Vamos hoje começar a falar de alguns filmes que concorrem ao Oscar. A produção da Netflix “História de um Casamento”, de Noah Baumbach, concorre a seis estatuetas (Melhor Filme, Melhor Ator para Adam Driver, Melhor Atriz para Scarlett Johansson, Melhor Atriz Coadjuvante para Laura Dern, Melhor Roteiro Original para Noah Baumbach e Melhor Trilha Sonora para Filme), além de ter sido indicado para três Globos de Ouro (Melhor Atriz Coadjuvante em Filme para Laura Dern, que ganhou; Melhor Atriz em Filme de Drama para Scarlett Johansson e Melhor Ator em Filme de Drama para Adam Driver). Ou seja, mais um filme da Netflix que faz parte da boa estratégia da empresa de fazer grandes filmes para ganhar prêmios e elevar a marca. Para podermos falar desse filme, vamos lançar mão de spoilers.
A película fala do doloroso processo de separação de um casal, Charlie (interpretado por Adam Driver) e Nicole (interpretado por Scarlett Johansson). Ele é um diretor de teatro e ela é atriz numa peça dirigida pelo marido. A moça acha que, ao entrar na vida do marido, ela se anulou e ele, em seu egoísmo, não deu espaço para ela crescer de forma autônoma enquanto indivíduo. Os dois haviam combinado que a separação seria amigável, sem advogados. Mas Nicole foi convencida por uma amiga a procurar uma advogada, Nora Fanshaw (interpretada por Laura Dern), que tem uma postura agressiva no seu procedimento profissional e convence a moça a lutar por seus direitos, não dando qualquer margem para Charlie no processo. Charlie, por sua vez, vai precisar contratar outro advogado agressivo, Jay Marotta (interpretado por Ray Liotta). A inclusão desses dois advogados no divórcio somente deixou tudo mais complicado. A vida de Charlie e Nicole ficou totalmente exposta, com os dois advogados expondo de forma muito agressiva, os defeitos de marido e esposa, além do fato de que os dois gastaram rios de dinheiro para pagar os honorários e ficaram numa situação financeira difícil. O grande fator de discórdia é que Nicole queria viver em Los Angeles enquanto que Charlie tinha melhores oportunidades profissionais em Nova York. Para piorar a situação, eles ainda tinham um filho pequeno, onde a guarda dos dois também era disputada.
Ficou-se aqui a impressão de que, se o casal não tivesse colocado os dois advogados no meio e eles decidissem tudo em acordos verbais, teria sido tudo bem mais fácil. O filme provoca uma angústia muito forte na gente, pois sabemos que todo o processo doloroso que vemos é algo bem real e palatável, onde qualquer um de nós pode estar sujeito a isso. Ou seja, a película, ao fim das contas, é um violento choque de realidade do começo ao fim, sem direito a final feliz ou plot twists. Tanto que o desfecho do filme dá a impressão de que a história daqueles personagens não acabou, que somente ela foi contada até um certo ponto e que a vida continua, não sendo mais contada pela película.
Com relação aos atores, Laura Dern tem uma grande participação, sendo que seu Globo de Ouro é indiscutível. Mas esse é realmente um filme dos atores protagonistas, Adam Driver e Scarlett Johansson. Os dois foram simplesmente primorosos, tanto no que tange a levar o processo de forma amigável, passando pelos pequenos conflitos e culminando na catarse da grande discussão que os dois tiveram, onde um disse o que quis na cara do outro, como se purgassem todas as suas decepções ferindo um ao outro o máximo para, depois do paroxismo, pedirem desculpas um ao outro, decidindo o desfecho da relação de forma amigável. Foi pesado e triste, o que atingia o espectador em cheio. O único problema aqui foi que o tempo de tela de Driver pareceu maior que o tempo de tela de Johansson, quando parecia mais justo que os dois tivessem o mesmo destaque no filme. cabe fazer um pequeno destaque para a presença de Mary Wiseman, a Tilly de “Jornada nas Estrelas, Discovery”, como uma das atrizes da companhia de Charlie. Só que ela entrou muda e saiu calada do filme.
Dessa forma, “História de um Casamento”, é mais um grande filme que concorre ao Oscar e que já mostrou sua força no Globo de Ouro. Foi mais uma grande oportunidade que tivemos de ver dois atores de franquias mais pop (Adam Driver e Scarlett Johansson) trabalhando em filmes de drama, mais com os pés no chão, onde o choque de realidade é o grande protagonista. Uma boa aposta na Netflix que vem em peso no Oscar desse ano.
E finalmente temos a esperada série “Picard”. A expectativa nos últimos meses reunia um misto de certo otimismo, desde o último trailer, recheado de fan services, mas também com uma certa apreensão, dados todos os problemas que vimos nas duas temporadas de Discovery. Por isso mesmo, não sabíamos bem o que se esperar de “Picard”. Para podermos analisar o episódio, vamos lançar mão de spoilers.
E o que podemos dizer desse primeiro episódio, “Recordações”? Ainda é muito cedo para se traçar um rumo, mas já dá para a gente fazer algumas observações. Num primeiro momento, parece que temos um bom roteiro. O episódio começa com Jean Luc Picard tendo um sonho onde joga cartas com Data, mas esse sonho culmina com uma explosão de Marte e a destruição da Enterprise D. Quando o almirante reformado acorda, ele se encontra na vinícola da família, o Chateau Picard. A história passa, então, para Boston, no apartamento da jovem Dahj, onde ela conversa com seu namorado. Mas eles sofrerão um ataque de três homens com os rostos cobertos. O namorado de Dahj será assassinado e eles imobilizarão a moça, perguntado pelos “outros”. Dahj estranhamente reage, no que os homens encapuzados dizem que ela “está ativando” e eles são mortos pela moça, em cenas de ação com lutas mirabolantes. Dahj tem uma visão com Picard.
Voltando ao Chateau Picard, o almirante irá dar uma entrevista para a TV e é preparado por seus assistentes Laris (interpretada por Orla Brady) e Zhaban (interpretado por Jamie McShane). Aparentemente, os dois são romulanos, como descobriremos mais tarde. Na entrevista, descobrimos que Romulus e Remus não existem mais em virtude da explosão de sua estrela em supernova (uma referência a Kelvin Time Line). Na entrevista, Picard é questionado se valeria a pena, na época da explosão, o reassentamento de 900 milhões de vidas romulanas, já que eles são os mais antigos inimigos da Federação. Picard, com sua visão humanista, bate na tecla de que salvar as vidas romulanas era o certo a se fazer. A repórter também se lembra de uma rebelião de formas de vida sintéticas (andróides) que destruíram Marte e a frota de resgate. Picard retruca dizendo que não entendeu por que as formas de vida sintética se rebelaram. A repórter quebra um acordo prévio e pergunta por que Picard abandonou a Frota, no que este retruca dizendo que a Frota não era mais a mesma, pois abandonou, de forma criminosa, uma missão de resgate aos romulanos. Irritado com a frieza da repórter em questões de guerra, Picard abandona a entrevista. Enquanto Picard fala, indignado, do abandono, promovido pela Federação, da missão de resgate aos romulanos, Laris e Zhaban dão as mãos, o que é uma evidência de que os dois são romulanos. Dahj vê a entrevista de Picard num monitor de vídeo na rua e decide procurá-lo. A moça o encontra e conta a ele do ataque que sofreu e de como matou todos os três invasores involuntariamente, além da visão que ela teve de Picard. Dahj diz que tem uma lembrança antiga de Picard, mas não sabe como expressá-la. Num dos outros sonhos de Picard com Data, ele vê um quadro que o andróide está pintando. Picard acorda do sonho e vê o mesmo quadro em sua sala. Ainda, vai aos Arquivos da Frota Estelar em São Francisco ver um dos quadros pintados por Data no seu espólio particular. O quadro, o mesmo do sonho, tinha uma imagem feminina com a figura de Dahj. A pintura se chama “Filha”. Dahj, que havia fugido do Chateau Picard, se encontra com o almirante em São Francisco depois de sua mãe a convencer a voltar para Picard (como mãe sabia disso, pergunta Dahj, ficando uma ponta solta). O almirante conta a moça sobre Data, a pintura e o nome Filha. Picard acredita que Dahj possa ser filha de Data, mas esta se mostra cética quanto a isso. Picard e Dahj são perseguidos pelos homens encapuzados e a moça é morta. Um dos capuzes caem e Picard percebe que o homem é romulano. Picard decide investigar quem estava atrás de Dahj para matá-la. Picard vai ao Instituto Daystrom em Okinawa para perguntar se é possível fazer um andróide de carne e osso. A cientista Agnes Jurati diz categoricamente que não e Picard retruca dizendo que conheceu uma andróide de carne e osso. A doutora Jurati diz que o Instituto está proibido de fazer “sintéticos” desde a rebelião em Marte. Jurati mostra a Picard o B-4 desmontado e disse que o Data tentou passar sua rede neural para B-4 e não conseguiu, por B-4 ser inferior. Aliás, ninguém mais conseguiu reproduzir a rede neural do Data. Somente Bruce Maddox chegou bem perto, mas o programa foi abortado em virtude do ataque em Marte. Maddox desapareceu, altamente frustrado. Picard mostra o colar de Dahj para Jurati e esta diz que esse colar é o símbolo de uma clonagem neuronal fractal, ou seja, a idéia de que toda a rede neural de Data poderia ser recriada a partir de um único neurônio positrônico. Dahj poderia muito bem ser a manifestação disso. Mas a cientista ainda disse que esses andróides seriam recriados em pares. Logo, há outra versão gêmea de Dahj por aí. A essência de Data poderia estar preservada nessa outra Dahj. O episódio termina num local reivindicado pelos romulanos, onde Narek conversa com a Doutora Asha, a gêmea de Dahj, e que tem o mesmo colar. Os dois estão dentro de um cubo borg semi-destruído, com várias naves romulanas da época da série clássica voando para lá e para cá.
Como
podemos perceber, parece que temos uma boa história aqui. O problema é como ela
será desenvolvida nos próximos episódios. Ate porque Discovery, na minha
modesta opinião, tinha boas idéias, só que não foram muito bem desenvolvidas.
Quais são as virtudes do primeiro episódio de Picard? Em primeiro lugar, a
visão distópica da Federação, apesar de estranha, é retomada. Já vimos essa
distopia em outros momentos de Jornada nas Estrelas. Ainda no sexto longa da
tripulação clássica, “A Terra Desconhecida”, ela já se apresentava, sendo mais
bem trabalhada em Deep Space Nine, sobretudo com a Seção 31, trabalhada de
forma pouco satisfatória na Kelvin Time Line, e trabalhada de forma exagerada e
descuidada em Discovery. Aqui, vemos uma Federação relutante em ajudar os
romulanos, um plot semelhante à Terra Desconhecida. A grande revolta dos
sintéticos viola um pouco a visão asimoviana das Três Leis da Robótica (que
exalta os robôs) e ressuscita o já batido mito de Frankenstein. Mas vemos aqui
uma ligação entre os romulanos e os “sintéticos’, sobretudo porque são
romulanos que caçavam Dahj. Trazer a “filha” de Data de volta é algo bem
interessante, pois temos uma chance aí de nosso querido andróide não retornar
apenas nos sonhos de Picard. Ou seja, a figura de Data pode ser resgatada a
partir de suas supostas filhas.
Foi muito legal, na minha opinião, ver Picard ter dois assistentes romulanos, cujos atores estavam muito bem em seus papéis, num indício de que toda a questão da evacuação romulana mal sucedida realmente influenciou Picard, a ponto dele trazer romulanos para o seu círculo de convívio íntimo. Houve uma excelente química ali entre os três e espero que isso seja mais trabalhado na série, até para que esses bons personagens romulanos sejam mais bem construídos, algo que não aconteceu, por exemplo, com aquele rosário de personagens da ponte de Discovery.
Outro elemento que chama a atenção é o cubo borg semi-destruído ocupado pelos romulanos com aves de rapina da série clássica em profusão. Se todas essas idéias estiverem bem amarradas e conectadas, creio que teremos uma boa primeira temporada.
Mas esse primeiro episódio também tem seus probleminhas. O primeiro é algo inevitável, já que faz um pouco parte de nosso Zeitgeist: as malditas lutas de caratê que são as cenas de ação indispensáveis nas séries de hoje. Toda aquela coisa baseada em debates e discussões com pouca ação que víamos na Jornada nas Estrelas da década de 90 já não cabem muito aqui. Volta e meia o pau tem que cantar, da forma mais coreografada e acrobática possível, até para atrair um público mais jovem para a franquia. Fazer o que? Paciência. Mas o segundo problema me preocupou mais um pouco, que já apareceu em Discovery e é o de fazer uma ficção científica muito elaborada e ornamentada. Os mais antigos diziam que a boa ficção científica antecipa o futuro, como vimos em Júlio Verne, Isaac Asimov e na própria Jornada nas Estrelas. O problema é quando os voos de imaginação são altos demais e muito escapam da coerência e da realidade. Eu me refiro a isso na sequência da doutora Jurati. Num primeiro momento, ela diz que é impossível fazer um andróide de carne e osso e matriz positrônica igual à do Data, com consciência. Aí, o Picard aparece com um colar que é o símbolo de uma sofisticada clonagem neuronal fractal, onde um andróide do mesmo modelo do Data pode ser gerado a partir de um único neurônio positrônico. Cá para nós, achei essa explicação Mandrake demais. Talvez fosse melhor citar que o Dr. Soong tivesse guardado um back-up da rede neural do Data em algum lugar, pois é algo mais plausível se fazer mil cópias de uma invenção altamente sofisticada para não se perdê-la. E que as memórias do Data conseguissem ficar armazenadas em B-4. Ou seja, não se complicar muito as coisas nessa suposta (esperemos nós) recuperação do Data.
Dessa forma, apesar dos problemas citados, parece que “Jornada nas Estrelas Picard” tem uma boa história sendo gestada pelo que pudemos ver no primeiro episódio. O detalhe será justamente como essa história será desenvolvida. A meu ver a receita é ser criativo sem ser mirabolante. Uma ficção científica enxuta, com uma boa história a ser contada e uma distopia bem construída. Vamos ver o que vem por aí nos próximos episódios.
Um filme russo que representa o seu país na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. “Uma Mulher Alta” é uma história sobre o pós-Segunda Guerra Mundial e de como o conflito conseguiu transformar de forma radical a vida das pessoas. Um filme forte e doloroso. Para podermos compreender melhor a película, vamos ter que lançar mão de spoilers.
Vemos aqui a história de um hospital na Leningrado de 1945 que cuida dos soldados feridos da guerra. A enfermeira Iya (interpretada por Viktoria Miroshnichenko) é a tal mulher alta, que combatia na linha de frente e ficou com um trauma de guerra onde ela temporariamente “sai do ar”, ficando imóvel e travada (ela não escuta, não consegue se mexer e mal consegue respirar). Iya cuida de Paschka, o filho pequeno de sua amiga (e amante) de front Masha (interpretada por Vasilisa Perelygina), mas ao brincar com o menino, ela tem uma de suas crises e cai sobre o garotinho, matando-o sufocado. Masha volta do front para se reencontrar com Iya e descobre que ela matou seu filho involuntariamente. Mas Masha não liga muito para a situação e decide que outro filho deve ser feito. O problema é que Masha volta do front com ferimentos e cirurgias que retiraram a sua capacidade de ter filhos. Assim, ela combina com Iya que esta deve engravidar para lhe dar um filho, algo que será muito difícil para a mulher alta fazer.
É um filme angustiante, onde o grande vilão é a guerra, que traumatizou Iya, que tirou de Masha a capacidade de ter filhos e a transformou na verdade num objeto sexual dos militares, já que a moça na verdade não atuou no front, mas sim na parte de logística, onde teve que entregar seu corpo para sobreviver num meio tão adverso. Masha chega a lançar mão da paixão de um rapaz para obter comida, como ela fazia nos tempos de guerra, mas seus planos de casar com o rapaz por interesse são rechaçados pela família do jovem e por Iya morta de ciúmes. Ou seja, todas essas situações provocadas pela guerra e com efeitos na vida de todos até após do conflito.
Dessa forma, “Uma Mulher Alta” é um grande filme russo que não é nenhuma surpresa sua presença entre os finalistas ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Apesar de ser uma história de ficção, ela muito bem poderia ser real, já que mostra como a guerra provocou sequelas profundas na vida das pessoas, podendo se manter até depois do conflito. Vale muito a pena dar uma conferida nesse programa imperdível.