no relacionamento de personagens. Muitas pessoas, volta e meia, têm um amigo de infância com o qual mantêm um relacionamento que pode durar décadas e ter altos e baixos. O filme espelha uma relação que não é estranha a muitos de nós e nos vemos na tela em algumas situações. É até interessante isso, pois se passamos por um momento semelhante ao que vemos no filme, ele pode nos ajudar a organizar nossos pensamentos com relação ao amigo de décadas que ainda faz parte das nossas vidas. Assim, mesmo que esse choque de realidade produza até certo ponto uma película enfadonha, ainda assim temos um filme que nos é interessante, pois podemos nos ver em algumas situações ali.
Dessa forma, “O Futuro Adiante”, se não é um filme que enche os olhos, ainda assim é uma interessante atração, pois nos conquista pelas situações que uma amizade de longos anos pode trazer. Se há carinho e afeto, a mágoa e o ressentimento também podem surgir, mas o mais interessante é que a amizade nunca morre. Confesse, leitor, você já não passou por uma situação dessa em sua vida alguma vez? Pelo menos o filme nos dá o conforto de que não estamos sozinhos em nossa jornada tortuosa pelos relacionamentos humanos. E os cuecas podem babar com a Dolores Fonzi. Vale a pena dar uma conferida.
Outro
filme francês vindo do Festival Varilux. “Os Dois Filhos de Joseph” é um filme
família, mas totalmente plugado no universo masculino, já que essa família é
composta de um pai e seus dois filhos. Todos aqui, diga-se de passagem, são
criaturas extremamente problemáticas, o que torna a película conflituosa. Vamos
precisar de spoilers aqui para entender um pouco mais a cabeça dessa família
meio lelé.
Comecemos pelo pai, o Joseph em questão (interpretado por Benoît Poelvoorde). Ele está profundamente abalado pela morte do irmão e procura dar uma espécie de boot na sua vida, largando uma segura carreira de médico para se tornar escritor. O problema é que, quando ele tenta apresentar seus dotes numa apresentação pública numa livraria, é um desastre total e ele fica com uma tremenda cara de bunda, embora ainda consiga uma parceira amorosa.
O filho mais velho, Joaquim (interpretado por Vincent Lacoste), anda perdido para lá e para cá com uma vida amorosa conturbada, e isso o desconcentra para terminar a sua tese na faculdade, recebendo um pito de seu orientador que é amigo próximo de seu pai. E o filho mais novo, o adolescente Ivan (interpretado por Mathieu Capella), acha o irmão e o pai uns bundões e procura colocar suas energias numa paixão não correspondida, sendo meio bundão também. Ou seja, não há qualquer espaço para macho alfa nessa família, mas há espaço para muita terapia.
E a coisa acaba ficando tão existencial que o filme se arrasta, se arrasta e se arrasta, ficando extremamente cansativo. A gente percebe isso quando começa a olhar o relógio no escuro da sala de projeção a cada cinco minutos e se desespera pela hora não estar passando. O pior de tudo é que esse filme trabalha esses três temas e a coisa fica nisso mesmo, com um pequeno envolvimento entre esses três núcleos que se passam praticamente destacados, fora uma ou outra ligação aqui e ali.
E, então, do nada, o filme acaba. E você se pergunta por que passou aquele tempo todo vendo aquela xaropada. Os conflitos entre os personagens principais, os momentos de união entre eles e o cenário extremamente soturno da casa da família, muito escura, ainda dão um toque especial, mas é muito pouco face a forte letargia existencial que veste o filme. Dessa forma, “Os Dois Filhos de Joseph”, apesar de mostrar uma família peculiar, só de homens fracassados, carregou demais nas tintas do existencial e tivemos uma película extremamente morosa e lenta. Uma pena, pois dá a sensação de uma boa ideia que foi mal aproveitada.