Uma co-produção Espanha/Reino Unido/Alemanha passou em nossas telonas. “A Livraria” é um filme sobre sonhos e destruições. Um filme que deixa evidente aquela máxima de Sartre de que “O Inferno são os outros”.
Do que se trata a nossa história? Estamos numa pequena cidade do interior da Inglaterra, no ano de 1959. Florence Green (interpretada pela fofíssima Emily Mortimer) é uma jovem viúva que tem, dentre suas virtudes, o hábito pela leitura. Ela compra um antigo imóvel da cidade e pretende transformá-lo numa livraria, mesmo que a população local não tenha o mesmo gosto que ela tem pelos livros. Só que tal empreendimento não será fácil, pois Violet Gamart (interpretada por Patricia Clarkson) é uma moradora da cidade com poder suficiente para fazer o que quiser por lá. E ela deseja usar a casa de Florence para transformá-la num centro de artes. Caberá, agora, à viúva, a enfrentar a mulher mais poderosa da cidade para manter de pé o seu sonho de continuar com sua livraria. Mas essa não será uma tarefa nada fácil.
Esse é um filme, acima de tudo, de atores. Emily Mortimer faz uma protagonista à altura, pois sua doçura e delicadeza, regada à muita determinação, provocam uma empatia imediata no espectador. O simpático tema do gosto pela leitura (tão vilipendiado por aí e até no próprio filme por alguns personagens) é um elemento adicional que muito ajuda na construção da personagem principal. A veterana Patricia Clarkson, mesmo aparecendo pouco, e funcionando mais como uma ameaça velada que tramava sub-repticiamente, tinha uma enorme presença como antagonista quando tinha as suas cenas.
A doçura de Mortimer, aliada a antipatia de Clarkson provocou a clássica mocinha totalmente boa vs vilã totalmente má, sendo algo um tanto simplório, mas não menos instigante nessa situação. Há um elemento extra no filme, a presença do personagem Edmund Brundish (interpretado pelo eficiente Bill Nighy), um homem que perde sua esposa e se refugia em sua casa, lendo compulsivamente.
Seu relacionamento com a livreira trará toda uma suavidade à película, responsável talvez pelos melhores momentos de todo o filme, já que Nighy foi de uma elegância atroz, e a química com Mortimer funcionou maravilhosamente bem. É bem verdade que a película não se restringiu a apenas estes poucos personagens.
Outras figuras interessantes surgiram ao longo do filme, mas todas elas tinham algo em comum, que era estarem atreladas ao conservadorismo e esquema de poder da cidade, seja de forma voluntária, seja de forma compulsória. Alguns personagens eram menos interessantes e outros mais, sendo um deles decisivo num ponto chave do filme. Mas pararei aqui com os spoilers para não estragar surpresas.
Assim, “A Livraria” pode até não ser um daqueles filmes que fará grande diferença em sua vida, mas vale a pena dar uma conferida, pois é uma película com boas atuações, que tem uma atmosfera um tanto prosaica, mas que pode esconder o pior do ser humano, e um filme, acima de tudo, com um quê muito fofo que estimula o amor pela leitura, algo um tanto raro de se ver hoje em dia.
Roman Polanski volta a atacar (no bom sentido, é claro) com o seu novo filme “Baseado em Fatos Reais”. Esta película é uma adaptação do romance de Delphine de Vigan e é Polanski em estado puro, com todas as neuroses e até escatologias que têm direito na obra do diretor. Tudo isso regado a um bom suspense.
Vemos aqui a história de uma escritora, Delphine Dayrieux (interpretada por Emmanuelle Seigner), altamente renomada e esgotada, com sua grande popularidade, submetida a uma dura rotina de sessões de autógrafos e palestras. Numa dessas sessões de autógrafos, Delphine conhece Elle (interpretada pela sempre estonteante Eva Green), que diz ser uma fã da escritora. Num primeiro momento, há apenas uma conversa cordial entre as duas, mas, com o tempo, a fã se torna uma presença mais constante na vida de Delphine, sempre comparecendo nos eventos em que a escritora está e, paulatinamente, aproximando a relação entre as duas. Até que Delphine e Elle se tornam amigas muito próximas. Vai ser o início de uma amizade onde a fã tem um comportamento, digamos, obsessivo com seu ídolo, o que vai trazer muita dor de cabeça a já perturbada escritora.
Esse é um filme que incomoda o espectador, como todo bom filme de Polanski. A relação entre a escritora e sua fã é doentia, e com uma opressão da segunda sobre a primeira. Delphine fica mais afetada do que nunca, totalmente submissa nas mãos de Elle, que passa a controlar sua vida do jeito que quer. A escritora até tenta lutar contra a influência de sua fã, mas sua fragilidade emocional logo faz com que Delphine caia nas mãos da tresloucada Elle novamente. A coisa vai ficando cada vez mais barra pesada, entretanto vou acabar aqui com os spoilers, até porque haverá alguns elementos novos mais ao final.
Ficando na parte do filme apresentada aqui, esse tema da relação doentia e destrutiva entre duas pessoas não é algo propriamente inédito em cinema. A novidade reside na forma de como essa relação é tratada nos filmes. E aqui, a gente pode ver que a coisa foi feita muito bem, pois as atrizes conseguiram, em todo o seu talento, instigar a história. Seigner consegue ser muito convincente com seu semblante cansado e perturbado, com várias crises existenciais.
A ideia de fragilidade que sua atuação passa também é muito contundente e ficamos estarrecidos e angustiados de como ela fica vulnerável ao seu misto de fã e algoz. Algo agônico, digno do que a gente viu com Rosemary (isso mesmo, leitor que pegou a referência, a Rosemary do bebê, do antológico filme do Polanski). Já Eva Green, como ela foi sensacional! Sua interpretação foi muito deliciosa! Eu sou até suspeito para dizer, pois aprecio demais o seu misto de grande beleza e elegância infinita. Mas aqui Green acrescentou uma psicopatia perturbadora! A mulher subiu nas tamancas! Ela começou como a fã aduladora, mas elegantemente respeitosa. Num segundo estágio, tornou-se uma confidente e uma amiga bem próxima, digna de dar conselhos pessoais. Mais tarde, um leve ciúme, que paulatinamente se torna tenso e pesado, culminando com explosões de violência perturbadoras. Podemos até dizer que Green “polanskou” geral.
E me arrisco até a dizer que aqui a atuação de Green lembra (guardadas as suas devidas proporções, é óbvio!) Catherine Deneuve em “Repulsa ao Sexo”, outro filme de Polanski, onde a então jovem atriz conciliou enormemente, inocência, paranoia e venalidade, com direito a muita escatologia. Green, assim como Deneuve, conseguem ir além de seus status de musas e reúnem, com muita maestria, e em uma só personagem cada uma, características muito díspares. No caso de “Baseado em Fatos Reais”, só faltou a bateria sixty muito nervosa de “Repulsa ao Sexo”, que aumentava em muito a dramaticidade das ações tresloucadas de Deneuve. Enfim, foi uma atuação antológica de Green.
Dessa forma, “Baseado em Fatos Reais” é mais um bom filme de Polanski, com todas as características e intensidades do diretor. Um suspense perturbador, que ataca o psicológico dos personagens e do espectador, levando à paranoia e até à escatologia. Um filme do qual você não sai indiferente e que tem um bom plot twist ao seu final. Um programa imperdível não somente para os fãs de Polanski como para os fãs do bom cinema em si.
Uma comédia muito louca em nossas telonas. “A Noite do Jogo” é um daqueles filmes que brinca com plot twists. É uma história engraçada, descompromissada e que é ótima para te distrair numa tarde no cinema, sem qualquer intenção de desdém nessa afirmação.
A história é sobre pessoas que gostam de se reunir na casa de um amigo para jogar coisas do tipo a dedanha, qual é o nome do filme, ou até jogos de tabuleiro. Duas dessas pessoas, Max (interpretado por Jason Bateman) e Annie (interpretada por Rachel McAdams) são tão boas nos jogos que se conheceram e se casaram nas partidas. O problema é que Max tem um irmão, Brooks (interpretado por Kyle Chandler), que sempre foi melhor que ele em tudo. Brooks, uma certa vez, convidou Max, Annie e seus amigos para jogar em sua casa. Esse seria o jogo mais instigante de todos. Um agente policial chega à casa e começa a distribuir as tarefas. E um grupo de sequestradores chega e leva Brooks, para a diversão de todos. Mas, será isso apenas um jogo, uma brincadeira, ou tem alguma pitada de real nessa história.
Essa é a grande diversão do filme. Você não sabe quando as coisas são “reais” ou elas fazem parte do jogo. E aí, Max, Annie e seus amigos terão que libertar Brooks desses bandidos, o que vai levar a situações inusitadas, com algumas piadas sem graça, mas outras na medida certa. O que eu posso dizer é que o público se divertiu bastante com o filme, que teve lances hilários e outros bem surreais. O filme também não abriu mão das cenas de ação, com direito a perseguições de carro, sem perder o humor.
As charadas dos jogos foram um personagem à parte, pois eles não ficaram restritos apenas à sala e nos tabuleiros, mas também eram usados para resolver charadas que apareciam no processo de se salvar Brooks. Em alguns momentos, essas charadas foram bem engraçadas em momentos um tanto inusitados. Coisas que beiravam o pastelão, no bom sentido do termo.
Com relação aos atores, Jason Bateman esteve muito bem e engraçado e fez um par com boa química com Rachel McAdams, igualmente engraçada e a melhor coisa do filme. uma menção toda especial deve ser dada a Jesse Plemons, primeiro por sua semelhança com Matt Damon e, segundo, por fazer um policial divorciado que não conseguia se esquecer de sua ex-esposa. Ele conseguia ser melancólico e engraçado ao mesmo tempo, sendo uma ótima contribuição para o elenco.
Assim, “A Noite do Jogo” não vai acrescentar muito à sua vida, pois não mostra nenhuma reflexão relevante ou mensagem. Ele é galhofa pura, com o único intuito de rir com situações absurdas, surreais e inusitadas. Mas, quem disse que o cinema não pode ser apenas diversão? Um simpático filme com cara de Sessão da Tarde, que serve para desopilar o fígado e desestressar. Vale a pena dar uma conferida nesse, uma higiene mental básica para relaxar.
Um remake de um conhecido filme do passado está em nossas telonas. “Desejo de Matar” ressuscita o personagem do arquiteto Paul Kersey, interpretado por Charles Bronson lá no longínquo ano de 1974, agora na pele de Bruce Willis e com algumas pequenas alterações que nos fazem pensar e que infelizmente trarão os spoilers à baila. Então, se você pretende ver o filme, seria legal voltar aqui depois de assisti-lo.
Todo mundo conhece a história. Paul Kersey, agora um renomado cirurgião, é uma pessoa pacata que perde de forma extremamente violenta a esposa e sua filha fica vários dias em coma depois que assaltantes invadem a sua casa. E aí, o homem deixa de ser pacato e passa a fazer justiça com as próprias mãos, metendo bala nos canalhas por aí. Confesso que já vi a versão do Charles Bronson há um milhão de anos, mas o que a gente pode comparar aqui? Em primeiríssimo lugar, o Kersey de Bronson é o modelo mais arquetípico da figura controvertida do “cidadão de bem” que temos hoje: bom cristão, contra o aborto provavelmente e, com certeza, defensor da pena de morte, onde os bandidos que ele assassina são os “vagabundos” desalmados por excelência, pouco se importando com a vida original dos criminosos, por que eles entraram para a vida do crime, se são ou não vítimas da sociedade, etc. O negócio é passar o rodo mesmo, para satisfazer a necessidade de sangue do protagonista e da plateia. Para se medir o conteúdo WASP da coisa, em “Desejo de Matar 2”, havia até o célebre diálogo entre Bronson e sua vítima: “Crê em Jesus Cristo?”, “Sim”, “Então vai vê-lo de perto!” com os tiros logo em seguida. Em outro filme da série (foram cinco longas), Bronson ainda solta um “Vai com Deus” antes de executar o vagabundo. Mais ético e cristão impossível…
Já o Kersey de Bruce Willis é um pouco mais complexo. Para começar, há o dilema, por ser médico, de salvar ou tirar vidas. Enquanto nada acontece com sua família, ele encara seu ofício com frieza e naturalidade, não se importando quem é a pessoa que ele precisa salvar, como a boa ética médica exige. Pode ser um policial ou um bandido homicida. Entretanto, depois que a pimenta entra nos seus olhos, ele toma atitudes, digamos, pouco ortodoxas com relação a sua profissão. Ele não coloca qualquer entusiasmo no uso do desfibrilador quando trata de um dos bandidos da quadrilha que destruiu sua família. E fica meio implícito se foi ele ou não que crivou o meliante a bala.
Antes desse dilema médico moral meio que chutado para escanteio, o filme provocou outra reflexão. A esposa de Kersey (interpretada por uma envelhecida, mas ainda muito bonita Elisabeth Shue) era proveniente do Texas, um estado americano com alta fama de belicismo. Ao retornar do funeral, o sogro de Kersey, com o genro no banco do carona, para o carro, pega uma arma e passa fogo em caçadores ilegais. Noutro momento do filme, Kersey vai a uma loja de armas e é atendido por uma sensual lourinha que lhe mostra as opções da casa e ainda ressalta as facilidades da burocracia americana para você sair dando uns tecos por aí. Ou seja, um filme de ação onde motherfuckers serão sumariamente eliminados tem, num dado momento, a preocupação de criticar o pensamento belicista americano. Realmente não é uma coisa que se vê todo dia por aí. Entretanto, tal visão bélica passa a ser legitimada depois que Kersey percebe que a morosidade das investigações deixará os criminosos impunes. E aí, aquele momento de curiosa lucidez se desvanece na pirotecnia armamentista básica.
Ainda assim, o filme tem outros momentos de lucidez. Um programa de rádio questiona se é correto ou não fazer justiça pelas próprias mãos, lembrando que nesse programa o apresentador é negro. Já outro programa de rádio, que faz apologia ao “anjo da morte”, é apresentado por um gordinho branco. Mais maniqueísmo impossível. Uma questão é levantada: e se todo mundo resolve fazer justiça com as próprias mãos? A consequência disso aparece duas vezes: no ferimento provocado na mão de Kersey depois que ele dá um tiro, por não saber usar a arma direito (fica dado o recado a quem tentar cometer essa loucura por aí) e no caso de um aprendiz de justiceiro que, repetindo as atitudes de Kersey, acaba assassinado pelo bandido que pretende matar. O filme, cujo tema é a justiça pelas próprias mãos, ao mesmo tempo diz claramente: “Não faça isso na vida real senão você vai quebrar a cara!”. É o politicamente correto tentando consertar o politicamente incorreto nos filmes de ação.
A questão das mídias sociais do século XXI também é abordada no filme. Se o Kersey de Bronson matava seus vagabundos em paz, sem a vigilância de alguém, o mesmo não se dizer do Kersey de Willis, cujos primeiros homicídios foram filmados pelo celular de uma moça, colocados na internet e viralizados praticamente de forma instantânea, elevando Kersey ao status de celebridade em poucos segundos. O médico parecia se divertir com isso, mas, ao mesmo tempo, teve que calcular mais os seus passos enquanto buscava os assassinos de sua esposa que, confesso, acho que caíram no colo dele de forma um tanto fácil. Um pouquinho mais de investigação não faria mal ao filme, mesmo sendo ele de porrada, bomba e tiro declarado.
Dessa forma, esse remake de “Desejo de Matar” não deixa de trazer novos atrativos sem corromper demais a história original. Um filme belicista que critica o belicismo é, no mínimo, uma curiosidade que merece a nossa atenção. E ainda foi feita uma homenagem ao filme original bem ao fim da película, onde tanto Bronson quanto Willis “disparam” com os dedos contra um negro (obviamente) ao fim da película. Sei não, mas dessa vez soou com um extremo mau gosto. Não que a versão de Bronson não tenha sido de mau gosto, mas agora Willis parecia apontar sua “arma” para um trabalhador comum. Esquisito. De qualquer forma, vale a pena dar uma conferida nesta versão de “Desejo de Matar”.
E depois de perdermos Nelson Pereira dos Santos, nosso cinema sofre outro grande baque. Faleceu Roberto Farias, mais um importante nome de nossa cinematografia, aos 86 anos, depois de uma luta contra um câncer. Ele fez várias chanchadas da Atlântida, assim como o filme “Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-Rosa” e “O Fabuloso Fittipaldi”. Mas vai ser lembrado por “Pra Frente Brasil”, um filme que denunciava a tortura da ditadura militar e o seu conhecido “O Assalto ao Trem Pagador”, talvez o seu melhor filme. A Batata Espacial se solidariza com os que sofrem com mais essa grande perda e faz aqui uma pequena homenagem, exibindo “O Assalto ao Trem Pagador”. A Roberto Farias, nossa gratidão eterna pelo tanto que fez pelo cinema do Brasil. E a nós, restam os bons filmes e a saudade…