Mais um filme indicado ao Oscar em nossa série. “Trama Fantasma” concorre a seis estatuetas (Melhor Filme, Melhor Ator para Daniel Day-Lewis, Melhor Diretor para Paul Thomas Anderson, Melhor Atriz Coadjuvante para Lesley Manville, Melhor Música Escrita Para Filme e Melhor Figurino). Esse filme vem com Daniel Day-Lewis como medalhão principal, sempre sendo um nome forte para o prêmio de Melhor Ator. Mas ele não é o único trunfo para “Trama Fantasma”.
Do que consiste a história? Temos aqui a trajetória de um grande estilista, Reynolds Woodcook (interpretado por Day-Lewis), que leva o seu trabalho muito a sério, sendo extremamente metódico e perfeccionista. Ele tem como braço direito Cyril (interpretada por Manville), uma espécie de secretária que assegura que tudo esteja do jeito que Woodcook quer, até a forma como sua comida é feita. Um belo dia, Woodcook conhece uma garçonete de um estrato social mais baixo, Alma (interpretada por Vicky Krieps). A moça, que tem autoestima baixa, se sente muito bem quando veste as roupas projetadas por Woodcook como modelo. Mas a chatice do estilista vai pouco a pouco enervando a moça. Até que, apaixonada por Woodcook, e não aguentando mais as patadas do homem, ela resolve tomar uma atitude drástica, com um risco muito calculado.
Dá para dizer que a história tem um quê meio surreal. Levada por uma belíssima trilha sonora e um figurino de tirar o fôlego (também pudera, o protagonista é um renomado estilista), o filme, paradoxalmente, mostra momentos muito tensos e, com todas as letras, odiamos Day-Lewis, sinal de que ele arrebentou em seu papel. Sua forma de ser toda metódica e cheia de manias espezinha mortalmente Alma, que é simples, pura e doce em seu amor. Só que há um limite para tudo e a solução inusitada de Alma para o conflito exibe uma forma, digamos, peculiar de empoderamento feminino no filme. É claro que essa característica mais irritante de Woodcook terá um motivo pregresso que o obriga a ficar do jeito que é. Mas a saída encontrada por Alma meio que o liberta desse trauma. É como se ele tivesse consciência dos motivos de seu trauma e de sua forma de ser por causa disso, mas não encontrasse uma saída para não permanecer em tal condição. Ele é cheio de frescura, um chato de galocha e sabe disso, mas não sabe como sair disso. E Alma lhe dará a saída, por mais estranha que possa parecer e, por que não, um tanto engraçada, apesar de tudo ser feito num clima de drama e não de comédia. Pela peculiaridade do roteiro, talvez esse filme tenha recebido as indicações de Melhor Diretor e de Melhor Filme, Mas creio que tinha uma vaguinha aqui para roteiro também.
Além da soberba atuação de Day-Lewis, a indicação para Lesley Manville é merecida, embora a concorrência com Allison Janney em “Eu, Tonya” seja muito complicada. De qualquer forma, Manville deu muita dignidade ao seu papel, comportando-se como uma verdadeira Lady que sabia ser dura nos momentos certos tanto com Woodcook quanto com Alma. Era legal de se ver que ela não perdia a elegância e a serenidade, por mais que a barra pesasse. Já Vicky Krieps carregou a responsabilidade de ser a vítima da história, algo que pode atrapalhar um pouco, motivo esse que provavelmente deve ter ajudado a fazer sua atuação parecer um pouco plana, embora ela tivesse momentos melhores. Dá para simpatizar com a moça.
Assim, “Trama Fantasma” é mais um filme que concorre ao Oscar e, talvez, um dos que tenha a história mais curiosa e inusitada (“A Forma da Água” também está nesse páreo). Não fosse por essa característica, esse filme somente serviria para a gente ver o Daniel Day-Lewis. Que bom que não é somente isso.
Para o quarto longa, Nimoy e Bennett decidiram que o astral deveria melhorar. Depois do exercício kubrickiano e sombrio do primeiro filme, passando pela morte de Spock no segundo filme e a morte do filho de Kirk no terceiro, além da destruição da Enterprise, seria interessante tratar o quarto longa com mais leveza e alegria. O filme “A Procura de Spock” havia sido um sucesso, o que rendeu uma série de regalias a Nimoy na Paramount. Jeff Katzenberg sugeriu a participação de Eddie Murphy, um devotado fã de “Jornada nas Estrelas”. Murphy chegou a colocar os executivos da Paramount para esperar o início da reunião onde ele assinaria um contrato de um salário de um milhão de dólares, pois ele estava assistindo a um episódio da série clássica e não queria ser interrompido. Nimoy agiu com cautela, pois para o projeto dar certo, o papel de Murphy deveria ser relevante, caso contrário, as críticas seriam muito severas. Murphy ficou no aguardo enquanto o roteiro era trabalhado. Ele contatou cientistas do projeto SETI (Search for Extrarrestrial Inteligence, Busca por Inteligência Extraterrestre) em busca de ideias para o filme. Enquanto isso, Bennett assistia aos episódios da série clássica e, juntamente com Nimoy, concluíram que a história deveria tratar de uma viagem no tempo. Nimoy viajou para a Europa para gravar uma minissérie para a NBC e tinha tempo livre para pensar no roteiro. Deveria haver na história ligações com o filme anterior. A tripulação da Enterprise estava no exílio em Vulcano, tendo que enfrentar a corte marcial na Terra, dispunha de uma ave de rapina klingon e Spock estava vivo, mas com sua memória praticamente apagada, tendo que se reeducar. Enquanto eles voltassem para a Terra, eles teriam que, deliberadamente, fazer uma viagem no tempo. Foi escolhida a São Francisco de 1986, ou seja, dos dias atuais para a época da produção do filme. Faltava o motivo para a viagem ao passado. Na época, Nimoy estava fazendo leituras sobre a extinção de espécies e lhe veio a ideia de que uma epidemia poderia estar assolando a Terra no século 23 e a cura estaria numa espécie já extinta nesse século mas ainda viva no século 20. Entretanto, o tema da epidemia era pesado demais e a ideia era fazer um filme mais leve. Numa conversa com um amigo, Nimoy tomou conhecimento das baleias jubarte como uma espécie em extinção e que se comunicavam por uma espécie de canto. Nimoy conversou com Bennett e eles desenvolveram mais a ideia. O canto das baleias era uma comunicação com uma inteligência extraterrestre. Mas aí as baleias desapareceram com a extinção e essa inteligência alienígena retorna no século 23 para estabelecer contato, o que provoca interferências nos sistemas de energia e tempestades. Assim, a volta ao passado seria para pegar baleias jubarte e levá-las ao século 23 para tentar a tal comunicação. Dois roteiristas foram contratados para começar o roteiro. Mas… e Eddie Murphy? Como ele se encaixaria na história? Houve algumas tentativas de aproveitá-lo, mas sem sucesso. Por fim, tanto a equipe de “Jornada nas Estrelas” quanto Eddie Murphy decidiram que não seria bom para ninguém que ele participasse do filme.
O trabalho dos dois roteiristas contratados não deu certo e Harve Bennett escreveu o início e o fim do roteiro. Nicholas Meyer foi chamado e escreveu a parte em que eles estavam na São Francisco de 1986, onde seu senso de humor foi muito útil. Nimoy contribuiu com o toque neural no punk com o rádio no volume máximo dentro do ônibus, experiência desagradável pela qual o ator realmente passou. Nessa época, Nimoy ainda fumava e mostrava sinais de falta de ar. Para não prejudicar sua participação no projeto do filme, ele parou de fumar, o que lhe rendeu mais alguns anos de vida. Nimoy passou até a cuidar melhor de sua saúde, fazendo exercícios físicos, pois ele teria que, por durante toda a produção do filme, simultaneamente dirigir e atuar, o que implicava numa carga de trabalho enorme. Muito trabalho foi feito para se encontrar as locações e fazer as imagens das baleias, já que o aquário escolhido para as filmagens não comportava um casal de jubartes. Aí entrou novamente a equipe da Industrial Light And Magic em ação, além de uma equipe que criou baleias mecânicas ou partes de baleias mecânicas em tamanho real (como o rabo). Somente duas tomadas com baleias vivas foram feitas no filme: uma com jubartes na superfície do oceano e outra em que as baleias vão à superfície rapidamente durante a sequência da caçada.
Na escolha do elenco, alguns membros da série clássica voltaram, como Majel Barrett (a agora comandante Chapel) e Grace Lee Whitney, a ordenança Rand, além de Marc Lenard (Sarek) e Jane Wyatt (Amanda), os pais de Spock. Robin Curtis voltou a interpretar Saavik e Catherine Hicks interpretou a bióloga de cetáceos, Gillian Taylor. O mais curioso é que Nimoy, que já estava maravilhado com Hicks, só a contratou depois do aval de Shatner, após uma visita de Nimoy e Hicks ao Equestrian Center, onde Shatner tinha seus amados cavalos. Com uma piscadela, Shatner aprovou a moça, que faria muitas cenas com Kirk. Reza a lenda que os cavalos gostaram da moça, o que encantou ainda mais Shatner.
Uma curiosidade sobre as filmagens é que parte delas foi feita nas ruas, em meio a pessoas comuns que não atrapalharam, mesmo com o elenco de “Jornada nas Estrelas” sendo muito conhecido por todos. Mas a cena em que quase Kirk é atropelado teve que ser muito bem coreografada, em virtude do perigo envolvido. Foi uma cena rodada várias vezes em três horas e que cada tomada demorava cerca de vinte minutos para ser feita, já que doze carros tinham que dar uma volta no quarteirão. O dia já estava terminando e uma certa aglomeração de pessoas acompanhava a filmagem quando, depois da décima tentativa, tudo deu certo, para alívio de Nimoy. Na cena, o motorista xinga Kirk de paspalho, que retribui com um “paspalho é a mãe”.
Mas houve casos em que algumas cenas não puderam ser filmadas por imprevistos, como uma de Sulu, que era de São Francisco e, numa conversa com uma criança, descobria que falava com seu tataravô. Mas a criança escolhida para a cena ficou muito nervosa e a equipe teve que abandonar a ideia, o que chateou muito George Takei, o ator que interpreta Sulu. Houve, também, “felizes acidentes”, como na cena em que Chekov e Uhura perguntavam às pessoas na rua onde haveria navios nucleares para conseguir um material radioativo para fazer funcionar a ave de rapina em que vieram. Mas o ano era 1986 e a guerra fria ainda perdurava. E Chekov, russo que era, perguntando sobre navios nucleares americanos na rua. Essa era a piada. Algumas pessoas perguntadas na rua eram figurantes contratados, mas outras não. A cena foi filmada bem ao estilo de “câmera indiscreta”. Muitas pessoas nem deram confiança para Chekov e Uhura, achando que eram loucos. Mas uma moça de longos cabelos negros deu atenção a eles, respondendo de forma espontânea que a base ficava do outro lado da baía. A cena foi incluída no filme depois de um contrato feito com a moça.
Um fato desagradável que ocorreu foi com relação à cena da comunicação da sonda com as baleias. Os produtores (incluindo Bennett) queriam que houvesse legendas no diálogo entre as baleias e as sondas. Mas Nimoy não queria tais legendas, pois numa conversa com cientistas especializados nas possibilidades de uma comunicação entre humanos e extraterrestres lhes disseram que, por muito possivelmente terem uma cultura e existência diferente da dos humanos, não haveria uma garantia de comunicação tão linear entre humanos e alienígenas. Logo, Nimoy não quis “antropomorfizar” a sonda. E bateu o pé, pois ele havia recebido carta branca da Paramount para fazer o filme como quisesse e, como diretor, tinha a última palavra, ao contrário das séries de tv, onde o produtor tinha a última palavra. E como Bennett era produtor de séries de tv, houve uma certa tensão entre ele e Nimoy, que acabou ganhando a queda de braço e a cena foi ao filme sem legendas, preservando o mistério da sonda como Nimoy queria.
O personagem de Spock também sofre um processo de reconstrução nesse filme, já que ao final de “À Procura de Spock”, sua mente estava praticamente vazia. Ele faz testes simultâneos e rápidos com o computador para preencher novamente sua mente com informações. Mas não consegue responder à pergunta “Como se sente?”, por não entendê-la. Sua mãe, Amanda, é que vai lhe lembrar de seu lado humano e emocional. E aí Spock, ao longo do filme, chegará à conclusão bem emocional e humana de que todos devem se reunir para salvar Chekov, pois agora “a necessidade de um supera as necessidades de todos”, invertendo a ideia básica do segundo filme, que já havia sido invertida no terceiro. Ao final, quando Spock se despede de seu pai, Sarek, este lhe pergunta se ele quer enviar uma mensagem a sua mãe. Ao que Spock responde: “Diga à minha mãe… que me sinto bem”, integrando novamente as partes vulcana e humana do personagem. Não foi à toa que “Jornada nas Estrelas 4, A Volta Para Casa” arrecadou cem milhões de dólares de bilheteria e até então era o filme de maior recorde de arrecadação de bilheteria, além de ser considerado por muitos fãs o melhor longa da série clássica.
No próximo artigo, vamos falar de mais algumas experiências de Nimoy na direção. Até lá!
A Marvel ataca novamente, lançando seu novo filme, “Pantera Negra”. E podemos dizer que o filme solo desse novo super-herói, apresentado ao mundo dos quadrinhos ainda na década de 60, mostra a incrível capacidade da Marvel de se reinventar, fazendo-o sempre com extrema competência. Devo confessar que a película me arrebatou em cheio. Sempre fui um fã declarado dos filmes do Capitão América (tenho todos os três DVDs desse herói), mas “Pantera Negra” é uma película que estoura a escala, pois ela tem um gosto muito especial de algo diferente de tudo o que foi visto até aqui, por se passar num reino fictício africano, a famosa Wakanda, riquíssima por ter o seu vibranium e com uma tecnologia avançadíssima, escondida aos olhos do mundo para não ser explorada economicamente pelo imperialismo como nos demais rincões africanos.
Mas, por que o filme impressiona tanto? Em primeiro lugar, devo dizer aqui que, para se fazer uma análise mais detalhada do filme, os spoilers serão inevitáveis. Ainda, eu, na qualidade de professor de História, devo dizer que Wakanda surpreende, inicialmente, por conciliar de forma extremamente harmoniosa a tradição e a modernidade. Estes dois elementos, vistos como antagônicos muitas vezes, coexistem aqui sem qualquer conflito. Todos os rituais tribais que tiveram influência das transformações que o vibranium provocou na natureza, assim como aqueles rituais que dizem respeito à sucessão do trono, não impedem ou atrapalham em nada o desenvolvimento da tecnologia do país. O próprio uniforme do Pantera Negra corrobora essa tese, pois ele é, ao mesmo tempo, feito por um material extremamente moderno, mas preserva um desenho tribal. O laboratório desenvolvido pela irmã do rei T’Challa (interpretado por Chadwick Boseman), onde você pode comandar virtualmente e a muitos quilômetros de distância um carro ou veículo aéreo, é de tirar o chapéu, também decorado com motivos tribais. Aliás, a inteligente irmã me pareceu uma grande homenagem ao Q de James Bond.
O filme tem muitas outras virtudes. Os críticos da Marvel falam que seus filmes têm muitas piadas. Dessa vez, podemos dizer que as piadas foram bem poucas e precisas, principalmente quando fazem galhofa com o imperialismo, usando termos como “colonizadores” ou fazendo pouco caso dos americanos. Ainda, a morte do vilão Killmonger (interpretado magistralmente por Michael B. Jordan) foi arrebatadora, pois T’Challa o leva para ver o pôr-do-sol em Wakanda e fala que seu ferimento pode ser curado, ao que Killmonger responde, se ele vai viver preso, é melhor que não, e pede que seu corpo seja jogado ao mar, da mesma forma que os africanos pulavam ao mar dos navios negreiros, pois sabiam que iriam viver presos e escravizados, preferindo a morte. Impossível segurar as lágrimas. Confesso que essa foi a primeira vez que chorei com a morte de um vilão da Marvel, esse sim um vilão com conteúdo, como falaremos mais abaixo.
Ainda relacionando o filme com a questão do imperialismo (isso é feito de forma bem vasta), há o seguinte debate: Wakanda, com sua avançada ciência e tecnologia, assim como a posse do vibranium, deve permanecer escondida do mundo para se proteger de invasões, guerras e explorações provocadas pelo mundo “civilizado” branco ocidental, ou deve se revelar ao mundo e ajudar nações africanas mais pobres, assim como pessoas da etnia negra que sofrem com a pobreza e o preconceito no mundo todo, já que Wakanda tem condições econômicas e tecnológicas para isso? A posição de T’Chaka, pai de T’Challa e antigo rei de Wakanda era o isolamento total para proteger o seu povo. Mas isso acabou fazendo com que o rei matasse o seu próprio irmão, que pensava justamente numa abertura de Wakanda para o mundo. Tal situação deixou Killmonger, que era o sobrinho do rei, órfão, e o rapaz iniciou uma cruzada cheia de ódio para tomar o trono de Wakanda, abrir o país e declarar guerra contra os antigos imperialistas, dando o troco em relação ao que os europeus fizeram com a África. Ele até parafraseou uma expressão da empáfia inglesa quando ela era uma potência imperialista no século XIX: “No Império Inglês, o Sol nunca se põe”, substituindo, na frase, a Inglaterra por Wakanda (os ingleses diziam isso, pois se gabavam de ter colônias no mundo inteiro). Ou seja, é da intenção de Killmonger fazer de Wakanda uma potência imperialista igual às mesmas que tripudiaram do continente africano. Assim, Killmonger é uma espécie de monstro criado pelo pai do mocinho da História, ou seja, o rei T’Chaka. E Killmonger, na ânsia de afirmar seu povo perante o colonizador branco, torna-se vingativo e agressivo. Isso é uma prova de que não temos aqui personagens planos, ou seja, mocinhos totalmente bonzinhos e bandidos totalmente maus. Os mocinhos erraram no passado, ao passo que até entendemos a raiva contida nos bandidos (embora não concordemos com seus procedimentos). Daí a afirmação que fiz acima de que temos um vilão com conteúdo nesse filme, onde sua maldade, embora não justificável, seja compreensível. Mocinhos e bandidos têm a sua visão de mundo, cada uma com suas virtudes e defeitos.
Ao fim, Wakanda se revela para o mundo e ajuda os mais necessitados, sem se envolver em guerras. Essa é a primeira cena pós-créditos, onde T’Challa discursa nas Nações Unidas, revelando as intenções de seu país e é recebido com sarcasmo pelos petulantes brancos. Um sorrisinho maroto do rei é a resposta igualmente sarcástica e um deboche com o sentimento de superioridade imperialista dos brancos.
E o elenco? Essa é outra grande virtude do filme. Não há a menor sombra de dúvida de que há uma segregação no meio artístico. As reclamações de falta de indicação de atores e diretores negros ao Oscar nos últimos anos corrobora essa segregação. Há menos espaço no meio artístico para negros, o que os obriga a serem extremamente talentosos. E aí, por incrível que pareça, nesse filme temos uma verdadeira constelação de estrelas negras, somente para parafrasear o samba enredo da Beija-Flor de 1983, quando venceu o carnaval daquele ano, assim como venceu o carnaval do ano presente. Comecemos por Chadwick Boseman. Ele já havia mostrado todo o seu talento no filme biográfico de James Brown, e com sua participação como Pantera Negra em “Guerra Civil” muito marcante também. Já Michael Bakari (nobre promessa em Swahili) Jordan dispensa apresentações. Suas atuações em “Fruitvale Station” e em “Creed” foram marcantes e testemunhas de seu grande talento. E Lupita Nyong’o? Mais outra muito conhecida de todos, não pela voz de Maz Kanata em “Guerra nas Estrelas”, mas pelo seu Oscar como coadjuvante em “Doze Anos de Escravidão”. Até hoje, o sofrimento de sua personagem naquele filme é de se levar às lágrimas. E aqui ela fez um excelente par romântico, mais empoderado do que nunca, com T’Challa. Ela estava simplesmente deslumbrante e elegantérrima! A atriz Danai Gurira, que interpretava a General Okoye, era a essência do empoderamento feminino num filme cuja etnia negra era o escopo principal. Okoye era a chefe da Guarda Real, as Dora Milaje, formada somente por mulheres que, no filme, mais lembravam a Grace Jones, mas na minha cabeça lembravam mais a Pinah, a antológica passista da Beija Flor. Sua combatividade e elegância combinavam maravilhosamente bem, saindo da boca da personagem as melhores tiradas contra os brancos, americanos e imperialistas em geral. A irmã de T’Challa, Shuri, interpretada por Letitia Wright, foi uma gratíssima surpresa, pois ela era a jovem cientista que inventava e produzia todas as inovações tecnológicas de Wakanda. Mesmo que alguns achem que ela pode parecer nova demais para o cargo, a moça não deixa de ser uma inspiração para um monte de meninas por aí que têm a sua idade e não têm qualquer perspectiva futura de vida. Daí a importância de tal personagem. Não podemos nos esquecer também de Daniel Kaluuya (de “Corra!”) e das participações, para lá de especiais, de Andy Serkis como um risonho Garra Sônica, do “Hobbit” Martin Freeman, de Angela Bassett, como a elegante Rainha-Mãe, e, para coroar a cereja do bolo, Forest Whitaker! Um filme, só por ter esse elenco, já é um grande presente para o espectador.
Assim, por todos esses motivos, ouso dizer que “Pantera Negra” é o melhor filme da Marvel de todos os tempos, se formos considerar roteiro e elenco. Esse é um filme diferente de todos os demais, estourando a escala em termos de qualidade, e será difícil de superá-lo, pois ele carrega um conteúdo e uma mensagem muito diferentes do que vimos até agora em todas as películas da Marvel. Elencar a África como algo positivo e nobre, acima das mesquinharias dos brancos colonizadores, foi uma tremenda jogada de mestre na luta contra o racismo e pelo respeito à diferença e tolerância. O filme deu o seu recado sem ser chato, piegas ou rançoso, transformando o negro em agente de transformação social ao invés de vitimizá-lo. Esse é o caso mais gritante de filme para se ver, ter e guardar. E um programa imperdível para todos, seja os fãs da Marvel, seja os cinéfilos de plantão.
Uma co-produção Alemanha/Itália/Áustria/Suíça passou em nossas telonas. “Lou” fala da história real de Louise Andreas-Salomé, uma mulher bem à frente do seu tempo, uma escritora e psicanalista que teve várias amizades masculinas, dentre elas Nietzsche, Rilke e Freud. Uma mulher que teve uma vida intensa, praticamente uma precursora do empoderamento feminino que vemos hoje em dia.
A película começa com ela, já idosa (interpretada por Nicole Heesters) confinada em sua casa durante a queima de livros provocada pelos nazistas. Ela se aposenta de sua profissão de psicanalista e fica reclusa em casa, para tentar escapar de todo o horror em que se transformou a Alemanha. Mas um homem, Ernst Pfeiffer (interpretado por Mathias Lier) insiste em ir à sua casa, à procura de seus serviços. Apesar de todas as chances em contrário, Louise e Ernst iniciam uma amizade e a senhora começa a contar história de sua vida, desde a infância, quando questionou abertamente o poder da Igreja e das instituições vigentes, que controlavam a mulher em todo o seu machismo. Ela conhece um homem mais velho numa livraria, que se encanta com seus poemas e quer se casar com ela, o que lhe provoca um trauma que faz a moça decidir que jamais se apaixonará e que somente se envolverá intelectualmente com os homens. Sua opção acabou fazendo com que ela tivesse diferentes tipos de relacionamento com os homens de sua vida, sendo todos eles com maior ou menor grau de turbulência.
Esse foi realmente um filme muito interessante, pois abordou a vida de uma mulher que escolheu uma forma muito peculiar de relacionamento com o sexo oposto mesmo em nossos dias. Sua opção pela razão total para se resguardar de problemas de ordem emocional acabou não surtindo efeito, já que isso afetava emocionalmente os homens à sua volta e ela acabava caindo nesse turbilhão. Só é pena que a película tenha enfocado muito mais o aspecto pessoal e emocional da vida de Louise do que o aspecto intelectual. Ainda assim, tivemos um filme intrigante e marcante. Um filme, acima de tudo, de atores, de personagens e de relacionamentos e que confirma um pouco aquela ideia de que a história de um homem ter uma mulher somente como amiga é um tremendo engodo. De todos os relacionamentos que Louise teve, talvez somente o com Freud remasse contra essa maré.
Uma coisa que chamou muito a atenção e foi de uma plasticidade incrível foi o uso de postais antigos, onde os atores corriam vivos perante as imagens congeladas de pessoas e ruas. Somente em uma cena, a atriz Katharina Lorenz (que fez Louise na vida adulta) andava em meio a um cenário real com pessoas paradas. Mas em todas as outras cenas, foram usadas imagens de postais antigos, sendo algo muito bonito de se ver.
Assim, “Lou” é um curioso filme que está em nossas telonas e que fala de empoderamento feminino na vida real em épocas e lugares de machismo extremo. Uma mulher que tentou abdicar da paixão em nome da razão, mas por ser de personalidade extremamente magnética, não o conseguiu. Uma mulher que tinha o dom da escrita e escolheu a psicanálise, sendo pioneira em sua área. Um filme que vale muito a pena ser assistido, pois sua protagonista nos envolve completamente.
Quem já leu o que escrevo sabe que tenho uma relação muito difícil com Godard. Seus filmes são, para minha pessoa, herméticos, chatos, sem sentido até, talvez por possuírem uma narrativa demasiadamente fragmentada. Já falei em outros carnavais que essa característica dele até se aproximaria da de Glauber Rocha, mas os filmes do cineasta brasileiro seriam mais digeríveis em virtude de tratarem de uma realidade mais próxima de nós. Essa má relação com Godard na minha vida de cinéfilo sempre me incomodou. E olha que eu juro que tento. Vou ao cinema ver seus filmes, presto a maior atenção nas falas, roteiro, fotografia, montagem, etc., mas a decepção sempre vem logo depois. Uma fragmentação do cacete. O único filme de Godard de que realmente gostei foi “Alphaville”, uma alegoria do mundo em que vivemos manifesta numa sociedade fictícia. Um filme com um verniz de ficção científica distópica. Agora, o resto…
Bom, tive mais uma chance de conhecer o cara. Fui rever “Acossado” no cinema, depois de alguns anos de tê-lo visto. Quem sabe minha impressão sobre o filme não tivesse mudado com a idade e com a bagagem que tenho hoje (se é que tenho alguma)? Tinha que me dar mais uma chance e ao malucão cultuado por meio mundo.
O filme tem um plot muito simples. Um malandrão, misto de assaltante e “bon vivant” (interpretado por Jean Paul Belmondo), mata um policial e passa a ser perseguido. Enquanto se esgueira da polícia e da falta de grana praticando pequenos furtos debaixo do nariz da menininha que namorava, ele corteja uma bela americana que estuda jornalismo e tem um quê intelectual bem maior que o dele. Despreocupado com o cerco cada vez mais próximo da polícia, nosso anti-herói busca convencer a ninfeta a ir com ele para a Itália. Até que a sua vaca vai para o brejo e ele morre com os tiros dos policiais (como esse filme tem quase sessenta anos, eu acho que posso dar spoiler).
Pois é, o que eu achei dessa vez? Se da última vez que eu assisti à película eu a achei muito hermética e chata, dessa vez, vendo com um pouco mais de atenção, notei algo bem interessante, que foi para mim o grande trunfo do filme: a sua montagem. E por que isso? Em alguns momentos das andanças do personagem de Belmondo (Michel Poiccard), a forma como eram feitos os cortes de câmara tornavam a ação muito mais rápida, como se o filme tivesse um ritmo muito frenético. Por exemplo: vemos o homem numa garagem andando em direção ao carro. A imagem seguinte já é o carro andando pela rua. Não vimos ele abrindo a porta, entrando e ligando o carro. Essa mudança brusca nas tomadas dava uma impressão de velocidade a gente não vê frequentemente por aí. Em compensação, o filme ficava com um ritmo extremamente lento quando víamos Michel cortejando a bela lourinha americana (interpretada por Jean Seberg). E os diálogos eram muuuito chatos. O que a gente podia tirar de todo aquele palavrório era que a lourinha era bem mais inteligente e fazia gato e sapato dele na maioria das vezes. Quando a moça queria ter uma conversa mais intelectualizada com ele, não conseguia. Quando ele levantava a saia dela, tomava um tapa na cara (ele chegou até a descer do carro que dirigia para levantar a saia de uma moça qualquer na rua para comprovar sua teoria de que queria ver pernas bonitas). E dava na moça verdadeiros coices quando ela não cedia aos seus encantos, até na hora da morte, justamente para lhe causar remorso. Tudo isso não estando nem aí para a polícia que se aproximava, ao melhor estilo do “vamos ver no que dá”. Sei não, não fosse por Seberg, o filme seria mais difícil de assistir. Tudo bem que nosso protagonista tinha um espírito livre e transgressor, sendo uma espécie de porta-voz dos anseios daquela geração, eu entendo isso tudo. Mas aqueles diálogos com a americana eram simplesmente um saco.
No mais, os fragmentos de sempre, como no caso da entrevista feita com o romancista que se monta num trono de arrogância e é meio que cultuado pela aspirante a jornalista. Senti um fio bem denso de ironia à intelectualidade ali, principalmente nas cantadas e olhares do romancista, que o reduziam aos humanos normais, sendo esse momento também até que interessante, principalmente quando a gente se lembra do gênio difícil de Godard e de sua relação com a intelectualidade. O filme também tem um quê meio policial, principalmente nas perseguições da polícia ao protagonista. Mas ainda assim, “Acossado” é entediante, principalmente porque ele se pauta muito nos famigerados diálogos de Belmondo e Seberg.
Assim, creio que eu ainda não consegui entender Godard de todo. Mas andei alguns centímetros na direção disso ao notar o dinamismo da montagem e algumas ironias bom finas. Pena que o filme não manteve esse ritmo o tempo todo. Esperemos a próxima chance de confrontar Godard. E pensar que o roteiro de “Acossado” foi escrito por Truffaut, esse sim um diretor da Nouvelle Vague que eu gosto. Ironias da vida…
Continuando nossa saga de analisar os filmes indicados ao Oscar, falemos hoje de “Lady Bird, É Hora de Voar”, que concorre a cinco estatuetas (Melhor Filme, Melhor Atriz para Saoirse Ronan, Melhor Atriz Coadjuvante para Laurie Metcalf, Melhor Direção para Greta Gerwig e Melhor Roteiro Original, também para Greta Gerwig). Além disso, o filme também levou o Globo de Ouro de Melhor Filme de Comédia ou Musical e Melhor Atriz de Musical e Comédia para Saoirse Ronan. Ou seja, mais um medalhão e páreo duro para a noite de premiação. Antes de mais nada, vejo esse filme como um grande enigma em termos de premiação, pois ele parece não ser grande coisa e está sendo muito celebrado. O que acontece aqui então?
Bom, a película conta a história de uma menina de Sacramento, Califórnia, de nome Christine McPherson (interpretada por Ronan), que adota o pseudônimo, considerado por muitos estranho, de Lady Bird. Podemos dizer que a moça é uma pós-adolescente que ainda não amadureceu de todo e é muito encucada com várias coisas, sendo a típica garota enxaqueca de tão chata que é. Ela vive às turras com sua mãe (interpretada por Laurie Metcalf). Tudo levava a crer que se tratava de um típico drama adolescente, onde devemos ver a garotinha perdida com uma certa complacência, pois os hormônios funcionando a mil não deixavam ela ter muito a consciência do que fazia. Ou seja, uma típica história para lá de sacal e barata.
Só que o filme não é somente isso (apesar de, inicialmente, ter-se a impressão de que ele será apenas isso mesmo). A menina chata, que pensa grande, pois ela quer ir para uma grande Universidade Americana, algo que praticamente ninguém põe fé (até os seus familiares), vai aos poucos revelando seus sonhos e fragilidades no meio em que ela vive, paulatinamente conquistando o espectador de forma arrebatadora já que, em algum momento de sua trajetória, a gente se identifica com a moça e começa a compreendê-la debaixo de todo aquele véu de chatice adolescente. Para começar, ela vive numa família que a própria moça intitula que está no “lado ruim da linha do trem”, ou seja no lado onde vivem pessoas de um estrato social mais baixo, ao contrário das mais ricas que moram do outro lado. Isso já a torna de cara uma outsider, o que muito incomoda a moça.
Ela tem uma amiga bem gordinha, também outsider e fragilizada por sua condição. Todos os jovens dessa comunidade (seja do lado de lá ou do lado de cá da linha do trem) frequentam uma Escola Católica e Lady Bird participa de várias experiências como o grupo de teatro, o primeiro namorado, a primeira vez e a tentativa de inclusão no grupo dos riquinhos descolados do colégio. Isso leva a menina a muitas esperanças e decepções que a amadurecem. Ou seja, vemos uma trajetória que é uma sucessão de lições de vida que nos fazem reavaliar nosso próprio passado à medida que o filme vai sendo exibido. A diretora e roteirista Greta Gerwig faz isso de uma forma muito afetuosa, levando o espectador a comprar a ideia, mesmo que Ronan parecesse com mais idade para o papel. Sei lá, a impressão que ela tinha dado em “Brooklyn” foi a de uma moça um pouco mais madura. Talvez essa diferença de idade seja até benéfica para a atriz, pois a gente realmente vê uma pós-adolescente imatura em sua atuação e acredita nela.
Assim, pelo número de estatuetas indicadas e pelos prêmios do Globo de Ouro, de repente um filme com cara de azarão tem mais tarimba para fazer bonito na noite de premiação. Esse é, sobretudo, um filme de atores, cujo elenco também não deixou a desejar. Vale a pena dar uma conferida.
Dando sequência às análises dos filmes indicados ao Oscar, vamos falar hoje de “Mudbound. Lágrimas Sobre o Mississippi”, que concorre a quatro estatuetas (Melhor Atriz Coadjuvante para Mary J. Blige, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Fotografia e Melhor Música Para filme, competindo com a música “Mighty River”). Essa é mais uma boa história que aborda a questão do racismo nos Estados Unidos durante uma época que podemos considerar um tanto especial: a da Segunda Guerra Mundial.
O enredo da história é um tanto simples. Uma família branca, outra negra. Ambos moram numa fazenda de propriedade da família branca. Estamos em meados da década de quarenta no Mississippi. A família negra aluga a terra em que vive, mas paga o aluguel com sua produção agrícola. Apesar de serem inquilinos, a família negra é tratada de uma forma, digamos, escravocrata pela família branca. Esse equilíbrio delicado vai sendo levado no dia-a-dia, até que chegamos à situação em que um membro de cada família vai para a guerra lutar contra o nazismo. Os dois membros de cada família sobrevivem e voltam para casa, encontrando um Mississippi provinciano, opressor e extremamente racista, bem ao sabor dos seus inimigos nazistas que combatiam na Europa. Com o mesmo inimigo no seio de seu lar, esses dois homens se conhecem, se identificam por seus traumas de guerra e irão se unir para conviver com toda a paranoia contra a qual lutavam no Velho Continente.
Essa coisa de lutar contra uma raposa com outra mais felpuda ainda dentro de seu galinheiro é uma coisa a se pensar. Se considerarmos “Mudbound” como um filme de guerra, ele sai daquela dicotomia e maniqueísmo mocinho/bandido da grande maioria dos filmes de guerra. É difícil ver uma película desse gênero que não demonize o inimigo, embora, por ser muito vasta a filmografia sobre esse tema, a gente encontre alguns exemplos (como “O Pianista”, de Polanski), sempre muito bons. Mas em “Mudbound”, a coisa é muito mais gritante, pois o inimigo nazista não tem rosto, enquanto que a face do racismo do Mississippi é pintado em cores bem vívidas, sobretudo no patriarca da família (interpretado por Jonathan Banks), que não esconde de ninguém o ódio pelos negros. Por isso mesmo, há passagens de “Mudbound” que são extremamente repulsivas, algumas delas pelo constrangimento que a família negra é obrigada a passar, onde a individualidade e a liberdade de seus membros sempre é posta em xeque, mas há outros momentos repugnantes de violência extrema que arrebatam o filme, até então muito tenso, mas ainda não visceral. É, sem dúvida nenhuma, mais um filme de ódio do que de guerra.
E os atores? Além da boa interpretação de Banks, que faz a gente odiar seu personagem com todas as nossas forças e do fundo da alma, tivemos Carey Mulligan, que se destacou como protagonista em “As Sufragistas”, fazendo a esposa da família branca, trazendo um pouco (somente um pouco) de tolerância para com a família negra. Já a mãe da família negra, Mary J. Blige, recebeu a indicação para atriz coadjuvante e foi muito bem, embora o pouco tempo de tela, se analisarmos todo o contexto do filme possa prejudicar a avaliação de seu talento. Esse é um filme de muitos atores, rostos e personagens, onde parece que cada um deles pega um pedacinho da película para si e logo abandona em favor de outro ator. Isso incomodou um pouco e meio que fragmentou um pouco a narrativa, apesar do fio condutor dos dois combatentes, que foram bem mas são um tanto desconhecidos (Garrett Hedlind e Jason Mitchell).
Assim, “Mudbound. Lágrimas Sobre o Mississippi” é mais um bom candidato ao Oscar, embora essa película pareça correr por fora em relação a filmes como “A Forma da Água” ou “Três Anúncios Para Um Crime”. De qualquer forma, mesmo que ela não faça bonito no Oscar, já o fez por tocar numa ferida da sociedade estadunidense que jamais deve ser esquecida: o racismo crônico, declarado e latente de um povo que se diz o maior defensor da democracia e da liberdade. E comparar esse defeito imperdoável com o nazismo é uma jogada de mestre. A repugnância da película em alguns momentos choca o espectador, como se ele tomasse mesmo um tapa na cara. Você sai incomodado da sala, pois passa por emoções muito fortes num intervalo de tempo muito pequeno mais ao fim da exibição. Por isso mesmo, essa película merece muito respeito como obra artística que é, independentemente de qualquer prêmio.
Um curioso filme passou em nossas telonas. “Os Iniciados” fala de tradição. Mas também fala de modernidade. Mais uma película que trata do embate entre esses dois pólos, trabalhando, dessa vez, a modernidade como algo mais positivo que a tradição. É um filme que trata, ainda, da questão do homossexualismo.
Vemos aqui a história de Xolani (interpretado por Nakhane Touré), um homem do interior que foi incumbido de levar um adolescente da cidade grande para o interior com o objetivo de orientá-lo num ritual de iniciação que o transformará em… homem (!). Tal ritual consiste numa violenta circuncisão à sangue frio, que deixa um grande ferimento que deve ser tratado num espaço de duas semanas. Enquanto tratam de seus ferimentos, os iniciados participam, junto de seus orientadores, de uma série de outros rituais que os transformarão em homens.
Até aí, descontando a violência da circuncisão, tudo bem. O problema é que Xolani é homossexual e tem um caso com outro orientador, Vija (interpretado por Bongile Mantsai). Como o iniciado de Xolani também é homossexual e está ali muito a contragosto, e o rapaz percebe o caso dos dois orientadores, dá para perceber como o relacionamento entre esses três personagens será uma espécie de bomba relógio nesse ambiente regado à muita testosterona.
O embate entre tradição e modernidade se manifesta aqui de várias formas: o campo e a cidade (onde o iniciado de Xolani é visto com preconceito pelos outros iniciados por ser da cidade e o próprio iniciado vê os outros com preconceito por estarem tão atrelados àqueles rituais); a cultura homossexual e heterossexual; a tecnologia e a vida silvícola. Esses pólos não se manifestam de forma estanque e mesclam-se entre si, principalmente no caso dos orientadores homossexuais que, ao mesmo tempo, são guardiões das tradições. O próprio jovem, que é do meio urbano e repudia a tradição, acaba se agarrando de certa forma a ela quando ele quer se afirmar perante os demais jovens que caçoam dele e o faz de uma forma violenta, como a boa tradição masculina impõe. Muitas vezes, a dubiedade da situação entre esses dois pólos aparece no gestual corporal dos personagens, sobretudo no relacionamento entre Xolani e Vija, onde as carícias são feitas de forma ríspida e precedidas de agressões físicas, como se a opressão da tradição os impedisse de terem uma postura mais carinhosa um com o outro.
Em virtude de toda a tensão produzida pelo filme, um happy end acaba se tornando impossível aqui. Mesmo com essa constatação um tanto óbvia, o final não deixa de ser surpreendente, de uma certa forma. Mas paremos com os spoilers por aqui.
Assim, “Os Iniciados” mostra para nós mais uma vez o embate entre a tradição e a modernidade, desta vez no interior da África do Sul e numa cultura que pode ser considerada muito exótica para alguns, mas que não deixa de ter algumas ligações com a nossa cultura ocidental por outro lado. A coisa da circuncisão e do “ser homem” não é, de jeito nenhum, uma exclusividade dessa cultura tribal africana exposta no filme. E, mais uma vez, temos uma película que nos faz pensar, o que sempre é algo bem vindo.