O filme “O Estranho Caso de Angélica”, do consagrado cineasta português Manoel de Oliveira foi um filme cercado de grande expectativa à época que foi exibido, lá para os idos de 2013, 2014. O filme conta a história de um fotógrafo judeu de nome Isaac, que é chamado às pressas para fotografar uma jovem chamada Angélica que morreu precocemente e jaz sorridente em seu leito de morte. A partir daí, a vida do pobre fotógrafo se transforma radicalmente, pois ao tirar fotos da menina morta, ela “acorda” e dá sorrisos a ele. Seu susto inicial vai sendo substituído por um fascínio que leva a uma paixão, chegando às raias da obsessão doentia e do desespero, pois o fotógrafo Isaac somente pode confortar sua paixão nas grades fechadas do portão do cemitério onde Angélica está enterrada.
Durante o dia, Isaac anda como um zumbi sem rumo, à procura de sua amante morta, o que desperta fofocas entre as pessoas do povoado onde ele está. Devemos nos lembrar que ele é um judeu se comportando de forma estranha num povoado português onde todos são católicos praticantes, gancho que Oliveira usa para falar do estranhamento e preconceito para com o outro. Durante a noite, Isaac já está mais próximo de sua amada, pois seu pequeno quartinho de pensão está repleto de fotos de Angélica que se movimentam. E a própria figura fantasmagórica de Angélica surge na sacada buscando a alma de Isaac para dar umas voltinhas aéreas por aí. É literalmente um amor à primeira vista e uma paixão muito bem correspondida do outro mundo! Com esse êxtase ectoplásmico, a vida material de Isaac fica cada vez mais sem sentido e ele caminha a passos largos para a morte e para os braços de sua amada Angélica.
Mas, além de uma inusitada história de amor, Oliveira também aborda outros curiosos temas. O motivo pelo qual Isaac está na pequena aldeia é para retratar o trabalho artesanal dos agricultores em vinhas, algo que está em vias de extinção em virtude da modernização e mecanização da agricultura. Aliás, o embate tradição X modernidade é um tema desenvolvido com muita maestria no filme. Isaac, um jovem rapaz, se interessa em registrar elementos culturais antigos, como o trabalho nas vinhas de agricultores que usam enxadas e cantarolam para manter o ritmo de trabalho. Há um trabalhador que só canta as canções, que são retrucadas por um uníssono “Pumba!” ecoado pelos trabalhadores que golpeiam o chão com as enxadas, algo visto com desdém pelos próprios moradores da aldeia que não se preocupam com suas tradições, como faz a dona da pensão onde Isaac está hospedado e que estranha o interesse do jovem fotógrafo naqueles agricultores altamente rústicos. Elementos de tradição também podem ser vistos nos preconceitos já citados que os católicos nutrem contra nosso pobre e atormentado Isaac, que é judeu. Em contrapartida, há o núcleo de modernidade do filme, este composto por homens idosos que são cientistas, engenheiros, fazem pesquisa de ponta e têm altas discussões filosóficas sobre temas que vão da política à astrofísica. É curioso notar a presença de uma engenheira brasileira neste núcleo de personagens. Será que essa personagem está dentro daquela concepção de que, para ser moderno, deve-se aceitar incondicionalmente o estrangeiro? Outro dado curioso está no diálogo entre esses renomados cientistas sobre a situação econômica de Portugal, como se toda a modernidade presente nem sempre fosse benéfica de todo.
Ao analisarmos todos os elementos que permeiam esse filme, devemos aplaudir, e muito, esse diretor que é Manoel de Oliveira, pois mesmo do alto de seus 103 anos àquela época de realização do filme, ele continuava atual, reflexivo, crítico e, acima de tudo, muito criativo. Definitivamente, ele será lembrado sempre como um dos grandes diretores do cinema português.