Dando continuidade às nossas análises de episódios de “Jornada nas Estrelas”, falemos hoje do episódio piloto de “Deep Space Nine”, intitulado “O Emissário”. Essa nova série é considerada “o lado negro de Jornada nas Estrelas. Para podermos entender isso, vamos analisar o plot desse episódio duplo de cerca de noventa minutos.
O episódio começa com a Batalha de Wolf 359, onde Locutus ataca as forças da Frota Estelar, provocando um grande estrago. Nessa batalha, a esposa de Benjamin Sisko, Jennifer, acaba morta, algo que Sisko não vai conseguir perdoar em Picard. É uma sequência inicial bem angustiante e nos dá a medida exata do que Sisko sofreu em Wolf 359.
Três anos depois, o Comandante Sisko e seu filho Jake conversam na beira de um lago. O pai tenta convencer o menino a viver com ele numa estação espacial perto de Bajor. Jake reluta, mas Sisko consegue convencê-lo. Na verdade, eles estão num holodeck e a nave já está próxima à estação, que é vista pela escotilha. Só para lembrarmos, essa era uma estação cardassiana, que está sendo ocupada pela Federação, que servirá como mediadora entre Cardassia e Bajor depois de quarenta anos de guerra, onde os primeiros subjugaram os segundos. Caberá a Sisko comandar a estação, onde ele contará com a ajuda de Miles O’Brien. Os cardassianos, antes de saírem da estação, praticamente a depenaram e mataram os bajorianos que lá estavam. Sisko se depara com um bajoriano que o convida a conhecer os profetas, ao passo que o Comandante declina, dizendo que pode fazer isso em outra hora. A Enterprise está atracada à estação e O’Brien diz a Sisko que Picard quer vê-lo. Jake fica incomodado com o estado da estação e Sisko retruca dizendo que até que tudo se ajeite, eles vão ficar em desconforto mesmo.
Sisko conhece a representante de Bajor na estação, a Major Kira, e percebe que ela tem um temperamento muito forte, dizendo que não quer a Federação lá, pois os cardassianos ficaram por lá 60 anos e agora é a vez da Federação. Sisko diz que fez questão de que seu primeiro oficial fosse de Bajor, mas a conversa foi interrompida por um alerta de invasão que Kira teve que ir resolver. Sisko vai junto e temos um furto em progresso, feito por um jovem ferengi e um alienígena. Os ladrões são rendidos com a ajuda de Sisko, onde ele vai conhecer o chefe de segurança Odo. O jovem ferengi é Nog e Quark aparece para tentar tirar o sobrinho daquela enrascada, mas Sisko ordena a prisão de Nog. Kira disse que o menino devia estar seguindo as ordens de Quark e Sisko disse que vai usar Nog como moeda de troca com Quark, de acordo com a tradição ferengi. A Enterprise insiste na chamada de Sisko e ele se encaminha para lá. Picard recebe Sisko cheio de formalidades e este diz que os dois já se conhecem, pois Sisko estava na Saratoga em Wolf 359, para espanto de Picard, que se emudece sobre a questão e começa a falar da querela entre os cardassianos e bajorianos, onde os primeiros roubaram os recursos dos segundos. Picard disse que quer que os bajorianos entrem para a Federação, mas que há várias facções, algumas ainda atacando os cardassianos. A missão de Sisko será preparar os bajorianos para se fliarem à Federação, mas sem descumprir a Primeira Diretriz. Picard disse que se informou da oposição de Sisko a essa missão e que depois de passar alguns anos em Utopia Planitia, que ele estivesse mais preparado para assumir a missão. Sisko retruca que precisa criar seu filho sozinho e que seu filho não está num ambiente ideal. Picard lamenta que os oficiais da Frota nem sempre estejam numa situação ideal e Sisko diz que sabe disso e está pensando em voltar à Terra como civil. Picard diz que vai procurar um substituto. Sisko retruca dizendo que nesse meio tempo fará o seu melhor para cumprir a missão. Picard dispensa Sisko depois dessa conversa muito tensa.
Sisko quer que Quark permaneça na estação com o seu negócio, para manter um comércio (honesto) e seja uma espécie de “líder comunitário”. O ferengi quer ir embora, mas Sisko o chantageia dando a entender que Nog ficará muito tempo na prisão se isso acontecer. Odo se delicia com a saia justa de Quark.
Sisko conversa com Kira sobre o governo provisório bajoriano e ela não acredita que ele continue de pé nem que a Federação permanecerá lá, dando lugar a uma guerra civil. Só quem pode impedir isso seria Kai Opaka, a líder espiitual de Bajor, pois somente a religião une o povo de Bajor. Kai Opaka geralmente vive reclusa. Sisko recebe novamente a visita do bajoriano do início do episódio, dizendo que “está na hora”. Sisko vai a Bajor e é recebido por Kai Opaka, que pergunta se Sisko já explorou seu pagh, sua força de vida (uma vida espiritual), e que ele era muito aguardado. O pagh seria reabastecido pelos profetas. Opaka leva Sisko a uma espécie de gruta e lhe apresenta a “lágrima do profeta” (na verdade, a orbe dos profetas). Ele acaba indo para uma espécie de alucinação onde ele está no dia em que conhece sua esposa na praia. De repente, a alucinação desaparece, e Opaka diz que há nove orbes daquele tipo que apareceram no céu nos últimos dez mil anos e que os cardassianos pegaram as outras. Será tarefa de Sisko achar o templo celestial antes dos cardassianos. As orbes foram enviadas pelos profetas para ensinar a teologia dos bajorianos e os cardassianos fazem de tudo para decifrar os poderes das orbes. Se o cardassianos descobrirem o templo celestial, eles podem destruí-lo. Opaka entrega a orbe para Sisko achar o templo celestial, e ele fará isso pelo seu pagh, que é uma coisa para a qual ela já está destinado há muito tempo, para a perplexidade do Comandante.
Sisko é chamado por Kira ao Promenade e lá o Comandante vê Quark e seu bar com os jogos de azar. Numa conversa entre Sisko e Quark, este último dá uma alfinetada no Comandante no que se refere a chantagem de Sisko usando Nog. A Enterprise deixará a estação e, ao mesmo tempo, chegam o oficial de ciências e o médico. São, respectivamente, Jadzia Dax e Julian Bashir. Como todos sabemos, Dax é uma trill que tem um simbionte que é um amigo de velha data de Sisko. Por isso mesmo, ele vive chamando a bela Jadzia de “meu velho”, pois antes o simbionte estava no corpo de Curzon Dax, um respeitável senhor. Já Bashir estava impressionado com as más condições do local e era isso mesmo que ele queria: um lugar complicado e selvagem, onde está a aventura e a oportunidade de se tornar um herói, um lugar selvagem. Kira, que estava com ele, retruca dizendo que “aquele lugar selvagem era seu lar”, deixando Bashir muito sem graça. Confesso que não gostei muito dessa apresentação de Bashir, um personagem que gosto muito. Ele pareceu infantil, tentando paquerar Dax toda hora, e esse comportamento de ver regiões de fronteira como “selvagens” não parece se enquadrar muito numa mentalidade avançada de século 24.
Sisko dá a Dax o trabalho de analisar a orbe, quando deveria ser ele a fazer isso. Dax, ao tocar na orbe, é remetida à alucinação do dia em que ela recebeu o simbionte de Curzon Dax, para entendermos melhor a personagem. Já O’Brien se despede de Picard na Enterprise e volta para a estação, com a nave deixando a atracação e indo embora.
Chega Gul Dukat, o cardassiano responsável por governar Bajor durante a ocupação. Dukat diz a Sisko que não queria ter saído de sua sala, agora ocupada por Sisko, e o comandante diz, ironicamente (a ironia é a tônica dessa série, praticamente um personagem à parte) que ele pode voltar quando quiser para matar a saudade. Dukat disse que quer ajudar nesse momento difícil, mas dá a entender que pode atacar a Federação e Bajor quando quiser. Sisko diz que vai manter o “cão fora do seu quintal”. Dukat pergunta sobre o encontro de Sisko com Opaka e a orbe que está em poder dele. Dukat quer trocar informações sobre a orbe. Sisko desconversa. Dax, ao investigar dados históricos, encontrou uma região do espaço provável onde possa estar o templo celestial (relatos de naves que viram o “céu abrir”), mas os cardassianos estão por perto para Sisko investigar isso.
Kira fecha o estabelecimento de Quark, onde muitos cardassianos estão ganhando barras de ouro paralatinum. Os cardassianos esconderam todo o dinheiro numa parede de um dos corredores. O saco onde estava o dinheiro na verdade era um disfarce de Odo.
Sisko e Dax vão para o espaço a bordo da nave auxiliar Rio Grande para investigar a região do espaço encontrada na pesquisa histórica da orbe. Eles partem em segurança, pois Odo sabotou as redes de energia, comunicação e detecção dos cardassianos. Chegando à região de destino, Sisko e Dax entram numa enorme fenda espacial (ou buraco de minhoca. Eles saíram a setenta mil anos-luz de Bajor, no quadrante gama. Sisko suspeita que os orbes chegaram a Bajor por esse buraco de minhoca que deve estar ativo há dez mil anos. Então, eles concluíram que descobriram o primeiro buraco de minhoca estável conhecido. De volta ao buraco e minhoca, a velocidade da nave diminuiu e eles pousaram em algo. Sisko sai da nave e vê um ambiente estéril e com tempestades elétricas. Já Dax vê uma bela paisagem verdejante. Uma sonda de energia os escaneia e, quando Sisko tenta fazer contato, é bombardeado, juntamente com Dax, por uma forte energia da sonda, que aprisiona Dax. Sisko fica na fenda, enquanto que a sonda sai dela. O’Brien e Kira teletransportam a sonda e Dax aparece. Já Sisko começa toda uma discussão metafísica sobre tempo com os profetas, que são a espécie alienígena que mora no buraco de minhoca e que são venerados como deuses pelos bajorianos.
Kira pretende mover a estação para próxima do buraco de minhoca por questões estratégicas. Dax acredita que o buraco de minhoca foi construído artificialmente. Odo tem interesse em ir à região do buraco de minhoca, pois ele foi achado lá e não há outros da espécie dele. Odo acredita que o buraco de minhoca pode dar as respostas sobre sua origem. Ele se junta a equipe que irá resgatar Sisko. Mas a nave auxiliar já encontra os cardassianos indo para o buraco de minhoca. Eles pedem a Gul Dukat que não vá, mas este se nega e continua a se dirigir para o buraco de minhoca.
A conversa filosófica de Sisko com os profetas é interrompida pela passagem da nave cardassiana pelo buraco de minhoca. Os profetas acham que as espécies alienígenas que trafegam pelo buraco de minhoca são uma ameaça. Sisko argumenta com eles que os humanos não são uma ameaça e a discussão filosófica continua, falando da linearidade do tempo, da busca do homem pelo desconhecido, etc. Para a nave auxiliar, o buraco de minhoca desapareceu, assim como os cardassianos. Mas a estação já está próxima às coordenadas onde o buraco de minhoca apareceu. Naves cardassianas chegam à estação e não acreditam na história do buraco de minhoca, ameaçando explodir a estação. Mas dão uma hora para Kira provar que não foi a estação que destruiu a nave cardassiana desaparecida. Kira decide ir para o ataque e começa uma batalha entre a estação e os cardassianos.
Sisko, ao conversar com os profetas, é remetido às suas lembranças do passado e ele recorrentemente se depara com a morte da esposa em Wolf 359. Ele não entende por que tem que passar por tudo aquilo de novo e os profetas dizem que ele existe lá, ou seja, ele não consegue purgar sua forte dor do passado. Os profetas dizem que essa escolha de Sisko em ficar preso ao passado não é linear como o tempo que Sisko falou para eles.
Quando a batalha parecia perdida, Dax detecta o buraco de minhoca se formando e Sisko aparece com a Rio Grande puxando a nave de Gul Dukat com o raio trator (o cardassiano teve alguns problemas no quadrante gama, segundo Sisko). Dukat exige que os cardassianos parem de atacar a estação. De volta a estação, Sisko a encontra semi-destruída com treze feridos. Mas, pelo menos, os profetas permitiram o livre trânsito de naves pelo buraco de minhoca.
A Enterprise retorna à estação, o que faz com que os cardassianos se afastem. Sisko e Picard se reencontram e este último fala que o comandante conseguiu colocar Bajor numa posição de destaque com o buraco de minhoca, pois Bajor vai se tornar um grande entreposto comercial. Sisko pede para não mais ser substituído e consegue se conciliar com Picard, pois tirou das costas o peso do passado depois do encontro com os profetas. O episódio termina com várias situações cotidianas que a estação irá enfrentar.
O que podemos falar desse episódio piloto? Em primeiro lugar, o clima pesado e mais distópico, algo que era um pouco estranho à Jornada nas Estrelas até então. A batalha sangrenta em Wolf 359 contra Locutus e a perda severa de Sisko são o cartão de visitas para essa série mais sombria de Jornada nas Estrelas. O tom pesado continua quando Sisko recebe uma estação espacial totalmente caótica e entra em contato com personagens fortes como Kira, Odo e Quark. O comandante percebe que, para sobreviver nesse meio, precisa também ser duro. E já começa chantageando o ferengi Quark, usando seu sobrinho Nog como moeda de troca para colocar a estação em ordem e dar uma vida social ao novo ambiente. Mas esse não será o único gesto distópico do comandante. A conversa dele com Gul Dukat também já apresenta no episódio piloto um personagem à parte que será a tônica da série: a ironia, o sarcasmo. Os diálogos irônicos permeiam todas as temporadas e, se foram responsáveis por deliciosos momentos ao longo de toda série, também provocaram uma inquietação, pois a uma certa altura das temporadas, parecia que todos os personagens eram eivados daquela ironia e cinismo, forçando-nos a se perguntar se todo aquele sarcasmo era mesmo característica dos personagens ou dos roteiristas.
Outro detalhe interessante e que também nunca havia entrado com tanta força em Jornada nas Estelas: a questão da religiosidade. Totalmente purgada por Gene Roddenberry, a religião entrou como tema para discussão com força total nessa nova série, a ponto de o protagonista principal ser pintado em tons messiânicos pelos bajorianos. Sisko como o emissário entrará em contato com os profetas no buraco de minhoca, além de ter sido ciceroneado por Kai Opaka, a líder religiosa suprema de Bajor, que vivia reclusa para a maioria dos bajorianos. É claro que essa religião é relativizada na série e os profetas, que seriam os deuses bajorianos, nada mais são do que uma espécie alienígena que habita o buraco de minhoca. No contato de Sisko com os profetas, tivemos os debates filosóficos do episódio, onde foi discutida a linearidade do tempo, a busca dos humanos para elucidar o desconhecido, etc. Tal discussão ficou um pouquinho enfadonha a meu ver, e foi responsável pela descontinuidade no roteiro do episódio. Mas, pelo menos, ela serviu para purgar os tormentos de Sisko, que ficava preso ao seu passado da perda da esposa e o tornava uma pessoa desanimada a prosseguir com sua missão, além de ter sido muito ríspido com Picard, outra sequência pesada do episódio.
Dessa forma, esse foi um bom piloto para “Deep Space Nine”, principalmente pela então nova proposta de contexto distópico de espaço profundo numa região de fronteira recentemente saída de uma guerra, que propunha algo diferente em Jornada nas Estrelas até então, lembrando sempre que essa distopia se passava bem distante da Federação e de suas ideologias utópicas, preservando-as. A questão da discussão da religiosidade foi outro elemento novo introduzido em Jornada nas Estrelas. Mas creio que o grande trunfo desse episódio foi a variação de personagens de características fortes como Kira, Gul Dukat, Odo, Quark e O’Brien. Num primeiro momento, Dax e o Dr. Bashir pareciam um pouco fora de contexto, sendo personagens mais brandos e menos carismáticos. Mas, com o tempo, vimos que esses dois personagens também se integraram bem na série. DS9 se tornaria uma das séries mais amadas de Jornada nas Estrelas para muitos fãs.