Por Carlos Lohse
– Gene!
– O que foi, Fred?
– Está na hora do ensaio.
– Humm, OK, vamos lá. O que vai ser hoje?
– Sapateado, ué…
– De novo? Não fizemos ontem?
– Por seu amigo, Gene.
– Tá certo, Fred, tá certo.
– Então vamos lá. Aqueles mesmos passos de ontem. Um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro, um, dois, opa!
– O que foi, Fred? Fiz errado de novo?
– Não que você tenha feito errado, mas a sincronia das batidas dos nossos pés não ficou perfeita.
– Que ouvido, hein? Às vezes acho que você escuta demais.
– Tem que ser perfeito, Gene.
– É por isso que a Ginger reclamava tanto de você.
– Ela era meio preguiçosa, né, Gene?
– Sei lá, só sei que ela era a namoradinha de muita gente. De todos os que assistiam a nossos filmes.
– Tempos bons da RKO e da Metro, não?
– Ô, nem fale. Fizemos a alegria de muitas pessoas totalmente desesperançadas.
– Que não tinham emprego, dinheiro, que passavam fome.
– Foram tempos muito difíceis.
– Ás vezes me pergunto, Gene. Por que o homem tem essa natureza tão dúbia?
– Como assim?
– Ora, veja só. Aquela crise toda foi produzida por tanta ganância e, ao mesmo tempo, procurávamos dar um pouco de alegria àquelas pessoas.
– Sabe-se lá porque, Fred. Mas que também ganhamos muito dinheiro, nós ganhamos.
– Sente-se culpado?
– Sei lá, Fred! Você está muito filosófico hoje!
– Acho que é toda essa atmosfera etérea que nos envolve.
– Bom, vamos continuar?
– Vamos lá!
– Comece.
– Um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro, opa!
– Ah, não. De novo, Fred?
– Agora quase foi. Faltou um tantinho!
– Quem é o coreógrafo e bailarino aqui? Não sirvo para sapatear?
– Tem que ser…
– Perfeito, já sei.
– Sabe, Gene…
– O que é, Fred?
– Às vezes me pergunto. Fizemos o certo?
– Como assim?
– Não alienamos as pessoas com nossos filmes? Não desviamos a atenção do verdadeiro foco dos problemas delas?
– Não seja duro com você mesmo, Fred. É como diz aquele sul-americano: ser firme, mas sem perder a ternura.
– Você virou revolucionário?
– É claro que não! Só digo que precisamos ser responsáveis, mas com uma pequena dose de irresponsabilidade.
– E os irresponsáveis somos nós aqui, né?
– Claro que sim! Como eu poderia fazer aquela sequência com a Cyd Charisse em “Cantando na Chuva” sem ser irresponsável? Eu tinha que ousar! Mas havia responsabilidade também! O trabalho era muito detalhista, meticuloso, assim como o seu sapateado.
– É, Gene, agora você me tirou um peso das minhas costas,
– Sempre às ordens, Fred. Vamos continuar?
– Sim, mas antes uma pergunta.
– O que é?
– O que vamos fazer amanhã?
– Ensaio de canto com o Frank.
– Isso é covardia! Ele nos exige sempre o máximo das nossas cordas vocais!
– Não reclame, Fred. A minha tarefa, que será fazê-lo dançar na próxima semana, será bem pior.
– Precisávamos reunir a turma toda da RKO e Metro novamente.
– Por que?
– Para fazer um grande musical
– Com qual intuito?
– O de alegrar pessoas tristes, como nos velhos tempos. Vir para cá de uma hora para outra é um grande choque para qualquer um.
– É o curso normal da vida, Fred. Mas podemos pensar num musical sim. Vamos juntar a turma na semana que vem, OK?
– OK. Vamos retomar o ensaio então?
– Vamos lá.
– Um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro. Opa! Olha a falha na sincronia de novo!
– Ai…