Dando sequência às nossas análises de séries de Jornada nas Estrelas, vamos retornar à série clássica e analisar o segundo episódio da primeira temporada, intitulado “Sal da Terra”.
A Enterprise orbita um planeta, que tem as ruínas de uma civilização antiga. Kirk, McCoy e um tripulante descem à superfície para fazer exames médicos no arqueólogo Robert Crater e sua esposa Nancy. O problema aqui é que Nancy é um antigo caso de McCoy. Eles entram na morada do arqueólogo, mas não o acham. Nancy chega e cumprimenta McCoy. Para o médico, ela parece jovem como na época do relacionamento entre os dois. Para Kirk, ela é uma distinta senhora. E para o tripulante, ela é a cara de uma moça pela qual ele se apaixonou no passado. Vendo a perturbação do tripulante, Kirk pede que ele saia. Mas Nancy sai para procurar seu marido, e seduz o tripulante, que vai atrás dela. Aqui podemos ver algo muito datado, que é a mulher seduzindo um homem, com ela sendo vista como um mero objeto sexual. Ecos da década de 60…
Após a abertura, o Dr. Crater entra na sua morada, espraguejando que tem que fazer o exame médico. McCoy, com sua rabugice habitual, e Kirk insistem que o exame médico é procedimento da Federação. Eles começam a falar de Nancy. McCoy a vê jovial. Kirk fala de seus cabelos brancos, se desculpando ao arqueólogo dizendo que a esposa dele é bonita, mas já passou dos 25 anos (outro preconceito machista da época sessentista detectado, mostrando a predileção dos varões pelas novinhas, que não podiam passar dos 25 anos senão já eram consideradas “velhas”). Tanto Kirk quanto o arqueólogo acham que McCoy, ainda deslumbrado com Nancy, a vê mais jovem.
Um grito ecoa lá fora. Nancy chora ao lado do tripulante morto (que não está de camisa vermelha e sim azul). Ele está cheio de marcas circulares no rosto. Kirk, indignado com a perda de um tripulante, exige de Nancy uma explicação. Esta diz que o tripulante comeu uma planta envenenada e, antes, tentou seduzi-la. Nancy pergunta ao marido de forma severa se ele pediu tabletes de sal para a Enterprise, o que provoca estranhamento em McCoy pelo comportamento da ex-namorada.
Na Entrprise, Uhura dá, sem muito sucesso, uma cantada descarada em Spock. O rádio comunica que um tripulante da Enterprise morreu e Spock recebe a notícia friamente, o que deixa Uhura indignada com a falta de emotividade do vulcano. Como estamos nos episódios iniciais da série, podemos considerar essa sequência como uma relíquia trekker, onde vemos a construção do personagem Spock em curso. Uma análise da planta que envenenou o tripulante diz que ela não é venenosa o suficiente para matá-lo. Ainda, as manchas no rosto nada têm a ver com a planta e o corpo do tripulante não apresenta sinais mais graves. Ou seja, ele muito bem poderia estar vivo. McCoy diz que vai refazer os exames e se lembra da forma jovial como viu Nancy. Kirk dá um coice com as quatro ferraduras dizendo que perdeu um tripulante e quer saber o que o matou. Essa grosseria explícita de Kirk, se num primeiro momento choca o espectador, por outro lado é outro elemento na construção do personagem, onde ficava muito claro o zelo do capitão por seus tripulantes. Cabe ressaltar aqui que Kirk depois pede desculpas a McCoy pela grosseria, quando o médico já descobriu que o corpo do tripulante está sem sal e que as marcas no rosto podem ser o caminho por onde o sal saiu do organismo. Kirk e McCoy também se lembram do pedido de Nancy por tabletes de sal. Kirk decide ir à superfície para falar com o Dr. Crater e Nancy. O primeiro se coloca contra a investigação mais profunda que Kirk quer fazer. Kirk exige que Crater e Nancy subam à Enterprise enquanto investiga. O doutor aproveita a comunicação de Kirk e Spock para fugir e encontra Nancy perto do corpo de mais um tripulante morto, com as mãos no rosto dele. Há ainda outro tripulante morto. O doutor oferece sal à esposa. Kirk e McCoy encontram o corpo de um tripulante e chamam o outro, que também está morto. Nancy se transforma na aparência do tripulante que ela acabou de matar e que é chamado por Kirk. “Nancy” se encontra com Kirk e diz que viu o outro tripulante morto, procurando o que pode tê-lo matado. Kirk decide subir com McCoy e a Nancy travestida de tripulante para procurar Crater e Nancy com os sensores da nave. Spock só consegue rastrear o sinal de uma pessoa. Já Nancy, travestida de tripulante, persegue a ordenança Rand, que está com uma bandeja de comida que tem um pote de sal. Rand chega à seção de botânica e dá a bandeja a Sulu para comer. Já vemos logo de cara Rand servindo um homem e sendo cantada pela tripulação onde passa, outro detalhe da década de sessenta muito natural para a época e muito inquietante hoje. Nancy entra na divisão de botânica e fica olhando fixamente para o saleiro da bandeja de Sulu, para total estupefação desse e de Rand. Uma das plantinhas de Sulu começa a se mexer e a gritar (na verdade, é uma mão cheia de pétalas de mentirinha) e Nancy sai às pressas. No corredor, Nancy se transforma em outro tripulante para falar com Uhura que vem pelo corredor. Ele fala com ela em swahili, o idioma africano de Uhura e quase a ataca, quando ela é chamada para comparecer à ponte. Nancy encontra outro tripulante e consome o seu sal, matando-o. Depois, encontra o aposento do Dr. McCoy e se transforma em Nancy, para ficar sob a proteção do doutor, seduzindo-o. Nancy faz McCoy dormir e vai para a ponte com a aparência do médico.
Kirk e Spock vão à superfície do planeta para tentar falar com Crater, mas este continua rechaçando-os. Entretanto, o corpo do tripulante do qual Nancy tomou forma é encontrado e eles percebem que algo estranho subiu com Kirk e McCoy anteriormente. Kirk emite um alerta de intruso na nave e Crater os ataca com um phaser. Kirk e Spock fazem uma tocaia e tonteiam Crater, finalmente conseguindo falar com ele, que abre o jogo e diz que sua esposa foi morta por um alienígena que era o último de sua espécie e se alimentava de sal, podendo se transformar na aparência de outros seres. Crater insiste no direito da criatura de viver, mas Kirk lembra que essa criatura está matando sua tripulação. Os três sobem à nave. Diante da recusa de Crater em ajudar, Spock sugere o soro da verdade, a ser aplicado por McCoy (que, na verdade, é a criatura). Na enfermaria, Crater acerta Spock, mas acaba sendo morto pela criatura, já que os sais do corpo de Spock são muito diferentes do sal que a criatura quer. A criatura volta a ter a aparência de Nancy e vai aos aposentos de McCoy dizendo que está sendo perseguida para ser morta. Kirk entra nos aposentos de McCoy com um phaser falando que Nancy é uma criatura que tem que ser morta. McCoy se nega a deixar ela morrer. Kirk oferece sal para a criatura. McCoy se atraca com Kirk e a criatura toma o sal da mão de Kirk, consumindo-o e depois paralisa Kirk numa espécie de transe para atacá-lo e consumir o sal de seu corpo. Spock entra nos aposentos e pede para McCoy matar Nancy. McCoy se nega. Spock, então, dá um monte de bordoadas na cara de Nancy e pergunta a MacCoy se Nancy agüentaria aquela surra. Nancy dá um tapão na cara de Spock que o joga longe. McCoy se convence de que aquela não é Nancy, que já está atacando Kirk. A criatura mostra sua verdadeira face e McCoy lhe dá um tiro de phaser. A criatura volta a ter a aparência de Nancy e implora pela vida à McCoy, que vai ter a dura tarefa de dar o tiro de misericórdia na aparência da mulher que ama. Kirk diz a McCoy que sente muito. Na ponte da Enterprise, Kirk, McCoy e Spock estão unidos. McCoy em silêncio escuta Kirk dizer a Spock que pensava nos búfalos, uma espécie que se extinguiu na Terra, à exemplo da criatura que consumia sal. Fim do episódio.
O que podemos falar desse episódio dirigido por Marc Daniels e escrito por George Clayton Johnson? Em primeiro lugar, o episódio mais parece um filme de terror do que de ficção científica. Um monstro que se esconde atrás da aparência das pessoas e que precisa se alimentar compulsivamente de sal, se esgueirando e matando suas vítimas. Um mistério que se alimenta do suspense. Onde a ciência entra ai? Na questão de que as pessoas morrem ao terem todo o sal extraído de seus corpos. Mas esse terror e suspense abriram margem para o que seria uma das marcas registradas da série, que é levantar alguma questão pertinente para reflexão. Por que Crater manteve esse monstro vivo, mesmo que ele tenha matado sua esposa. Em primeiro lugar, a criatura era a última de sua espécie, e ela acabou se tornando uma forma de companhia para o cientista, uma amiga, esposa, até escrava. Ou seja, o médico desenvolveu laços que poderiam ter várias características: afetivos, de dominação, dependência, etc., sem dúvida uma relação estranha e complexa, onde Crater dependia da criatura, mas também a subjugava. De qualquer forma, o principal argumento do arqueólogo para manter a criatura viva era o seu risco de extinção e usava como exemplo a extinção dos búfalos, cujas manadas podiam cobrir o território de três estados americanos. Não é à toa que Kirk, no final do episódio, pensava nos búfalos.
No mais, o episódio serviu, como temos visto em nossas análises dos primeiros episódios das séries, para apresentar alguns personagens e suas características, iniciando um processo de construção gradativa. Fica claro o sentimento de Uhura para com Spock, assim como a frieza e o pragmatismo do vulcano. Sulu, por sua vez, é um tripulante que gosta de botânica e tem as suas plantinhas, inclusive uma simpática “mãozinha” coberta de pétalas, que é hipersensível. Kirk, por sua vez, mostra os seus rompantes de autoritarismo, mas pedindo desculpas posteriormente, ao melhor estilo do amigo que “é gente muito boa, mas que de vez em quando vacila”. A justificativa para seu comportamento autoritário é que ele se preocupa demais com sua tripulação e ver diante de si seus tripulantes morrendo faz com que ele busque uma saída rápida para parar com isso, se tornando mais exigente e irrascível. O nosso querido Dr. McCoy, mesmo que atormentado pelo passado de Nancy, já mostra a sua deliciosa e engraçada rabugice que seria sua marca registrada.
Temos que dizer ainda que o episódio mostrou os vícios do tempo em que foi produzido, onde a mulher foi vista de forma submissa e como um objeto sexual, com a ordenança Rand se tornando o principal paradigma disso, o que é algo que incomoda aos nossos olhos contemporâneos, mas devemos nos lembrar que esse episódio já tem mais de cinquenta anos e a visão utópica de Roddenberry não tinha como ficar incólume a algumas visões de mundo de outrora. A gente sempre deve se lembrar que a atemporalidade é uma coisa extremamente rara e, por isso mesmo, muito celebrada quando acontece.
Dessa forma, “O Sal da Terra” é o nosso cartão de visitas de Jornada nas Estrelas como série, depois do piloto “The Cage”, que foi reprovado. Um episódio mais regado a terror e suspense do que ficção científica, mas já abrindo espaço para questões altamente reflexivas, não deixando de apresentar as características de alguns personagens. A forma submissa como a mulher é explorada no episódio é algo que incomoda, mostrando um nível de datação desse produto cultural embora não possamos ser anacrônicos e compreender (o que não significa concordar, como diz o Senhor Spock) o porquê de tal visão pejorativa.