Um notável documentário brasileiro passou em nossas telonas há alguns meses. “Pitanga”, cujo título já diz tudo, fala de nosso polivalente e multiversátil ator Antônio Pitanga. Os olhos preconceituosos de nossa sociedade podem até rotulá-lo de “marido da Benedita da Silva” ou “pai da Camila Pitanga”, além do já clássico preconceito já clássico da questão racial ou de suas preferências políticas, este último um tipo de preconceito que, aliás, divide cada vez mais nossa sociedade hoje em dia. Mas esse documentário consegue dar um duro golpe (epa!) em todos esses preconceitos e mostra o verdadeiro talento e, principalmente, a figura humana que é esse grande ator.
O documentário é montado de uma forma extremamente simples e muito feliz. Essa montagem consiste basicamente de Pitanga conversando com todo um rosário de pessoas que participaram de sua vida. E isso alternado com trechos de filmes que ilustravam as conversas. Assim, o próprio Pitanga se tornou o apresentador do documentário e falava de sua vida. Mas a coisa foi feita de um jeito tão informal que nem sentíamos isso. Aliás, parecia que nós, espectadores, estávamos também naquela conversa in loco, o que só ajudou a aumentar ainda mais o clima intimista com o ator.
E quem conversou com a lenda Pitanga? Desde desconhecidos amigos dele até muitas personalidades e lendas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Maria Betânia (com quem teve um de seus muitos affairs), Sérgio Ricardo, isso somente para citarmos parte do meio musical. Mas Neville D’Almeida, diretor de cinema, também estava lá. Atrizes como Ítala Nandi e Tamara Taxman, responsáveis por momentos muito ternos da película, eram outras personalidades. Mas podíamos ver nos papos uma trinca Ney Latorraca, Pitanga e Jards Macalé, ou até uma conversa na casa de Tonico Pereira ou do saudoso Hugo Carvana. Dá para perceber com todas essas personalidades e pelo nível informal das conversas como esse documentário é muito bom.
E qual é a importância de Antônio Pitanga para o cenário artístico brasileiro? Essa é a grande joia do filme, que consegue mostrar isso de forma muito nítida, antes que algum incauto ainda critique Pitanga por puro preconceito. Sua carreira cinematográfica é destrinchada na película e podemos testemunhar que ela é excessivamente prolífica, onde o ator trabalhou com muitos diretores. Muitos de seus filmes abordavam questões raciais e sociais, onde os personagens que Pitanga interpretava eram muito fortes, fazendo o ator se transformar numa espécie de porta-voz dos excluídos. Mas Pitanga não fazia apenas personagens revoltados e ressentidos de sua condição social. Ele também usava um estilo corporal e performático que soava simultaneamente como um grito dos excluídos e uma grande exaltação pelo amor à vida. O homem corria, pulava, rodopiava, gritava palavras de forte impacto. Sua atuação altamente paroxista, sobretudo na parte final de “Câncer”, de Glauber Rocha, me faz lembrar de como o cineasta baiano era classificado de expressionista por Roger Cardinal, um estudioso do assunto. E, creio eu, Pitanga teve participação marcante nisso. Não podemos nos esquecer de sua forte participação em “Barravento” também.
Uma coisa, que estava nas entrelinhas, incomodou um pouco: o estereótipo do afrodescendente como mito sexual. É interessante perceber como uma sociedade racista cria tal mito (a gente viu uma coisa parecida recentemente com Omar Sy no filme “Intocáveis”), algo que acontece tanto com homens quanto com mulheres afrodescendentes. E aí, fica a pergunta: esse mito deve ser encarado com lisonja ou como uma transformação do afrodescendente num mero objeto sexual pelo olhar racista de uma sociedade branca? E, para botar um bom tempero baiano apimentado nessa discussão: o escravo não era um objeto que era comprado e vendido (opa!)? Uma pena que isso não tenha sido questionado, ainda mais porque o documentário nos ajuda a perceber como Pitanga não foi somente importante no meio artístico, mas também na questão social e racial.
Assim “Pitanga” vale muito a pena ser visto, pois ele ajuda a desmistificar estereótipos sobre um ator que tem uma grande importância artística e social em nosso país. E, ainda, é um documentário feito com muito amor e carinho, transpirando ternura em vários momentos. Esse é para ver, ter e guardar.