A Marvel ataca novamente, lançando seu novo filme, “Pantera Negra”. E podemos dizer que o filme solo desse novo super-herói, apresentado ao mundo dos quadrinhos ainda na década de 60, mostra a incrível capacidade da Marvel de se reinventar, fazendo-o sempre com extrema competência. Devo confessar que a película me arrebatou em cheio. Sempre fui um fã declarado dos filmes do Capitão América (tenho todos os três DVDs desse herói), mas “Pantera Negra” é uma película que estoura a escala, pois ela tem um gosto muito especial de algo diferente de tudo o que foi visto até aqui, por se passar num reino fictício africano, a famosa Wakanda, riquíssima por ter o seu vibranium e com uma tecnologia avançadíssima, escondida aos olhos do mundo para não ser explorada economicamente pelo imperialismo como nos demais rincões africanos.
Mas, por que o filme impressiona tanto? Em primeiro lugar, devo dizer aqui que, para se fazer uma análise mais detalhada do filme, os spoilers serão inevitáveis. Ainda, eu, na qualidade de professor de História, devo dizer que Wakanda surpreende, inicialmente, por conciliar de forma extremamente harmoniosa a tradição e a modernidade. Estes dois elementos, vistos como antagônicos muitas vezes, coexistem aqui sem qualquer conflito. Todos os rituais tribais que tiveram influência das transformações que o vibranium provocou na natureza, assim como aqueles rituais que dizem respeito à sucessão do trono, não impedem ou atrapalham em nada o desenvolvimento da tecnologia do país. O próprio uniforme do Pantera Negra corrobora essa tese, pois ele é, ao mesmo tempo, feito por um material extremamente moderno, mas preserva um desenho tribal. O laboratório desenvolvido pela irmã do rei T’Challa (interpretado por Chadwick Boseman), onde você pode comandar virtualmente e a muitos quilômetros de distância um carro ou veículo aéreo, é de tirar o chapéu, também decorado com motivos tribais. Aliás, a inteligente irmã me pareceu uma grande homenagem ao Q de James Bond.
O filme tem muitas outras virtudes. Os críticos da Marvel falam que seus filmes têm muitas piadas. Dessa vez, podemos dizer que as piadas foram bem poucas e precisas, principalmente quando fazem galhofa com o imperialismo, usando termos como “colonizadores” ou fazendo pouco caso dos americanos. Ainda, a morte do vilão Killmonger (interpretado magistralmente por Michael B. Jordan) foi arrebatadora, pois T’Challa o leva para ver o pôr-do-sol em Wakanda e fala que seu ferimento pode ser curado, ao que Killmonger responde, se ele vai viver preso, é melhor que não, e pede que seu corpo seja jogado ao mar, da mesma forma que os africanos pulavam ao mar dos navios negreiros, pois sabiam que iriam viver presos e escravizados, preferindo a morte. Impossível segurar as lágrimas. Confesso que essa foi a primeira vez que chorei com a morte de um vilão da Marvel, esse sim um vilão com conteúdo, como falaremos mais abaixo.
Ainda relacionando o filme com a questão do imperialismo (isso é feito de forma bem vasta), há o seguinte debate: Wakanda, com sua avançada ciência e tecnologia, assim como a posse do vibranium, deve permanecer escondida do mundo para se proteger de invasões, guerras e explorações provocadas pelo mundo “civilizado” branco ocidental, ou deve se revelar ao mundo e ajudar nações africanas mais pobres, assim como pessoas da etnia negra que sofrem com a pobreza e o preconceito no mundo todo, já que Wakanda tem condições econômicas e tecnológicas para isso? A posição de T’Chaka, pai de T’Challa e antigo rei de Wakanda era o isolamento total para proteger o seu povo. Mas isso acabou fazendo com que o rei matasse o seu próprio irmão, que pensava justamente numa abertura de Wakanda para o mundo. Tal situação deixou Killmonger, que era o sobrinho do rei, órfão, e o rapaz iniciou uma cruzada cheia de ódio para tomar o trono de Wakanda, abrir o país e declarar guerra contra os antigos imperialistas, dando o troco em relação ao que os europeus fizeram com a África. Ele até parafraseou uma expressão da empáfia inglesa quando ela era uma potência imperialista no século XIX: “No Império Inglês, o Sol nunca se põe”, substituindo, na frase, a Inglaterra por Wakanda (os ingleses diziam isso, pois se gabavam de ter colônias no mundo inteiro). Ou seja, é da intenção de Killmonger fazer de Wakanda uma potência imperialista igual às mesmas que tripudiaram do continente africano. Assim, Killmonger é uma espécie de monstro criado pelo pai do mocinho da História, ou seja, o rei T’Chaka. E Killmonger, na ânsia de afirmar seu povo perante o colonizador branco, torna-se vingativo e agressivo. Isso é uma prova de que não temos aqui personagens planos, ou seja, mocinhos totalmente bonzinhos e bandidos totalmente maus. Os mocinhos erraram no passado, ao passo que até entendemos a raiva contida nos bandidos (embora não concordemos com seus procedimentos). Daí a afirmação que fiz acima de que temos um vilão com conteúdo nesse filme, onde sua maldade, embora não justificável, seja compreensível. Mocinhos e bandidos têm a sua visão de mundo, cada uma com suas virtudes e defeitos.
Ao fim, Wakanda se revela para o mundo e ajuda os mais necessitados, sem se envolver em guerras. Essa é a primeira cena pós-créditos, onde T’Challa discursa nas Nações Unidas, revelando as intenções de seu país e é recebido com sarcasmo pelos petulantes brancos. Um sorrisinho maroto do rei é a resposta igualmente sarcástica e um deboche com o sentimento de superioridade imperialista dos brancos.
E o elenco? Essa é outra grande virtude do filme. Não há a menor sombra de dúvida de que há uma segregação no meio artístico. As reclamações de falta de indicação de atores e diretores negros ao Oscar nos últimos anos corrobora essa segregação. Há menos espaço no meio artístico para negros, o que os obriga a serem extremamente talentosos. E aí, por incrível que pareça, nesse filme temos uma verdadeira constelação de estrelas negras, somente para parafrasear o samba enredo da Beija-Flor de 1983, quando venceu o carnaval daquele ano, assim como venceu o carnaval do ano presente. Comecemos por Chadwick Boseman. Ele já havia mostrado todo o seu talento no filme biográfico de James Brown, e com sua participação como Pantera Negra em “Guerra Civil” muito marcante também. Já Michael Bakari (nobre promessa em Swahili) Jordan dispensa apresentações. Suas atuações em “Fruitvale Station” e em “Creed” foram marcantes e testemunhas de seu grande talento. E Lupita Nyong’o? Mais outra muito conhecida de todos, não pela voz de Maz Kanata em “Guerra nas Estrelas”, mas pelo seu Oscar como coadjuvante em “Doze Anos de Escravidão”. Até hoje, o sofrimento de sua personagem naquele filme é de se levar às lágrimas. E aqui ela fez um excelente par romântico, mais empoderado do que nunca, com T’Challa. Ela estava simplesmente deslumbrante e elegantérrima! A atriz Danai Gurira, que interpretava a General Okoye, era a essência do empoderamento feminino num filme cuja etnia negra era o escopo principal. Okoye era a chefe da Guarda Real, as Dora Milaje, formada somente por mulheres que, no filme, mais lembravam a Grace Jones, mas na minha cabeça lembravam mais a Pinah, a antológica passista da Beija Flor. Sua combatividade e elegância combinavam maravilhosamente bem, saindo da boca da personagem as melhores tiradas contra os brancos, americanos e imperialistas em geral. A irmã de T’Challa, Shuri, interpretada por Letitia Wright, foi uma gratíssima surpresa, pois ela era a jovem cientista que inventava e produzia todas as inovações tecnológicas de Wakanda. Mesmo que alguns achem que ela pode parecer nova demais para o cargo, a moça não deixa de ser uma inspiração para um monte de meninas por aí que têm a sua idade e não têm qualquer perspectiva futura de vida. Daí a importância de tal personagem. Não podemos nos esquecer também de Daniel Kaluuya (de “Corra!”) e das participações, para lá de especiais, de Andy Serkis como um risonho Garra Sônica, do “Hobbit” Martin Freeman, de Angela Bassett, como a elegante Rainha-Mãe, e, para coroar a cereja do bolo, Forest Whitaker! Um filme, só por ter esse elenco, já é um grande presente para o espectador.
Assim, por todos esses motivos, ouso dizer que “Pantera Negra” é o melhor filme da Marvel de todos os tempos, se formos considerar roteiro e elenco. Esse é um filme diferente de todos os demais, estourando a escala em termos de qualidade, e será difícil de superá-lo, pois ele carrega um conteúdo e uma mensagem muito diferentes do que vimos até agora em todas as películas da Marvel. Elencar a África como algo positivo e nobre, acima das mesquinharias dos brancos colonizadores, foi uma tremenda jogada de mestre na luta contra o racismo e pelo respeito à diferença e tolerância. O filme deu o seu recado sem ser chato, piegas ou rançoso, transformando o negro em agente de transformação social ao invés de vitimizá-lo. Esse é o caso mais gritante de filme para se ver, ter e guardar. E um programa imperdível para todos, seja os fãs da Marvel, seja os cinéfilos de plantão.